Reconstrução

— Ai, caralho… 

O sol fazia com que seu brilho redirecionasse diretamente para meus olhos, fazendo-me despertar daquele estado de sono profundo após os eventos passados. Ao me levantar um pouco da cama onde estava, logo sou invadido pelas mulheres da família, e o Sir Joann que é o paizão. 

— Boris! — Falavam em sintonia. 

O abraço quente e apertado me deixava mal acostumado, fazendo com que minha vergonha se manifesta-se nas bochechas ficando vermelhas, as mesmas que logo eram puxadas por Madame Harlot. 

— O que eu te disse sobre nos preocupar, seu moleque estúpido?! 

— Desculpa, desculpa! 

— Senhorita, não deveria tentar o apagar logo após ele ter acordado. — Pontua Joann. 

— É verdade… 

Depois dos olhos acostumarem com a luz, percebo que estava na ala médica de Camlann, com os aparelhos ligados e conectados nas principais partes do meu corpo. Lembro do ataque que me fez apagar e passo a mão no meu pescoço, sentindo uma leve diferença. 

— Eu não sei que feitiçaria você usou para manter a cabeça no lugar, mas foi o suficiente para podermos cuidar de você. — Harlot estava claramente preocupada com a situação. — No entanto, essa cicatriz não foi possível de ser retirada. 

Me entregando um espelho, conseguia identificar a tal cicatriz que rodeava meu pescoço. Era como uma das marcas infernais dos Goetia, ou as marcas angelicais dos Arcanjos, leve como bem entender. Basicamente, era uma cicatriz que resultava da regeneração absurda para evitar a morte, causando algumas listras a aparecer na pele que foi deixada de lado pra garantir a sobrevivência. 

— Mais uma coisa pra contar história, tá pago. 

Brinco para amenizar o clima tenso da ala. Lembrando da equipe que ajudou na eliminação da calamidade, questiono:

— E o plano? Deu tudo certo? 

— Houveram poucas fatalidades, a maioria foram de velhos que estavam prontos para garantir a segurança da nova geração. — Miriam abria a cortina de vez. — Além disso, nenhum dos seus amigos ficou tão ferido quanto você. O máximo que receberam foi uma magia curativa e estavam prontos para ajudar na reconstrução da vila acoplada a nossa casa. 

— Reconstrução? 

— Ah, tem um tempo que já estão fazendo. — Harlot bebia vinho enquanto explicava. — O Luke e o Mordred estão ajudando, basicamente a ideia é mantê-los por perto para proteção, além de que em troca vão ser parte do exército do Mordred, caso ele precise. 

— O que, convenhamos, não vai ocorrer tão cedo. — Joann ria da ideia. 

Em meio a faixas com ervas para cicatrização avançada e algumas curas amplificadas com runas, percebi que talvez minha recuperação teria demorado mais do que imaginei. 

— Quanto tempo eu fiquei dormindo? 

— Uma semana inteira. — Miriam sentava do meu lado. — Seu corpo estava dando um pane total, não tinha como te curar normalmente, então fiz o meu melhor pra ajudar na regeneração. 

— Ah é, nunca falei isso pra vocês. — Aproveitei o momento para demonstrar uma pequena marca perto do coração. — Meio que não tenho um núcleo de mana, então fico dependente do meu físico e alma. Acho que é por isso que ele rejeitou a cura com mana. 

— Poderia ter nos avisado isso antes de quase morrer! 

O golpe de karatê da dama de cabelos cobrenses vermelhos quase me fazia desmaiar novamente. Por sorte, Joann estava lá para me ajudar a sair das tretas. 

— Trouxe as roupas para vestir antes de sair da ala médica. 

— Valeu. — Pegava o punhado de roupas. — A reconstrução ainda tá sendo feita? 

— Deve voltar em instantes, pararam para tomar um pouco de saquê e compartilhar experiências. 

— Entendi… 

Meio que lendo minhas intenções, Miriam acaba avisando:

— Não vá se colocando ao limite pra ajudar, Boris. Ainda está muito debilitado para forçar as transfigurações ou usar a força bruta. 

— Tá bem, eu não vou me forçar. Só vou ajudar no que posso, fechou? 

Recebo um belo cascudo de irmã mais velha e depois sou deixado a sós para poder me trocar. Ao menos, a sós pelos vivos, pois quando olho para o lado, estava mais uma vez Lilim me analisando de baixo para cima. 

— Rapaz, tem crescido bastante, luzinha. 

