Olívia. Vi a pirralha esses dias comprando materiais escolares. Pelo jeito, ela finalmente saiu do buraco onde morava.
Ace estava diante de mim, seus olhos faiscando com irritação. Eu sabia o que ele queria; sempre sabia.
— E então? O que vai fazer? Vai continuar negando que precisa cuidar dela ou vai continuar suportando essas dores? Você sabe que tem que cumprir o acordo que fez com ela. — disse ele, a voz carregada de desprezo.
Suspirei, encostando-me na parede fria. Cada palavra dele era um lembrete do peso que eu carregava.
— Ace, entenda. Eu não quero fazer nada. Quero aproveitar minha liberdade, se é que posso chamar isso de liberdade. Dez mil anos foi muita coisa. Fiquei preso tempo demais, abri mão de tudo. Desde o momento em que me tornei um demônio, nunca fui realmente livre.
Ace avançou, e sua fúria era quase palpável.
— Foda-se. — ele cuspiu. — Você ficou preso porque fez merda, Vicent. Matou a filha da Cálice. Isso foi um pecado que nem o inferno tolera. E não vamos esquecer que você foi burro o suficiente para provocar o arcanjo Gabriel.
A menção de Gabriel trouxe um sorriso irônico aos meus lábios, mas a raiva ferveu logo em seguida.
— Foda-se o Gabriel. — rebati, minha voz ecoando pelo salão escuro. — Aquele anjinho arrogante de nariz empinado não significa nada para mim.
Ace não pareceu impressionado. Pelo contrário, sua postura se tornou ainda mais ameaçadora.
— Eu não vou assistir meu irmão se destruir porque é um covarde teimoso.
Antes que eu pudesse retrucar, senti as correntes. Frias, pesadas, inconfundíveis. Elas envolveram meu corpo, apertando cada vez mais, como se quisessem esmagar até minha alma.
— Ace! Não faça isso! — gritei, lutando contra elas, mas era inútil.
— Oito anos, Vicent. — disse ele, a voz reverberando pelo salão como uma sentença. — Você tem oito anos para decidir o que fazer em relação àquela garota.
A luz ao meu redor desapareceu. Fui engolido pela escuridão familiar, sufocado pelo peso das correntes.
— Droga... — murmurei, minha voz ecoando fracamente. — Estou preso novamente.
E assim, o que eu chamava de liberdade escorreu pelos meus dedos mais uma vez.
Oito anos. Oito longos e torturantes anos. Para muitos, isso seria apenas um lapso de tempo, um período finito no oceano da eternidade. Mas para mim, preso nas correntes de Ace, cada segundo se arrastava como uma eternidade insuportável.
No primeiro dia, a dor começou como um pulsar ardente em meu peito, como se meu próprio coração fosse arrancado e esmagado repetidamente. As correntes eram mais do que ferro; eram feitas de magia antiga, criadas para punir e subjugar até o mais poderoso dos demônios. Elas apertavam meu corpo, minha alma, meu espírito, como se estivessem decididas a extinguir cada pedaço da minha existência.
No primeiro mês, a dor se transformou em algo mais profundo. Não era apenas física; era emocional. As correntes sussurravam, vozes que soavam como as da filha do Cálice, suas acusações ecoando em minha mente. "Você me matou." A cada vez que fechava os olhos, via o rosto dela. Seus olhos fixos em mim, cheios de dor e incredulidade. Era como se eu estivesse vivendo sua morte repetidamente, cada detalhe gravado em minha memória.
Com o passar dos meses, a dor se tornou insuportável. Meus gritos ecoavam na escuridão, mas ninguém podia ouvi-los. Meu corpo, embora imortal, parecia à beira da ruína. Cada osso queimava, cada músculo se retorcia. O ar ao meu redor parecia ser feito de vidro quebrado, e cada respiração era uma tortura.
No primeiro ano, a solidão se tornou minha única companhia. Ace não apareceu. Ninguém apareceu. Eu estava sozinho, preso em um ciclo interminável de dor e arrependimento. O vazio ao meu redor parecia zombar de mim, enquanto minha mente lutava para se manter intacta. Mas as correntes não me deixavam esquecer. Elas me lembravam de cada pecado, cada decisão que me trouxe a este ponto. Elas se apertavam cada vez que minha mente tentava escapar para pensamentos de liberdade.
