Luz da Lua e Sombras

Aurora

P.O.V.

“Então você está me dizendo que um homem vestido com roupas medievais a perseguiu até aqui e quebrou o gelo do lago com um soco?” O policial perguntou, inclinando a cabeça, um sorriso debochado se formando nos lábios. Suas palavras me atingiram como o frio cortante ao redor. Eu puxei o cobertor para mais perto, tentando aquecer meus ombros, mas o tremor nas minhas pernas revelava o quanto o frio estava me consumindo. Exaustão. Cada músculo gritava.

“Sim... depois, ouvi uma voz... e consegui quebrar o gelo. Foi quando encontrei o corpo do professor,” respondi com a voz fraca, minha mente viajando para o momento em que o vi sob o gelo. Ele não era o melhor professor, mas quando perdi meus pais, foi ele quem estendeu a mão. Ele que tentou me ajudar com luto, depois de saber como meus primeiros pais adotivos se foram. Por mais difícil que fosse, não podia evitar sentir uma ponta de tristeza por ele.

O policial estreitou os olhos, descrente. “Você usou alguma substância? Não parece muito bem,” ele questionou, acenando para os paramédicos que já estavam removendo o corpo. Meu estômago revirou ao ver o braço do professor pendendo para fora da maca, um lembrete cruel da cena no lago. Aquilo não sairia da minha cabeça tão cedo. Apertei o pano ao redor do corpo, buscando qualquer traço de calor enquanto suportava o interrogatório frio e implacável.

“Não usei nada. Eu sei o que vi,” falei, minha voz agora mais firme, tentando convencer a mim mesma tanto quanto ao policial.

“Senhorita, talvez tenha batido a cabeça... Acho que precisa de descanso,” ele sugeriu, levantando uma sobrancelha, a condescendência explícita em cada palavra, como se me tratasse como uma criança que inventa histórias. Cerrei os dentes, tentando manter a compostura. “Eu sei o que vi. Não estou alucinando.”

Ele suspirou, ajeitando o quepe, como se estivesse terminando um jogo que já tinha vencido. “Vamos investigar o que você relatou. Seus responsáveis já foram chamados, estão a caminho.”

Meus ombros enrijeceram, e senti o pânico subindo pela garganta. Quem deles viriam me buscar? Quando vi a caminhonete vermelha se aproximar, com o capô amassado e os arranhões familiares, meu coração afundou. “Calma... tudo vai ficar bem,” murmurei para mim mesma, tentando evitar o desespero.

A caminhonete parou bruscamente. Uma garota loira desceu com um salto, sua saia verde e o top minúsculo destoando completamente do frio cortante. O vento parecia ignorá-la, ou talvez ela só estivesse mais preocupada com a imagem do que com o corpo gelado.

“Querida, você está bem? Fiquei tão preocupada!” Ela correu em minha direção, as mãos finas pousando em meus ombros com uma intensidade falsa.

“Sim, estou bem,” falei, me afastando de seu toque e caminhando em direção à caminhonete. Abri a porta com um rangido que ressoou como um lamento. Se eles gastassem menos com bebida e mais com o essencial, talvez não precisássemos de um carro que parecia prestes a desmoronar. Me joguei no banco da frente, sentindo a espuma rasgada pinicar minha pele.

Fechei a porta com força, e lá fora, Helena — ou, como eu a chamava, ‘duas caras’ — continuava seu show de preocupação. Não era surpresa para mim. Nada que ela fazia enganava meus olhos.

Depois de entregar os papéis para o policial, ela entrou no carro sem me lançar um único olhar e deu partida. “Mantenha-se na linha, mocinha!” o policial gritou. “Ela vai,” Helena respondeu com um sorriso que não tinha nenhuma intenção de ser gentil.

O silêncio na caminhonete era opressor. Não trocamos uma palavra sequer. Um contraste cruel com o que costumávamos ser. Há cinco anos, éramos inseparáveis, melhores amigas, irmãs de coração. Isso até o acidente. Desde então, tudo mudou — ela, eu, nosso laço. E agora, apesar de vivermos sob o mesmo teto, éramos estranhas.

“Você sabe que eles vão ficar uma fera,” Helena quebrou o silêncio, seus olhos fixos na estrada, seus lábios apertados em uma linha fina. Dei de ombros, não conseguindo encontrar forças para responder.

“Você não é mais uma criança Aurora. Suas ações têm consequências,” ela continuou, mas minhas palavras continuavam presas na garganta, enquanto eu olhava para a escuridão lá fora. Eu só queria chegar logo em casa, embora a palavra “lar” não tivesse significado algum para mim.