— De qual forma você fala, capetinha? 

— Dos dois. 

Além das intenções maliciosas que aquela Súcubo possuía, havia uma pitada de preocupação que se demonstrava pelos arranhos na poltrona em que estava sentada. 

— Foi bem perto de você partir dessa pra melhor, né? 

— Nem me fala.

— Eu não queria falar isso, mas… 

— Que foi? 

— Você sentiu medo da morte dessa vez, né? — Me encarava com seus olhos meio amarelados. — Deu pra sentir quando caiu no chão que nem saco de cimento. 

Fico por um momento em completo silêncio, lembrando da sensação estranha de ver todos tão desesperados e sem poder falar nada para os acalmar. 

— Foi a primeira vez que senti que poderia perder uma coisa tão importante, no caso, essa família de maníacos que decidi me juntar. 

— Você teve família nas outras encarnações, não? 

— Sim, mas percebi uma coisa nesses dias... — Vejo sua expressão curiosa. — Acima de tudo, eu sou o Boris. Posso ter a experiência e memórias das minhas outras encarnações, mas continuo tendo somente essa vida aqui para fazer a minha história. Até porque, a próxima não vai continuar a minha vida, ela vai seguir o próprio caminho. E assim deve ser.

Termino de me vestir, mesmo com as faixas tendo que ficar um pouco expostas. Chego perto de Lilim, arrumando seu cabelo comumente embaraçado, pondo uma flor branca para combinar com suas vestes enganosas.

— Por isso que eu quero tanto ter muitas experiência, quero aproveitar o melhor e o pior que estas terras podem proporcionar enquanto degusto cada vez mais do prazer que é viver.

— Haha, você é maluco, luzinha. — Levantava e dava um beijo na minha bochecha. — É pra ajudar a sarar. Vou ali cobrar os acordos que fiz com o lado que perdeu, até mais! 

— Vai nessa, agiota! 

Vejo a minha amiga demônio desaparecer enquanto adentra o plano espiritual, ou melhor, meus olhos deixam de ver tal plano. Ainda não me acostumei a realidade de ser um oráculo que não exerce a profissão. 

Antes de sair da sala, percebo alguns presentes deixados pra mim, envelopados ou não, com diferentes línguas. Em meio a quantidade absurda que chega a me assustar, um bem simples com a carta escrita em grego se encontrava um pouco acima, como se fosse uma das últimas a chegar.

“Para lembrar do nosso antigo encontro, contudo, celebrar seu novo passo de vida. Hades possui portões abertos para sua alma, e uma vaga sobrando para guarda do Elysium.”

— Asterius, Guarda de Perséfone.

— Idiota, não preciso de...

Calo minha boca ao ver aquele presente. Era simples como a embalagem, mas tão significativo quanto uma porrada na boca de um Deus. Saudades de fazer esse tipo de coisa.

Coloco a bandana listrada no braço, sentindo o pouco de magia que continha em sua composição. Ficando melhor espiritualmente, apenas saio da sala e da mansão para verificar os consertos que estavam fazendo na vila e os pontos novos elaborados. 

Chego perto da construção mais próxima, notando o quão bela fica com a manipulação do magma do vulcão, este que é retirado de um poço especial feito pelo líder da vila, como visto na grande placa na parte superior com o nome dele. Que cara eloquente. 

— SENSEI! 

Sou derrubado pelas costas por uma força incomum, caindo de cara no chão e comendo um pouco de grama. Ainda bem que sei aproveitar tudo e mais um pouco. 

— Desculpa… 

— Tá tranquilo. — Levanto, fazendo bastante esforço devido aos machucados. — Como cês tão Mofis? 

Levanto ambos, que ficaram segurando em meus antebraços, suspendendo-os no ar enquanto vía suas poucas bandagens cobrindo os ferimentos; destaque na nova cicatriz na barriga de Noemi. 

— Olha isso! — Apontava para os pontos que tiveram de ser feitos. — Eu tenho uma cicatriz! Eu sou uma guerreira! 

— Uma poderosa guerreira, que sobreviveu a uma calamidade e participou de seu extermínio. — Deixava ela e Ryou no chão. — É uma honra ter conhecido um talento bruto tão nato quanto o seu, Noemi! — Mexo em seu cabelo, fazendo o mesmo enquanto me virava pro pequeno dragão com estancamento na bochecha — Sem contar o seu talento mágico único, Ryou! 