No terceiro ano, perdi a noção do tempo. Não sabia mais se era dia ou noite. Tudo era escuridão e dor. As memórias de Olívia começaram a se infiltrar em minha mente. Seu rosto, seu cheiro, o som de sua voz. Eu a havia abandonado. E a culpa se misturava à dor, criando uma tempestade dentro de mim.
Aos cinco anos, comecei a implorar. Implorar por misericórdia, por um fim. Mas não havia resposta. Apenas o silêncio eterno das correntes.
No oitavo ano, algo mudou. A dor ainda estava lá, mas eu comecei a senti-la de forma diferente. Ela não era apenas uma punição; era um lembrete. Um lembrete de que eu ainda estava vivo, que ainda havia algo que eu precisava fazer. Ace sabia disso. Ele sabia que, no fim, a dor me transformaria.
Quando as correntes finalmente começaram a se afrouxar, eu não era mais o mesmo. Não havia mais raiva ou arrogância. Só um propósito frio e determinado: corrigir meus erros. Olívia. Ela precisava de mim. E eu não podia mais fugir.
Ace olhou para mim, o rosto endurecido, mas os olhos carregando algo entre decepção e preocupação. Seus braços estavam cruzados, e ele parecia avaliar o estado deplorável em que eu estava. Finalmente, ele falou, a voz firme como uma lâmina, mas carregando um peso emocional inconfundível.
— Você está um lixo, Vicent. Olhe para você.
Eu tentei responder, mas minha garganta seca apenas permitiu um sussurro rouco. Minhas mãos tremiam, os dedos magros e sem força, como se cada grama de poder que um dia tive tivesse sido drenada. Eu ergui o olhar para ele, buscando algum tipo de ajuda, mas só encontrei sua expressão severa.
— Estou faminto... — murmurei, quase implorando. — Preciso de uma alma... algo para me sustentar.
Ace soltou uma risada amarga, balançando a cabeça lentamente.
— Não. Nada disso. Chega de se alimentar das misérias alheias. — Ele se inclinou para mais perto, seu rosto agora a poucos centímetros do meu. — Você já destruiu o suficiente, Vicent. Está na hora de consertar as coisas.
Desviei o olhar, envergonhado. As palavras dele cortavam mais fundo do que qualquer corrente mágica. Eu sabia que ele estava certo, mas a fome, a dor, a culpa... tudo parecia esmagador.
— Ace... — comecei, tentando justificar minha fraqueza, mas ele levantou a mão, me interrompendo.
— Nada de desculpas. — Sua voz ficou mais suave, mas não menos determinada. — Você acha que é o único que sofreu? Que o mundo inteiro deve pagar pelo que aconteceu com você? Não é assim que funciona, irmãozinho.
Ace se aproximou ainda mais, segurando meu rosto com ambas as mãos. Seus olhos brilhavam com uma mistura de raiva e amor.
— Eu amo você, Vicent. Por mais que me irrite, por mais que você seja teimoso, eu te amo. Mas não posso mais assistir você se destruir e arrastar outros com você.
Minha visão ficou embaçada, e eu senti um nó na garganta. Ace não era de demonstrar sentimentos tão abertamente. Suas palavras tinham um peso que era impossível ignorar.
— Por favor, Vicent... — Ele apertou meu rosto com mais firmeza. — Faça o que tem que fazer. Corrija seus erros. Está na hora de crescer.
Ele me soltou e deu um passo para trás, cruzando os braços novamente, como se estivesse esperando uma resposta. E pela primeira vez em anos, senti algo além de dor: esperança misturada com medo.
— Tudo bem... Eu não quero mais viver nessa prisão. Eu vou cumprir o acordo. — Suspirei profundamente, deixando a confissão escapar como um peso que carregava há séculos.
Ace permaneceu imóvel, mas seu olhar dizia mais do que qualquer palavra. Havia alívio em seus olhos, mas também algo que parecia ser pena. Ele sabia o que essa decisão significava para mim, o quão difícil era abandonar o orgulho que me sustentava por tanto tempo.
— Finalmente, Vicent. Você deu o primeiro passo. — Sua voz soava firme, mas havia uma ternura que eu não conseguia ignorar. — Eu sabia que esse momento chegaria, mas você é teimoso demais.
