cap 3

Minha vila, Scorn, é um lugar estranho. Papai diz que sempre foi assim, mas para mim, é difícil entender por que as coisas aqui são como são. Às vezes, parece que a vila foi esquecida pelo mundo lá fora, presa em um tempo que nunca avança.

As ruas são de pedra, mas muitas estão rachadas e cobertas de lama. As casas são pequenas e feitas de madeira escura, com telhados inclinados e chaminés que soltam fumaça o dia inteiro. Algumas são tão velhas que parecem estar prestes a cair. Outras, no entanto, brilham como se fossem recém-construídas. É estranho ver coisas tão diferentes coexistindo aqui.

As pessoas da vila também são assim: algumas parecem normais, como eu, papai e mamãe. Mas outras... bom, outras não são. Há o senhor Garret, que mora perto da escola e não tem olhos, só buracos onde deveriam estar. Mesmo assim, ele sabe exatamente onde está tudo e sempre nos cumprimenta como se pudesse nos ver. Tem a dona Marga, que é enorme – mais alta que qualquer homem da vila – e anda com as costas tortas, carregando um carrinho de mão cheio de galinhas mortas. Ela diz que as galinhas falam com ela, mas eu nunca ouvi nada.

Às vezes, vejo pessoas que não sei se são da vila ou não. Elas ficam nas sombras, suas silhuetas deformadas, como se seus corpos tivessem sido puxados ou esticados de maneiras impossíveis. Eu tento não olhar muito para elas. Mamãe diz que é falta de respeito. Papai diz que elas "merecem o que têm." Eu não sei o que isso significa.

A vila tem cheiros diferentes, também. Alguns são bons, como o pão fresco da padaria. Mas outros... outros são horríveis. No mercado, por exemplo, há um açougue onde as carnes penduradas não parecem de animais normais. Às vezes, as peças ainda se mexem, como se estivessem vivas. A dona Clara, que cuida do mercado, diz que são "especiais." Eu prefiro não perguntar o que isso significa.

No centro da vila, há um poço. Mamãe sempre diz para eu nunca me aproximar dele. "É perigoso," ela diz. "Muitos já caíram lá." Mas as histórias que ouvi na escola são diferentes. Dizem que o poço não tem fundo e que ele sussurra coisas à noite. Eu nunca ouvi nada, mas, às vezes, vejo crianças jogando pedras lá dentro e ouvindo atentamente, como se esperassem uma resposta.

Todo domingo, temos que ir ao templo. É um lugar grande, de pedra, com um teto tão alto que parece tocar o céu. Lá dentro, tudo é escuro, e o único som é o eco dos nossos passos. As pessoas se ajoelham e rezam, mas eu nunca entendi para quem ou para o quê. Tem uma estátua enorme no altar – uma figura com várias cabeças e braços – que me dá calafrios. Papai diz que é o protetor da vila, mas eu não sei. Sempre que olho para a estátua, sinto que ela está olhando de volta, mesmo que seus olhos estejam fechados.

Os adultos da vila também fazem coisas estranhas. Às vezes, à noite, ouço cânticos vindo do templo. Eles dizem que são orações, mas soam mais como gritos. Mamãe diz para eu não me preocupar, que é só tradição. "É assim que protegemos a vila," ela diz. Mas eu fico me perguntando: protegemos de quê?

Mesmo com todas essas coisas, Scorn é o único lugar que conheço. É a minha casa. Papai sempre diz que a vila tem tudo o que precisamos, e acho que ele está certo. Temos escola, mercado e até uma floresta que ninguém ousa atravessar. Mas, às vezes, eu me pergunto como seria viver em outro lugar – um lugar onde as pessoas não tivessem buracos no rosto ou falassem com galinhas mortas.

À noite, quando estou na cama e ouço os sons da vila – os passos estranhos, os murmúrios, e os gritos abafados do templo – fecho os olhos e me imagino em um lugar diferente. Mas, quando durmo, estou de volta à floresta. E, de algum jeito, acho que a floresta tem mais a ver com Scorn do que eu gostaria de admitir.