Quando finalmente chegamos, eu corri para dentro da velha casa de madeira, sentindo o frio se infiltrando ainda mais fundo em meus ossos. Cada degrau que subia rangia, como se a casa estivesse prestes a desabar sob meu peso. No meu quarto — ou melhor, no cubículo que me foi dado —, joguei minha mochila no chão. Tudo estava molhado, mas, milagrosamente, meu caderno sobreviveu.

Sentei no chão, abraçando o caderno contra o peito. Lá fora, os sons da casa continuavam, como um eco distante de vidas que seguiam em frente sem mim. A cadeira estava bloqueando a porta... ou será que não? Já não lembrava mais se havia feito isso ou se estava apenas imaginando.

Coloquei a cadeira no lugar de novo, trancando a porta, e me joguei no colchão fino e deformado. O cheiro de mofo invadia o ar, mas de alguma forma isso me acalmava. Fechei os olhos, sentindo o peso da escuridão me puxar para baixo, e pela primeira vez naquela noite, não resisti.

________

Adam

P.O.V.

"Xeque-mate." A rainha caiu sobre o tabuleiro com um leve estalo, enquanto eu me reclinava na cadeira, observando o semblante de Liam mudar.

"Você ganhou três vezes seguidas, isso é injusto!" Ele cruzou os braços, um bico se formando em seus lábios como se fosse uma criança.

"Você não acha que já passou da idade para fazer birra?" Apoiando os cotovelos sobre a mesa de vidro, olhei de soslaio para ele, contendo um sorriso.

"Não estou fazendo birra! Você que está trapaceando!" Ele insistiu, a voz carregada de frustração infantil. Revirei os olhos, rindo internamente.

"Liam, se quer proteger sua rainha, não a deixe desprotegida. Colocá-la no meio do tabuleiro não é jeito de tratar uma rainha." Sorrindo de lado, passei a mão pelos cabelos pretos dele, bagunçando-os de leve, enquanto segurava a peça branca que simbolizava sua derrota.

"Ei, devolve!" Ele saltou da cadeira, os olhos fixos na peça em minha mão. Estiquei o braço, mantendo-a fora de seu alcance.

"Ah, você é baixinho demais pra isso." A provocação saiu naturalmente, mas antes que pudesse reagir, ele deu um salto mais alto e, num movimento rápido, arrancou a peça da minha mão.

"Lero, lero, quem é o pequeno agora?" Ele recuou, vitorioso, até tropeçar no tapete.

"Liam!" O grito escapou antes que eu pudesse controlar, vendo-o cair de costas, a cabeça batendo no sofá.

Num instante, estava ao lado dele, agachado, o coração acelerado. "Tá doendo muito?" Minha mão foi até sua cabeça, onde ele massageava com uma expressão de dor.

"Nem tanto..." Ele tentava disfarçar, mas vi o desconforto em seus olhos. Ajudei-o a levantar e o coloquei sentado no sofá.

"Você precisa prestar mais atenção. Não dá pra sair pulando por aí como um maluco e esperar que nada aconteça." Caminhei até a cozinha e voltei com um pacote de gelo, entregando-o. "Imagine se eu não estivesse aqui para te ajudar?"

Ele fez uma careta, como se minhas palavras fossem uma bronca exagerada. "Tá, tá, para de agir como se fosse meu pai. Sinto pena da sua Luna. Vai transformar cada conversa num sermão!"

Revirei os olhos, deixando escapar uma risada curta. "Não estou agindo como um pai. E pode ter certeza, vou fazer a minha Luna muito feliz." Passei a língua por minhas presas, olhando rapidamente para o relógio em meu pulso. "Agora, garotão, tá na hora de ir dormir. O ritual vai começar daqui a pouco, e você não pode ficar acordado."

Liam cruzou os braços, teimando. "Já sou um homem, posso ficar acordado!"

"Grande homem você é." Peguei seu braço, guiando-o escada acima, ignorando os resmungos e tentativas de resistência. "Mas os rituais são intensos demais. Pelo menos você pode observar a Lua de Neve pela janela." Suas sobrancelhas franzidas relaxaram ao ouvir sobre o evento raro. Mesmo contrariado, o brilho nos olhos revelava sua curiosidade.

Antes de fechar a porta, vi seu sorriso se desfazer, e algo dentro de mim apertou por um breve segundo.

No silêncio da casa, fui para meu quarto. O contraste entre o luxo do ambiente e a simplicidade da floresta lá fora sempre me causava uma sensação estranha. As paredes escuras, a cama meticulosamente arrumada no centro, tudo refletia a ordem que eu tanto prezava. Bagunça? Inaceitável.

