Abri meus olhos, mas o que vi me deixou atordoado. Nem esperava que eu estivesse vivo para começar, mas agora estava ali deitado em um quarto enorme com alguns beliches. Vi uma cama acima de mim e me levantei devagar. Embora minha cabeça latejasse, curiosamente era a única parte do meu corpo que a dor era constante. Aquele lugar era estranhamente conhecido, me faz lembrar da infância. O cheiro e a aura era como... espere, sim, familiar de fato. Passei anos da minha vida ali, então não havia como esquecer. Aquele era o quarto comunitário do Orfanato Leão de Judá, onde crescera. Será que era uma alucinação causada pós morte?
Não parecia ser um sonho, porém. Tudo estava vívido demais, e estava sentindo aquela dor incessante na cabeça. Meu corpo não estava doendo em nenhum outro lugar e eu tinha meu braço de volta. Se tudo isso já não fosse estranho o bastante, quando olhei para o braço recolocado, ele parecia menor. Não que eu fosse muito musculoso, mas definitivamente ele não era tão fino. Poderia ser que eu havia voltado no tempo? Essa era a única forma daquele lugar ainda existir.
Muitos anos atrás, por volta da Primeira onda, a região foi tomada por Monstros. Aquela era uma cidadezinha próxima à capital Cearense, mas não havia como suportar uma Onda de Monstros sozinha. O caos se espalhou naquela cidade assim como em muitas outras pelo país. Sem o apoio da Capital e de suas forças de segurança tudo o que restou para a cidade foi colapsar.
Outro sinal de que esse retorno poderia ser real, se dava por ser impossível sobreviver ao que aconteceu. Se os ferimentos não me matassem, o frio e a falta de sangue o fariam. Voltar no tempo não parecia maluquice? Isso parece aquelas histórias de fantasia adolescente que se encontra pela internet; acho que já vi isso em alguma novel que eu li antes.
Se aquilo era um sonho, de certa forma, eu não queria acordar. Fora dessa ilusão maluca, que minha cabeça me colocou, o mundo adulto era uma porcaria. Trabalhar para viver e viver para trabalhar; não sei quem disse que isso era uma coisa boa, mas eu queria quebrar os dentes dessa pessoa. Eu precisei trabalhar como um maluco para ter o mínimo de condições para trabalhar ainda mais, praticamente um escravizado.
Levantei-me da cama e olhei em volta. Tudo estava real demais para ser apenas os delírios de um homem morto. Não havia uma grama de poeira nos móveis, e olhando para a janela, ainda não parecia ser mais do que dez horas da manhã; era provável que as crianças que viviam naquele quarto tinham o limpado há pouco tempo. Os beliches estavam arrumadinhas e ainda era possível sentir o cheiro do desinfetante barato pelo quarto.
— Merda... – falei com um suspiro – Estou lembrando de coisas desagradáveis de novo.
Enquanto olhava pelo quarto, eu recordava algumas memórias daquela época. Poderia esse ser um efeito de voltar no tempo? Eu estava atualmente com uns 15 anos, então era o ano de 2014. Os Monstros já eram conhecidos nesse tempo, mas felizmente ainda não estavam causando problemas em cidades pequenas como essas. Eles estavam mais concentrados fora das áreas urbanas. Provavelmente as pessoas do interior estariam passando algumas dificuldades e quem sabe logo começaria o êxodo para as capitais.
Viajar pelas estradas ainda não estava tão dificultoso. Por minhas memórias os monstros ainda não estavam em uma concentração tão grande a ponto de fazer os bloqueios de estradas serem algo necessário, mas a Policia Rodoviária estava patrulhando com mais intensidade.
— Espere! Se é 2014, então, a Primeira Onda deve estar chegando – um arrepio correu por minha espinha. Essa Onda foi aquela em que os Monstros ficaram mais agressivos e começaram a invadir as cidades. Procurei um calendário, e para minha sorte, havia um à parede. Uma marcação de fita adesiva indicava o dia presente – 14 de março.