— Obrigado… 

Subitamente, aquele clima alegre acaba se tornando um silêncio sem igual. Vejo as faces derrotadas e tristes de ambos os prodígios mirins. Entendendo que tinha algo de errado, pergunto:

— O que aconteceu? — Para criar um pouco mais de confiança, continuo a frase — Saibam que não tem uma única coisa que eu não saiba ajudar. 

Se entreolhando, os dois confiam em mim e acabam arrastando pelo pulso até um lugar onde se encontravam os restos das armas de vários guerreiros. 

Que eu me lembre, as armas de cada ser oriental são únicas, feitas para conter a parte espiritual do portador, logo, se tornando parte da história e vida do ser. Quando quebradas, só podem ser consertar as de formas completamente diferentes de uma espada qualquer, além de serem uma perca inestimável para o portador. Em meio ao cemitério, encontro a katana e kodashi da Oni e a longquan do Dragão. Ambos me entregam os restos e ficam com as cabeças baixas. 

Se elas se quebram, os espadachim declaram o fim de sua jornada e se aposentam de qualquer atividade marcial. Que idiotice, existem ainda mais formatos de espadas que ressuscitariam suas partes espirituais. Porém, aprecio sua visão sobre suas preciosas companheiras. 

— Esplêndido. — Meu elogio os faz erguerem suas cabeças e notarem minha feição. — A primeira vez que quebram suas armas em prol de um bem maior. — Analiso cada defeito causado. — Bem, vou garantir que não fragmentem na próxima vez com o uso excessivo de seus poderes divinos. 

— Espera, próxima vez?! 

— Tudo que esta quebrado, pode ser reforjado. — Enrolo as empunhaduras num pano. — E eu posso consertar até armas que se espalham em mim pedaços. Acham mesmo que não vou retribuir o favor de terem participado do abate do chifrudo? 

O brilho volta aos olhos dos jovens a minha frente, que se ajoelham e agradecem mesmo antes de terem seu presente dado. Meu coração palpita com tal ação, faz tanto tempo que não vejo a bondade do mundo que estava numa casca impenetrável pra me proteger. É bom ter esses pivetes para me quebrar no meio e ver o lado bom das experiências.

— Noemi-chan, me leve até o ferreiro mais próximo. Estou com um tanto de preguiça pra ir até a ferraria do Mordred, fica depois de onde Judas perdeu as botas. 

— Entendido. Por favor, me acompanhe! 

Andando pela Vila, vendo cada yokai rejeitado ajudando na reconstrução e ampliação naquela grande cidade onde todos morariam igualmente sobre proteção do vampiro, ajudo quando possível com minha força incomum, juntando a força de varias feras junto da minha, além da ajuda na cozinha com as minhas receitas rápidas e deliciosas, como o pão de queijo e coxinha. Demora um pouco, mas chegamos até a ferraria, que já estava completamente reformada. Deve ter sido prioridade, sabendo que a outra parte dessa ilha quer destruir esse lado. 

Vejo o trabalho que os ferreiros estão tendo ao montar novas armas para novos combatentes, além de me encontrar com o pai de Noemi, o senhor Shiba, que parece bem preocupado com a situação da filha, vindo abraça-la antes de continuar seu trabalho. 

Procuro por um lugar vazio naquela imensa forja, achando um lugar abandonado e com pouca lava por perto. Perfeito. 

Jogo as empunhaduras em cima da bigorna, organizando o lugar para o que estava prestes a acontecer, deixando uma marca para que não entrem na área de ação e acabem se machucando. 

— Faz bastante tempo que não faço isso. — Pego o grande martelo. — Acho que preciso voltar a treinar em mais de uma área de novo! 

Faço o necessário para montar as lâminas de cada espada separadamente, colocando as mãos na lava para poder sentir a temperatura chegando no ponto preciso, recebendo poucas queimaduras que logo cicatrizavam. O processo de limpeza então começava, exigindo minha paciência e dedicação para fazer uma arma a qual poderia entregar a esses jovens e garantir sua segurança. 

A lâmina que se entrega, é a mesma que pode salvar ou condenar a vida do outro. Foi o que o mestre ferreiro me disse quando tentei essa profissão… 

— Nas profundezas da forja ardente… 🎵

A martelada cria círculos mágicos quais se concentravam nas lâminas. Mesmo que não portador de núcleo mágico ou mana, a própria forja e dedicação fazem com que a força mágica exterior se aglomere em sua obra. 