Suspirei profundamente e me encaminhei para o banheiro. A luz suave refletia na minha pele, que já brilhava levemente, uma preparação natural para o ritual que se aproximava.

"Chegou a hora..." Murmurei para mim mesmo enquanto tirava a camisa, deixando-a cair no chão sem cerimônia. Meus olhos fixaram-se na tatuagem que cobria meu peito, a cabeça de um lobo, com um olho amarelo e o outro da cor azul, em detalhes que representava minha lealdade à alcateia. Um lembrete constante do meu papel e das responsabilidades que carregava.

Retirei os anéis dos dedos da minha mão tatuada por circulos, que cobre a parte de trás e frente, sinto o peso de cada movimento. Segurei a pia, os pensamentos rodopiando em minha mente, enquanto baixava a cabeça por um instante. Foi quando ouvi um som suave, como um toque repetido vindo da varanda.

Levantei o olhar e vi uma borboleta. Suas asas brancas batiam contra o vidro, insistentes, quase como se quisesse entrar. Havia algo hipnotizante em seus movimentos.

"Que estranho..." Murmurei, observando-a por mais um segundo antes de me afastar. Saí do quarto e percorri o corredor em direção ao destino que me aguardava, lembrando que naquela casa apenas meu irmão e eu restávamos. Nosso pai... ele se foi, tanto física quanto emocionalmente, desde a morte da nossa mãe.

Aceitei o distanciamento, assim como aceitei muitas outras coisas na vida. Agora, tudo o que me restava era a alcateia... e o ritual que se aproximava.

____

Adam estava frente a frente com seu pai, o líder da alcateia. No chão entre eles, uma runa de proteção estava desenhada, enquanto ambos se encaravam intensamente. Ao redor, o grupo observava com ansiedade crescente. Pai e filho vestiam apenas calças, e o único som que quebrava o silêncio da caverna eram os pingos de água caindo. A luz da lua, filtrada pelo grande buraco no teto, iluminava a cena, criando uma atmosfera de tensão.

Uma senhora idosa, vestida com trajes antigos e volumosos, aproximou-se dos dois. "Estamos todos ansiosos por isso. Lembrem-se das regras: sem trapaça. O último de pé será o vencedor. Que a lua esteja com vocês", disse a velha xamã, dando início à luta entre pai e filho.

O Alfa observou Adam de cima a baixo, analisando cada movimento enquanto ambos começavam a andar em círculos, estudando um ao outro. O Alfa foi o primeiro a atacar, derrubando Adam no chão com força. Porém, Adam revidou rapidamente, virando-se de lado e ficando por cima do pai, desferindo socos intensos. O Alfa revidou com um golpe certeiro no abdômen de Adam, fazendo-o recuar. Adam limpou o sangue que escorria dos lábios e, com um sorriso feral, lançou-se de volta ao combate, agarrando o pescoço de seu pai.

Os gritos da multidão, torcendo por ambos os lados, ficaram mais altos, e Adam sentiu a adrenalina e a loucura pulsarem em suas veias. Ele apertava o pescoço do Alfa com mais força, enquanto o homem, já sem forças, parava de resistir, aceitando seu destino.

Quando o som do pescoço quebrando ecoou na caverna, Adam soltou o corpo do pai. Levantou-se lentamente, enquanto os aplausos reverberavam ao seu redor, embora ele não conseguisse ouvir nada. Seu olhar permaneceu fixo no corpo sem vida à sua frente. Com um suspiro pesado, aceitou o que tinha acabado de fazer.

A lua brilhou com mais intensidade, e um silêncio solene caiu sobre todos. Adam ergueu os olhos para o céu, admirando a beleza da lua, mas logo o encantamento se transformou em dor. Seus ossos começaram a estalar, cada um mudando de lugar, deformando seu corpo. Ele gritou de dor, levantando a cabeça enquanto caía de joelhos. Seus dentes se deslocaram, crescendo, e a agonia o derrubou completamente no chão.

Em questão de segundos, seu corpo humano desapareceu. Um lobo gigantesco, com mais de dois metros de altura, uivou para a lua. O lobo sacudiu seu pelo negro e, ainda desnorteado, olhou ao redor, erguendo-se sobre as quatro patas e balançando a cabeça.

_________

Adam

P.O.V.