Oito meses. Faltavam apenas oito meses para esse orfanato ser destruído e eu ir morar nas ruas da capital. Eu deveria fugir? Não, fugir agora seria só adiantar a minha vida como mendigo; preciso arrumar um lugar para ir antes disso. Para o meu azar, as ajudas que eu podia dar, um nome mais brando para trabalho infantil, não eram remuneradas, ou seja, eu não possuo dinheiro. No fim, é tudo sobre dinheiro, e sem ele apenas uma vida de esmolas me aguardava.
Eu estava com medo de voltar para aquela vida. Tratado como lixo pelas pessoas, mesmo que não fosse culpa minha estar vivendo nas ruas. Como eu disse no início da minha história, existia um padre que ajudava os moradores de rua por volta dessa época, um santo, mas tratado como um pária pela sociedade, apenas por fazer algo que seu deus mandava.
Bem, acho que dizer “sociedade” é um exagero, mas havia alguns idiotas que faziam isso sim, mesmo sendo uma minoria. Infelizmente para mim, esse homem vivia em São Paulo, então eu ficaria a própria sorte por aqui.
Se pelo menos eu ainda tivesse meu sistema comigo, eu não estaria tão preocupado. O crescimento de um Guardião é muito diferente de uma pessoa normal; eu poderia ficar muito mais forte com menos esforço e assim, me virar sozinho não seria realmente um desafio. Eu precisava encontrar um Djin primeiro e ele teria que me escolher, para só então eu ter o sistema de volta. Ainda demoraria mais uns 7 anos antes de encontrar o Djin que me escolheu, e só de imaginar ter que viver enquanto procurava comida e fugia de monstros, me fazia tremer inteiro.
— Status – falei.
Meu coração batia acelerado pelo desespero. A possibilidade da minha janela de status não aparecer me deixava ansioso. Assim que aquela conhecida luz azul surgiu na minha frente, eu senti todo o meu corpo relaxar e cheguei a cair sentado na cama. Para minha surpresa, porém, o que eu vi não foi a conhecida tela que mostrava meus atributos e as informações de equipamento e habilidades. No lugar disso, um pergaminho desenrolou-se na minha frente.
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Querido mestre Arthur,
O Rei dos Djins dá boas-vindas ao Mestre escolhido como um Guardião. Tu deves ter acordado muito antes do previsto na sua linha temporal, e pedimos as mais profundas desculpas. No entanto, esta foi uma medida desesperada de nosso amado Rei. O senhor foi escolhido pelo próprio Rei para despertar, e assim, vossa responsabilidade será ainda maior nessa vida. Pedimos apenas que continue com teu coração bondoso e amoroso para nossos irmãos Djins. Quando o momento chegar tu poderás despertar sua Classe, assim como foi na vossa primeira vez. Até que o momento oportuno surja, por favor, evite tentar conseguir uma para si. Oro por vosso sucesso, e que as bençãos de nosso amado Rei o guiem nesse caminho difícil.
Desejo lhe boa sorte.
Babama, o Sábio.
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Passei meus olhos pelo texto, enquanto meu coração apertava. Babama era um dos Djins mais importantes que existiu no futuro. Era ele quem guiava os Guardiões, oferecendo missões e dicas para que a humanidade não perdesse para os Monstros, mas alguns meses antes da minha morte, o Sábio foi morto durante um "Cerco" à cidade de São Paulo. Foi assim que começamos a chamar um evento que acontecia a cada seis meses em uma cidade designada pelo sistema. Monstros atacavam por alguns dias até que fossem eliminados, pelo menos 80% da força de ataque. Quando, enfim, esse limite era alcançado ou o evento acabava, ou quando nosso azar estava grande, um Chefe aparecia. Isso dificultava ainda mais todo o Cerco, pois dava vida nova ao ataque.
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Atualizado até capítulo 27
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