[...]

Estava voltando para casa depois da escola, com os ombros cansados de carregar minha mochila pesada e as pernas doendo de tanto correr no parquinho. O sol já estava se escondendo atrás das árvores que cercavam Scorn, tingindo o céu com um laranja desbotado que anunciava o fim do dia.

Eu havia brincado tanto no intervalo que mal conseguia me manter em pé, mas mesmo assim, sentia uma satisfação dentro de mim. Hoje foi divertido. Na aula, aprendi um pouco de matemática, mesmo que fosse difícil, e o lanche que mamãe preparou, aquele pão de batata fofinho com suco de maçã, tinha sido a melhor parte.

As ruas de Scorn estavam mais vazias do que de costume. Algumas pessoas ainda estavam nas portas de suas casas, mas muitas já tinham entrado, talvez por causa do céu que parecia ameaçar chuva. Passei pela dona Marga, que empurrava seu carrinho cheio de galinhas mortas. Ela me olhou com seus olhos pequenos e brilhantes, mas não disse nada. Apenas murmurou algo para o carrinho, como sempre fazia.

Cheguei em casa com o cheiro familiar de comida sendo preparada. A porta rangeu ao se abrir, e eu vi mamãe na cozinha, mexendo em uma panela no fogão. Ela parecia cansada, com o cabelo preso em um coque desalinhado e o avental sujo de farinha.

— Oi, mamãe — murmurei, jogando minha mochila em um canto.

— Oi, querida. Como foi a escola? — perguntou ela, sem tirar os olhos da panela.

— Foi legal. Tivemos matemática, e eu consegui resolver uma conta! E o intervalo foi divertido. Brinquei no parquinho e joguei bola.

Ela sorriu levemente, como se quisesse mostrar que estava feliz por mim, mas não tinha muita energia para conversar. Mamãe sempre parecia ocupada, como se tivesse o peso do mundo nos ombros.

— O jantar já está quase pronto. Vá lavar as mãos, está bem?

Fiz o que ela pediu, indo até o balde com água que ficava perto da pia. A água estava fria, mas refrescou meus dedos sujos de poeira do parquinho. Enquanto esfregava as mãos, ouvia o som do caldo borbulhando na panela e o estalo da lenha queimando no fogão. Aquele som sempre me fazia sentir em casa, mesmo nos dias em que papai estava de mau humor.

Voltei para a cozinha e sentei na cadeira, observando mamãe colocar pedaços de carne no caldo. A fumaça subia lentamente, e o cheiro era reconfortante.

— Está fazendo sopa? — perguntei.

— Sim, sua preferida — disse ela, mas sua voz estava distante, quase como se estivesse pensando em outra coisa.

Eu sabia que mamãe sempre se preocupava com tudo: com a casa, com papai, comigo. Às vezes, queria perguntar se ela estava bem, mas nunca tinha coragem. Ela sempre parecia tão forte, como se nada pudesse derrubá-la, mas eu sabia que não era bem assim.

Enquanto esperava o jantar ficar pronto, me recostei na cadeira e olhei pela janela. O céu estava ficando mais escuro, e as árvores pareciam sombras altas e assustadoras. Em Scorn, a noite chegava rápido, como se o mundo inteiro estivesse correndo para se esconder de alguma coisa.

Naquele momento, ouvi o portão da frente ranger. Era papai chegando do trabalho. Senti um nó no estômago, como sempre acontecia quando ele chegava. Ajustei minha postura na cadeira, tentando parecer tranquila, e esperei que ele entrasse.

Enquanto olhava pela janela, meus olhos começaram a se perder nas sombras das árvores que cercavam a vila. A luz do fim de tarde já estava quase desaparecendo, e a escuridão começava a tomar conta do lugar. As árvores sempre pareciam maiores à noite, como se tivessem crescido em silêncio quando ninguém estava olhando.