— Teimoso ou não, Ace, eu não posso continuar assim. — Olhei ao redor, para a escuridão que sempre me envolvia. Era sufocante, como se estivesse viva, se alimentando da minha agonia. — Essa prisão não é só física, é aqui. — Toquei meu peito, indicando o vazio que crescia dentro de mim. — Estou preso a mim mesmo.
Ace deu um passo à frente, sua mão pousando em meu ombro com um peso que parecia tanto uma âncora quanto um suporte.
— Você sabe o que precisa fazer, Vicent. É hora de crescer, de deixar o passado e as desculpas para trás. Faça o que é certo, não só para ela, mas para você.
— Será que ela me perdoará? — murmurei, encarando o chão.
Ace sorriu de leve, mas não respondeu. Em vez disso, apertou meu ombro e virou-se, como se me deixasse com meus próprios pensamentos. A escolha era minha. Sempre foi.
Agora, cabia a mim encontrar um caminho para a redenção e, talvez, para a liberdade.
A decisão estava tomada. As correntes que antes me prendiam não haviam desaparecido completamente, mas agora pareciam afrouxadas, como se estivessem esperando meu próximo movimento para decidir se apertariam novamente ou me dariam liberdade. Suspirei, encarando Ace, meu irmão, que permanecia em silêncio. Ele sabia o peso dessa decisão.
— Preciso encontrá-la. — Minha voz soou firme, mas a insegurança se escondia sob o tom de determinação. Era estranho admitir, mas havia um misto de relutância e urgência em mim. Eu queria cumprir o acordo, mas ao mesmo tempo, a ideia de encarar aquela garota depois de tudo o que aconteceu me deixava inquieto.
Ace arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços enquanto me observava com atenção. Era como se estivesse analisando cada fragmento do meu ser, esperando algum sinal de fraqueza. Finalmente, ele falou, com a voz baixa e séria:
— Comece procurando pelas escolas da cidade. Ela deve ter uns dezoito anos agora. Não deve ser tão difícil encontrá-la, considerando o tempo que passou desde que você a viu pela última vez.
A menção da idade dela me pegou de surpresa. Oito anos haviam se passado desde que fiz o acordo, desde que prometi proteger aquela pirralha. O tempo voara enquanto eu estava preso na escuridão, mergulhado em sofrimento e dor. E agora, ela não era mais a garotinha assustada que eu conhecia.
— Verdade... — murmurei, como se processasse a informação pela primeira vez. — A pirralha deve estar por aí, vivendo a vida dela.
Meu tom era levemente sarcástico, mas Ace não riu. Ele permaneceu sério, os olhos fixos em mim, como se quisesse reforçar a gravidade da situação.
— Vou tomar um banho e correr atrás da desgraçada. — O sarcasmo em minha voz dessa vez era mais evidente, uma forma de mascarar meu próprio nervosismo.
Ace não respondeu imediatamente. Ele apenas me observou por mais alguns segundos, como se estivesse escolhendo cuidadosamente as próximas palavras. Então, finalmente, ele quebrou o silêncio:
— Vicent, eu não me importo como vocês vão lidar um com o outro. Isso é problema seu. O que importa é que você cumpra o seu dever. Proteja-a, faça o que for necessário para garantir que ela esteja segura. Depois disso...
Ele fez uma pausa, seu olhar se tornando ainda mais frio e distante.
— Depois disso, sei lá... Mate ela, devore ela, o que quiser. Eu realmente não me importo. — Disse Ace saindo da sala.
O dia começou sombrio, com nuvens cinzentas cobrindo o céu e um vento frio que parecia querer cortar minha pele. Não que eu me importasse com o clima — já experimentei sensações muito piores no Inferno —, mas ele parecia refletir meu humor. Hoje era o dia em que eu tinha que cumprir uma maldita promessa feita há oito anos, e isso me enojava.
Caminhei pela primeira escola, observando os portões lotados de adolescentes uniformizados entrando apressados. Não fazia ideia de como Olívia se parecia agora, o que tornava minha tarefa ainda mais irritante. Tudo o que eu tinha era a lembrança de uma criança assustada, com olhos grandes demais para o rosto. Agora ela seria uma mulher, mas será que aqueles olhos continuavam os mesmos?
Eu entrei. O cheiro era terrível, uma mistura de suor e desinfetante barato. Adolescentes me olhavam com desconfiança enquanto eu cruzava os corredores. Uma garota de cabelo tingido de azul deu uma risadinha, como se estivesse impressionada com minha aparência. Ignorei. Eu não estava aqui para brincar.