O vento cortava meu rosto enquanto eu corria pela floresta, sentindo o poder fluir em cada músculo. As pessoas abriam espaço, seus olhares de respeito e medo me acompanhavam enquanto passava. Meus passos eram leves, mas firmes, até que alcancei uma pedra no alto. Subi nela de um salto ágil, ergui a cabeça para o céu e uivei. O som ecoou pela noite, carregado de autoridade. Logo, outros uivos responderam, distantes, mas submissos. Agora, eu era o alfa.

Mas algo interrompeu meu êxtase. Um aroma doce, familiar. Chocolate. Meu coração acelerou. Seria ela? Minha luna estaria por perto? Sem hesitar, voltei em direção ao bando, meus sentidos em alerta. No entanto, quanto mais me aproximava, mais fraco o cheiro ficava. Por que estava desaparecendo?

"Adam, que bom ver você! Deve estar exausto", a voz de William soou, se aproximando. Eu parei e rosnei, o instinto de proteger meu território ainda vivo.

"Calma, sou eu", ele disse, levantando as mãos em sinal de paz.

Ignorei suas palavras por um instante, concentrando-me em recuperar o controle. Fechei os olhos e, com esforço, forcei meu corpo a voltar à forma humana. Senti a pele formigar, os ossos se reajustando. Quando abri os olhos novamente, o mundo parecia diferente, menos intenso, mais contido. O poder animal que antes dominava minha mente agora estava adormecido.

"Você foi bem para a primeira vez", William comentou, jogando algumas roupas para mim. Minhas pernas tremeram, e quando tentei me levantar, quase caí. William segurou meu braço, firmando-me.

"Vamos, você precisa descansar", ele disse, sua voz agora mais suave. Cada passo me parecia um desafio, mas ele me apoiou enquanto subíamos as escadas, guiando-me para dentro da casa.

Quebrar de tempo...

Adam se acomodou na cadeira da sala de aula, os olhos fixos no quadro, mas sem realmente absorver o que estava ali. Cada músculo do seu corpo ainda parecia latejar com o resquício da transformação, e o leve estalo de seu pescoço foi uma tentativa inútil de aliviar a tensão. A sala estava praticamente vazia, o silêncio pesado. Ele havia chegado mais cedo do que o normal, talvez tentando fugir de pensamentos que o atormentavam desde a noite anterior.

Alguns minutos depois, Nox entrou. Caminhou despreocupadamente até o fundo da sala, jogando-se na cadeira ao lado de Adam. Com um sorriso travesso, estendeu a mão para o cumprimento de sempre, e o som do tapa ecoou pelo espaço vazio.

"E aí, chefe? Agora que você é o alfa, será que ainda posso te chamar de 'cara'?" provocou Nox, soltando uma risada leve.

Adam retribuiu com um sorriso discreto, mas o peso da nova responsabilidade o mantinha distante, como se a simples menção ao título o puxasse de volta para os próprios pensamentos.

"Você ficou sabendo? Encontraram o corpo do professor. Ainda não falaram a causa da morte, mas estão dizendo que pode ter sido um ataque de animal," comentou Nox, largando os materiais sobre a mesa com desleixo, sua voz carregada de curiosidade mal contida.

Adam franziu o cenho, seus pensamentos parando por um segundo. "Ataque de animal?"

Ele sabia que algo estava errado. Nenhum lobo da alcateia caçava durante a temporada da Lua de Neve. Tal ato seria um desrespeito à deusa Lua, uma ofensa imperdoável. Sua mente começou a buscar respostas, descartando a ideia de que alguém poderia ter quebrado essa regra sagrada.

"Pois é, estranho, né? E adivinha quem encontrou o corpo?" Nox abaixou a voz, como se estivesse prestes a revelar o maior segredo de todos.

Adam estreitou os olhos, tentando conectar as peças do quebra-cabeça. "Deixa eu adivinhar... Alguém realmente estranho... Hmm, Aurora?"

Seu sorriso surgiu de canto, brincalhão, mas a inquietação em seu peito só crescia.

Nox gargalhou alto, balançando a cabeça. "Esse foi um novo poder que você despertou?"

Adam manteve o sorriso, mas, de repente, o aroma doce que vinha perseguindo-o há dias preencheu o ar ao seu redor. O cheiro familiar, irresistível como chocolate quente com um toque de morango, invadiu suas narinas. Ele soube na hora.

A porta da sala se abriu, e Aurora entrou. O cheiro se intensificou, envolvente e inconfundível. Cada fibra de seu corpo se enrijeceu, e a compreensão o atingiu como uma onda.

"Puta merda..." Ele murmurou para si mesmo, com o coração acelerado. "Aurora é a minha luna."

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Atualizado até capítulo 53

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