Foi então que percebi algo. Entre as sombras, uma silhueta surgiu. Fiquei congelada por um instante, meus olhos tentando focar naquela figura que parecia familiar. Cabelos longos e loiros brilhavam sob os últimos raios de luz. Meu coração começou a bater mais rápido. Eu não podia acreditar no que estava vendo.

"Não pode ser..." pensei, mas sabia que era.

Era ele. Vicent. O homem dos meus sonhos.

Eu pisquei, tentando ter certeza de que não estava imaginando coisas. Mas quando voltei a olhar, a figura não estava mais lá. Ele havia sumido, como fumaça que desaparece no vento.

Meus dedos apertaram o parapeito da janela, e meu coração batia tão rápido que parecia querer sair do peito. Como ele podia estar aqui? Ele só existia nos meus sonhos. Era impossível, não era? Mas, ao mesmo tempo, eu tinha certeza de que o vi. Não era imaginação. Não podia ser.

O cheiro de sopa que preenchia a cozinha agora parecia distante. Mamãe continuava mexendo a panela, distraída, enquanto o som de passos pesados anunciava que papai estava entrando em casa. Tudo ao meu redor parecia normal, como sempre, mas dentro de mim, nada estava normal.

"Será que ele sabe onde eu moro?", pensei, olhando novamente para a floresta. "Ou será que eu estou enlouquecendo?"

— Olívia, você está bem? — a voz de mamãe me tirou do transe.

— Estou — respondi rapidamente, desviando o olhar da janela e tentando parecer calma.

Mas eu não estava. Eu sabia o que tinha visto. E, no fundo, sentia que isso era só o começo.

O jantar foi silencioso naquela noite. Mamãe colocou a sopa quente em nossas tigelas, o aroma reconfortante preenchendo a pequena sala. Eu segurei minha colher, mas não sentia muita fome. Minha mente ainda estava presa àquela silhueta que vi entre as árvores. Vicent. O nome dele parecia ecoar na minha cabeça, como um segredo que não devia ser dito em voz alta.

Papai estava sentado à mesa, como sempre, comendo rápido e sem olhar para ninguém. Mamãe tentava conversar com ele, perguntando sobre o trabalho, mas ele só resmungava respostas curtas. O clima na sala era pesado, como se um vento frio tivesse passado por ali e ficado preso.

Eu mexia na sopa com a colher, o líquido formando redemoinhos que me distraíam. Não queria falar, nem olhá-los muito. Apenas queria que o jantar acabasse logo. Papai me lançou um olhar rápido, seus olhos estreitos, como se tentasse descobrir o que eu estava pensando.

— Por que tá tão calada, Olívia? — ele perguntou, sua voz baixa e ríspida.

— Só estou cansada, papai — menti, sem levantar o olhar.

Ele resmungou algo que não entendi e voltou a comer. Mamãe olhou para mim, mas não disse nada. Talvez ela também soubesse que era melhor não prolongar a conversa.

Depois que terminamos, ajudei mamãe a levar as tigelas para a pia. Enquanto ela lavava a louça, fui até o quarto, esperando que ninguém me chamasse de volta.

Deitei-me e puxei o cobertor até o queixo, fechando os olhos com força. Queria dormir rápido, antes que as vozes começassem. Antes que os gritos e os sons de tapas invadissem a escuridão do quarto.

“Durma, Olívia. Só durma”, eu dizia para mim mesma, tentando ignorar os passos de papai pelo quarto e o som do colchão quando ele se sentava.

Mas mesmo com os olhos fechados, eu sentia o peso do que vinha. As noites sempre eram assim. Eu sabia que mamãe dizia gostar, mas isso não fazia sentido para mim. Como alguém podia gostar de gritos e tapas?

Enquanto esperava o sono me levar, pensei em Vicent. No brilho frio de seus olhos e na forma como ele desapareceu entre as árvores. Talvez, nos sonhos, ele estivesse me esperando de novo. O pensamento me deu um arrepio, mas, de alguma forma, também me deixou curiosa.