Fui direto à administração, aonde uma recepcionista me olhou com suspeita.
— Posso ajudar? — Ela perguntou, arrastando as palavras como se cada sílaba fosse um sacrifício.
— Estou procurando uma aluna chamada Olívia. — Respondi, sem paciência.
— Qual o sobrenome dela? — Retrucou a mulher, ajeitando os óculos.
— Apenas Olívia. Não tem sobrenome. — Meu tom era cortante.
Ela bufou, revirando os olhos enquanto vasculhava os arquivos no computador. Alguns minutos depois, levantou o olhar e disse:
— Não temos nenhuma aluna chamada Olívia aqui.
Suspirei, irritado. Sem agradecer, virei as costas e saí.
O mesmo processo se repetiu em outras duas escolas, cada uma mais decadente do que a anterior. O tempo parecia arrastar-se, e minha paciência, que já era limitada, estava acabando. A cada negativa, o desgosto em mim crescia. Por que Ace achava que isso valia meu tempo? Eu era um demônio, não uma babá.
Cheguei à quarta escola no início da tarde. A fome começava a me incomodar, mas não era algo que comida humana pudesse saciar. Eu precisava de uma alma, algo que pudesse me alimentar de verdade.
Essa escola era maior, mais limpa, mas ainda assim, o cheiro de miséria pairava no ar. Novamente, me dirigi à administração, desta vez decidindo ser mais direto.
— Estou procurando uma garota chamada Olívia. Ela tem dezoito anos. Provavelmente não tem sobrenome registrado. — Meu tom era frio, mas firme.
A recepcionista olhou para mim com uma expressão de desconfiança, mas, por sorte, foi mais eficiente que as outras.
— Não temos ninguém com esse nome registrado. Mas se ela for nova, pode estar na lista de espera. — Ela clicou algumas vezes no computador, antes de balançar a cabeça. — Nada aqui.
Saí dali sem responder, irritado e frustrado. Já havia perdido metade do dia nessa busca ridícula, e ainda não tinha uma pista sequer.
Enquanto caminhava pelas ruas da cidade, algo chamou minha atenção: uma escola menor, mais modesta, quase escondida entre dois prédios. Havia algo nela que me fez parar. Não era uma sensação comum, mas uma intuição, algo que eu não costumava ignorar.
Ao entrar, o ambiente era silencioso, quase melancólico. Fui direto ao balcão da administração, como antes.
— Estou procurando uma garota chamada Olívia. — Disse, de forma direta.
A mulher atrás do balcão, uma senhora de cabelos grisalhos, olhou para mim com um leve sorriso.
— Temos algumas alunas chamadas Olívia. Você sabe o sobrenome dela?
— Não. Só o primeiro nome. Ela provavelmente não tem sobrenome registrado. — Respondi, começando a perder a paciência.
A senhora franziu o cenho, parecendo pensar por um momento.
— Tínhamos, sim, uma Olívia sem sobrenome. Mas isso foi há alguns anos. Hoje em dia, ela já deve ter uns vinte anos.
As palavras dela me acertaram como um soco. Então ela já havia deixado o colégio. Era claro que eu tinha subestimado o tempo que passou. Olívia não era mais uma criança, nem uma adolescente perdida. Ela era uma adulta agora, e minha busca acabava de se complicar ainda mais.
— Sabe onde posso encontrá-la? — Perguntei, sem deixar transparecer minha frustração.
— Não, sinto muito. Ela se formou e não deixou informações de contato. — A mulher parecia sincera, mas não me ajudava em nada.
Agradeci de forma breve, mais por manter as aparências do que por cortesia, e saí da escola.
O dia estava chegando ao fim, e a sensação de vazio dentro de mim era insuportável. Não era apenas fome ou exaustão; era algo maior, uma mistura de frustração e raiva de mim mesmo por ainda não ter encontrado Olívia.
Se ela tivesse realmente vinte anos, a cidade seria um lugar grande demais para procurar. Mas eu não desistiria. Amanhã seria outro dia, e eu encontraria aquela garota, nem que tivesse que vasculhar cada canto dessa maldita cidade.
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Atualizado até capítulo 35
Comments
Williane Paiva
20 pq ela tem 12
2025-01-30
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