Cap 4

Eu continuava parada ali, com o olhar fixo no senhor Vicent, tentando entender o que tudo aquilo significava. A banheira de madeira parecia engolir parte dele, deixando apenas seus ombros e cabeça visíveis, enquanto as correntes flutuavam ao redor como serpentes. Ele me olhava com um misto de curiosidade e... algo que eu não conseguia decifrar.

Respirei fundo, tomando coragem para falar.

— Senhor Vicent... Quem é você? — minha voz saiu hesitante, quase um sussurro.

Ele ergueu uma sobrancelha e sorriu levemente, como se minha pergunta o divertisse.

— Essa é uma pergunta importante para uma garotinha como você, Olívia - respondeu ele, inclinando a cabeça de lado. - Mas e você? Quem é você para perguntar algo assim?

Franzi o cenho, confusa. Era claro quem eu era.

— Eu sou... eu sou Olívia. - Minha voz tremeu um pouco, mas continuei. - Mas isso não responde minha pergunta. Por que eu sempre sonho com você?

Ele riu, uma risada baixa e rouca que ecoou pela sala.

— Sonhos são coisas estranhas, não são? — ele murmurou, passando uma mão molhada pelo cabelo loiro. — Você acha que eu tenho as respostas, pequena?

— Você deve saber! — insisti, meu tom subindo um pouco. —  Eu sempre venho parar aqui, sempre vejo você. Não faz sentido!

Ele me observou por um momento, seus olhos brilhando com aquela luz estranha que parecia me atravessar. Então, ele suspirou, como se estivesse cansado ou talvez frustrado.

— Acredite em mim, Olívia, eu também não sei por que você está aqui. — Sua voz soava mais séria agora, quase... triste. — Você acha que escolho isso? Não. Eu não sei o que nos liga, mas sei que você aparece toda vez.

Eu pisquei, surpresa. Não era a resposta que esperava.

— Você... não sabe? — perguntei, minha voz mais baixa agora.

Ele balançou a cabeça lentamente, as correntes ao redor de seus pulsos tilintando suavemente.

— Olívia, existe muitas coisas que eu não sei... Mas sei que estamos ligados, talvez eu seja o seu anjinho da guarda.

Vicent levantou-se da banheira com uma graça assustadora, as correntes ainda flutuando ao seu redor, deslizando no ar como serpentes vivas. Seus olhos dourados brilhavam com uma intensidade que me deixava desconfortável, mas eu não conseguia desviar o olhar. Ele deu um passo à frente, a água escorrendo de sua pele pálida, mas parou a uma distância que parecia calculada, quase como se não quisesse me assustar demais.

— Talvez eu seja o seu anjinho da guarda, Olívia. — Sua voz era suave, quase gentil, mas carregava um tom que me fazia sentir pequena e vulnerável. — Para uma criança de dez anos, você é muito mais esperta do que imaginei.

Eu recuei um passo, ainda segurando minha coragem, mas meu coração batia rápido.

— Você não parece um anjo... — murmurei, franzindo o cenho. — Anjos são diferentes, não são? Eles têm asas e uma auréola e... eles não falam como você.

Ele sorriu, um sorriso que parecia dividir seu rosto entre diversão e algo mais sombrio.

— Ah, mas quem disse que os anjos precisam se parecer com o que você imagina? — respondeu ele, inclinando a cabeça ligeiramente. — Talvez os verdadeiros anjos sejam um pouco mais... complicados.

Suas palavras me confundiam, mas havia algo na maneira como ele falava que fazia parecer que tudo era um enigma, e eu odiava não saber as respostas.

— Se você é meu anjo, então... por que você aparece só nos meus sonhos? E por que eu acordo com machucados? — perguntei, cruzando os braços.

Vicent piscou lentamente, como se estivesse pensando.

— Essa é uma boa pergunta, Olívia. Talvez você esteja me vendo como sou, ou talvez... — Ele parou, sorrindo novamente, mas dessa vez era um sorriso mais sombrio. — Talvez você esteja criando suas próprias respostas para o que não entende.

Franzi o cenho ainda mais, tentando decifrar o que ele queria dizer.

— Você nunca me responde direito... — resmunguei. — Não sei por que você diz que é meu anjo, mas eu não confio em você.

Ele soltou uma risada baixa, que parecia ecoar pelas paredes da sala.

— Olívia... — chamou Vicent, sua voz agora baixa e gelada, como o vento que atravessava as árvores da floresta nos dias mais frios. Ele se agachou na minha frente, ficando na minha altura. Seus olhos dourados estavam ainda mais intensos, como se quisessem perfurar minha alma.

— Olívia, o que acontece enquanto você dorme? — ele perguntou, sua mão pálida se aproximando lentamente de mim.

Eu senti um arrepio percorrer meu corpo. Ele sabia de algo? Ele queria me assustar? Antes que eu pudesse responder, seus dedos tocaram meu braço, gelados como gelo.