Minha respiração foi ficando mais lenta. A realidade foi desaparecendo aos poucos, e a escuridão do sono finalmente chegou, me carregando para outro lugar.

E lá estava eu novamente, na floresta, envolta pela escuridão úmida e pelo som das árvores sussurrando ao vento. O chão estava frio sob meus pés descalços, e tudo parecia mais real do que nunca. De repente, ouvi um rugido. O tigre. Meu coração disparou, mas, desta vez, havia algo diferente. Ele saiu das sombras, sua pelagem negra brilhando à luz prateada da lua. Seus olhos dourados me encaravam com uma intensidade que me paralisou.

Ele rugiu outra vez, mas não se moveu. Fiquei imóvel, segurando a respiração, esperando que ele saltasse e me dilacerasse como nas outras vezes. Mas ele não atacou. Em vez disso, deu um passo à frente, depois outro, devagar, quase como se não quisesse me assustar.

Quando passou por mim, olhou para trás, seus olhos fixos nos meus, como se esperasse algo. Ele queria que eu o seguisse. Meu corpo hesitou, mas meus pés se moveram por conta própria, seguindo aquele enorme animal pelas sombras da floresta. Cada passo parecia me levar para mais longe de Scorn, para um lugar que só existia nos meus sonhos.

Logo, a grande porta espelhada apareceu entre as árvores, brilhando como uma joia perdida no meio do nada. O tigre parou ao lado dela e me olhou novamente, antes de desaparecer na escuridão. Engoli em seco, minha mão tremendo enquanto tocava a superfície fria do espelho. A porta se abriu com um leve rangido, e entrei na casa.

— Senhor Vicent? — minha voz saiu trêmula, quase inaudível.

Os corredores estavam exatamente como da última vez. As paredes eram altas e cobertas por papéis de seda ornamentados, as luminárias douradas lançavam uma luz suave e quente, e o chão brilhava como mármore polido. O ar era pesado, mas não desconfortável, carregado com aquele cheiro doce e enjoativo que parecia sempre acompanhá-lo.

Caminhei lentamente, cada passo ecoando pelo corredor vazio. Lá estava ela: a porta aberta de onde o vapor quente escapava, carregando aquele perfume forte de flores e algo que eu não conseguia identificar. Meu coração batia mais rápido a cada passo, mas a curiosidade me empurrava para frente.

Entrei na sala sem avisar. E lá estava ele.

Senhor Vicent estava sentado em uma grande banheira de madeira. A água estava calma ao redor de seu corpo, e seus olhos marcantes estavam fixos em mim, um sorriso quase imperceptível curvando seus lábios. Seus pulsos estavam amarrados com correntes prateadas, mas elas não estavam conectadas a nada. Apenas flutuavam no ar, como se fossem vivas.

Meu rosto ficou vermelho instantaneamente, e eu tampei os olhos com as mãos.

— Desculpe! Eu não sabia que você... — gaguejei, sem saber como continuar.

Vicent soltou uma risada baixa, rouca, que reverberou pelo ambiente.

— Ora, ora, Olívia... Você finalmente voltou. — Sua voz era suave, mas carregada de algo que me fez arrepiar até a espinha. — Não precisa se esconder.

— Eu... eu não sabia que era você aqui dentro — murmurei, mantendo as mãos nos olhos.

— E quem mais seria? — Ele riu novamente. — Você sabe que esta casa é minha.

Abaixei as mãos lentamente, ainda hesitante, mas não consegui evitar olhar para ele.

— Por que você está preso? — perguntei, minha voz quase um sussurro.

— Ah, pequena Olívia... — respondeu ele, seu sorriso crescendo. — São correntes da minha própria escolha. Mas tudo tem seu propósito, não é?

Eu não entendia o que ele queria dizer, mas algo dentro de mim dizia que eu devia ficar ali. Que eu precisava saber mais.

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