— O ferreiro ergue seu martelo! 🎵

A cantiga qual recito fazia parte do mestre ferreiro como seus braços e pernas, dizia ele que ajudava a focar no que estava fazendo. 

— Com olhos firmes e mente potente… 

Percebia os olhos que me encaravam aumentando, junto da admiração de mais crianças que chegavam para ver, sempre respeitando o círculo que havia feito para sua proteção. 

— Forja armas de poder singelo! 

As faíscas e magia saiam a cada marretada, junto das impurezas da lâmina e suas inseguranças. Cada vez mais no ritmo, melhorando e sentindo-se mais forte para apoiar seus portadores e orgulha-los no combate. 

— Seu legado é escrito em fogo e aço, com cada arma que da forja sai. 

A cantiga continua, junto da minha vontade para terminar o melhoramento, e da vontade das armas em querer ser melhor, ressoando com seus donos. 

— Um guerreiro se ergue em meio ao batizado, pronto para guerrear no destino que de lá vem. 

Raios saem da katana, enquanto a água ao redor se parte com a Longquan. A parte final chega, com o clímax da magia e espírito sendo colocados em ambas as criações, junto da energia divina que saiam de dentro da própria essência de Noemi e Ryou, essência essa que demarcavam sua maestria com a arma através da herança celestial. 

— Nas chamas que crepitam com fulgor, o ferreiro encerra sua canção… 

Pego ambas as empunhaduras radiantes, queimando completamente meus braços com tamanho poder, as mergulhando na água fria e fazendo uma onda de vapor sair do mesmo lugar. Minha felicidade com memórias e trabalho árduo eram óbvias com o amarelo em meus olhos e os assobios enquanto terminava a cantiga. 

— Seu trabalho sendo do inimigo o maior terror, e do amigo a maior paixão! 

Conforme terminava a cantiga, toda magia ao redor se reunia nas novas armas, formando suas bainhas e novas forças. Uma segunda chance para provarem ainda mais seu valor e lealdade aos portadores. 

Retiro da água as armas em suas bainhas, chamando o dragão e a Oni até perto. Os pirralhos chegam na minha frente, ficando com os joelhos ao chão e cabeças baixas até que sinalize sua dispensa, fazendo com que ambos levantem seus braços. 

— Noemi Shiba, Onna-bugeisha que lutou pelo seu lar contra o Minotauro, confio a ti as lâminas da tempestade crescente, Arashi no Sankō.

Entrego para ela o conjunto que compunha suas armas, estas que surgiram após o processo do banho sagrado e batizado das armas. A kodashi, espada pequena, katana, espada normal, e Odachi, espada longa, possuiam lâminas azuis com corpo iridescente negro, raios percorrendo todo o corpo da arma. 

— Ao Ryou, Jiànkè gāoshǒu que obtém experiência com suas aventuras e demonstrou bondade e empatia para aqueles que não eram semelhantes, a ti confio a espada partidora de mares e conselheira sábia, Longquan Shuixiao. 

Concedo a espada ciano com os dragões enrolando na lâmina e suas forças passando para a base com formato real do imperador de jade. A lâmina sussurava para seu jovem portador, cativando com suas palavras doces na língua nativa do dragãozinho. 

Vejo o quão animados estão ambos os espadachins, junto de seus sonhos retornando a seus alcances como o brilho voltava a seus olhos. 

— O que estão esperando?! — Assustava os garotos. — Vão logo mostrar para quem gostam e testem sua força! Essas obras não foram feitas para ficarem na bainha! 

— ENTENDIDO! 

Vejo os dois correndo como um raio e a correnteza, indo para longe, levando as crianças que queriam ver o quão forte eram as novas armas. Por fim, posso demonstrar minha exaustão, sentando no banquinho de madeira com o suor consumindo meu corpo. 

Vendo toda a força da juventude e ambição dessa nova geração, devo admitir que amei voltar a ativa no corpo original. Quem diria que o meu primeiro pedido quando terminei a tarefa para os deuses foi o que mais gerou consequências pra minha encarnação.

Meu coração palpita e uma lágrima cai do meu rosto, sentindo uma alegria que poucas vezes me invadiu ao escutar a tempestade do lado de fora. Por que gostaram tanto? 

Começo a rir conforme percebia o quão idiota estava sendo naquele momento. 

— Ah, como é bom sentir emoções novamente. 

Tiro a preguiça do meu corpo, colocando a camisa novamente antes de ir ajudar na reconstrução. Sinto que minha jornada nesse lugar apenas iniciou… 

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