Foi nesse instante que tudo desapareceu.

Meus olhos se abriram de repente, e eu estava de volta à minha cama. O quarto estava escuro, apenas a luz da lua entrando pelas frestas da janela. O coração ainda batia forte, mas não havia mais floresta, não havia mais Vicent, apenas o silêncio inquietante da casa.

Olhei ao redor. Mamãe e papai não estavam na cama, como sempre. Era como se eles desaparecessem todas as manhãs antes de eu acordar. Não era algo estranho para mim; já estava acostumada com isso.

Eu suspirei e me sentei na cama, ainda sentindo os resquícios daquele sonho estranho e intenso. O toque gelado de Vicent parecia permanecer em meu braço, mesmo que eu soubesse que era apenas imaginação.

“Era só um sonho”, pensei, tentando me convencer enquanto espantava os resquícios de medo. “Sempre é só um sonho.”

Levantei-me devagar, os pés descalços tocando o chão frio de madeira. Caminhei até minha gaveta para pegar meu uniforme da escola. As manhãs eram sempre as mesmas: acordar sozinha, me arrumar e sair para enfrentar mais um dia de aulas.

Enquanto trocava de roupa, olhei pela janela. A vila de Scorn ainda estava coberta por uma fina neblina, como sempre. Mas, por um momento, senti uma sensação estranha, como se algo ou alguém estivesse me observando de longe, escondido entre as árvores.

Sacudi a cabeça, afastando os pensamentos. Não podia me atrasar para a escola. Peguei minha mochila e me preparei para sair, mas algo em mim sabia que aquela não seria uma manhã comum. Vicent, seus olhos, suas perguntas, seu toque... Tudo parecia mais real do que qualquer outro sonho.

Eu não sabia o que significava, mas tinha certeza de uma coisa: o dia estava apenas começando, e algo me dizia que ele estaria esperando por mim novamente, de alguma forma.

"O que acontece enquanto você dorme?"

"O que acontece enquanto você dorme?"

Essa pergunta ecoava na minha cabeça como um sino, repetindo sem parar. Era como se Vicent estivesse ali, sussurrando diretamente no meu ouvido, mesmo enquanto eu tentava prestar atenção na aula. Mas eu não conseguia.

O parquinho, onde eu sempre corria e brincava, parecia menos interessante. Nem me importei quando meus colegas me chamaram para a gangorra. Até os insultos do Bobby, que adorava implicar comigo, passaram despercebidos. Ele me chamou de "esquisita" mais de uma vez, mas suas palavras eram como vento — eu mal notava.

Na hora do lanche, abri minha marmita esperando aquele gosto familiar que sempre me deixava feliz. Mas algo estava errado.

O pão de batata, que sempre tinha um toque doce da geleia de pêssego que mamãe misturava na massa, estava seco e sem gosto. A carne do recheio parecia... diferente. Meio fibrosa, com um cheiro estranho que me fez hesitar antes da primeira mordida.

Engoli mesmo assim, mas o sabor era tão ruim que preferi deixar o restante na marmita. O suco de maçã foi a única coisa que desceu bem, fresco e doce como sempre.

"O que acontece enquanto você dorme?"

A pergunta continuava me perseguindo, mais insistente que o Bobby ou até mesmo as broncas da professora. Por que Vicent perguntaria isso? Ele sabia algo sobre mim que nem eu sabia?

Quando o sinal tocou e todos correram para casa, peguei meu caminho de volta como sempre. As ruas estreitas de Scorn estavam silenciosas, com a neblina começando a se dissipar enquanto o sol baixava no horizonte. O ar tinha aquele cheiro estranho de sempre, algo que parecia misturar terra úmida, fumaça e algo metálico.

Minhas pernas me levaram para casa automaticamente, mas minha cabeça estava longe. Queria respostas, mas não sabia onde ou como encontrá-las.

Quando cheguei, mamãe e papai estavam lá, me esperando como de costume. Mamãe me abraçou, o que era raro, e disse:

— Como foi o seu dia, querida?

Eu não respondi de imediato, apenas olhei para ela. O cheiro da cozinha era bom, mas não como antes. Era... diferente.

— Foi normal, acho. — murmurei, desviando o olhar para papai, que estava sentado à mesa, lendo algo que não consegui identificar.

Mamãe sorriu, mas parecia distraída, como se estivesse pensando em outra coisa.

— Vá lavar as mãos para o jantar.

Fiz o que ela pediu, mas aquele sentimento de desconforto não me abandonava. Enquanto esfregava as mãos na pia, olhei para o meu reflexo no espelho. Meus olhos pareciam mais fundos, mais cansados, como se eu não tivesse dormido direito há dias.

"O que acontece enquanto você dorme?"

Eu ainda não sabia, mas, de alguma forma, tinha certeza de que a resposta estava me esperando, escondida na escuridão da próxima noite.

"Olívia, o que acontece enquanto você dorme ?"

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