Prólogo - Ao Acender de uma lâmpada

[Em alguma cidade do Brasil]

“Mas que merda de cheiro é esse?”

Um aroma desagradável invadiu o quarto de Renan, mas mesmo o incomodo que sentia com aquele cheiro, não foi o suficiente para fazê-lo sair e verificar qual era o problema. Ele estava em um dia especial, era um dia triste, porém, provavelmente, o dia mais importante que ele estava vivendo nos últimos anos.

Renan, assim como todos os membros da guilda Niot, estava reunido no Teams em uma chamada que ele mesmo havia convocado. Eram mais de mil jogadores de Imperfect World, todos se preparando para o fechamento do servidor que ocorreria em poucos minutos.

Imperfet World era um jogo RPG online famoso em todo o mundo, o mundo aberto e as infinitas possibilidades dentro do jogo fizeram a popularidade de Imperfect World explodir maneira exponencial. Niot era um dos mais importantes clãs brasileiros no jogo, e isso se devia a Renan, que tinha dedicado quatro anos de sua vida a ele. Naquela reunião, todos sabiam que aquele era o fim de uma era e talvez a última chance de se despedir dos companheiros de guilda. E por isso Renan não se importou com o cheiro que invadia seu quarto.

Desde que foi anunciado o fim do jogo, os líderes da guilda Niot se reuniam quase que diariamente para decidir o que seria feito; no fim dessas reuniões eles decidiram que não migrariam para outro jogo. Era hora de seguir em frente e focar em outros planos. Renan, que inicialmente foi hesitante quanto ao encerramento do clã, agora já havia até estabelecido algumas metas para si mesmo. Ele sabia que não era saudável ter passado quatro anos de sua vida dedicado a um jogo e não ter construído nada fora, no mundo real. Era hora de enfrentar a realidade e começar a planejar um futuro.

Esses pensamentos inundavam a mente dele quase que durante todo o dia.

Enquanto ouvia as conversas dos outros jogadores na chamada, Renan se deu conta de que não conhecia a maioria deles.

Sua guilda no jogo era enorme, e devido a isso ele mantinha uma hierarquia semelhante a um exército. Renan, sendo Marechal, mantinha contato apenas com um ou dois níveis hierárquicos abaixo. Além de Renan, a guilda continha apenas mais quatro marechais, que eram membros de seu squad pessoal e os únicos aos quais Renan tinha um verdadeiro afeto. Mesmo nunca tendo os visto pessoalmente, ele os considerava amigos próximos e tinha certeza de que era um sentimento recíproco.

Ele ouvia a conversa para tentar se distrair, pois à medida que o contador do servidor estava prestes a chegar ao fim de seu legado, estava terminando junto com o jogo.

19:59:59 – 00:00:01

Quando o relógio atingiu zero, todos receberam o sinal de LogOff forçado e a silhueta de suas personagens desapareceram, tendo lugar apenas uma tela preta. Uma sensação de aperto surgiu no peito de Renan e em muitos dos outros jogadores na chamada. As lágrimas escorriam pelo rosto de muitos.

A tristeza de Renan, principalmente, tinha suas justificativas. Ele jogava Imperfect World desde o lançamento, na época que começou jogar tinha apenas 13 anos, então podia dizer que era um amor de infância, e agora, após dedicar quatro anos e 10 mil horas de jogo, tudo o que ele havia construído em Imperfect World deixaria de existir. A guilda Niot e o jogo, que haviam sido uma parte importante de sua vida, chegava ao fim.

Por alguns minutos, tudo naquela chamada do Teams eram lamentações.

No chat do Teams, entre notificações de pessoas desconectando, centenas de mensagens de gratidão dirigidas a ele podiam ser vistas.

..."Obrigado, Amai"...

..."Eu não vou te esquecer, Amai"...

..."Amai, eu te amo"...

Amai, o sacerdote que Renan tinha depositado tanto esforço e estudos para tornar o mais forte do jogo, um personagem que quebrou o padrão e que conseguia ter o maior dano entre as classes magicas, o personagem mais amado e odiado do jogo, tinha sido deletado da existência.

Quando estava no jogo, Renan não existia, era apenas Amai.

Agora Amai não existia, e Renan tinha perdido parte importante dele.

Todo o alvoroço no Teams durou cerca de cinco minutos e ele permaneceu imóvel na frente do computador enquanto um por um ia saindo. Até que não restou ninguém.

Talvez se não fosse por aquele momento melancólico, Renan teria percebido que algo estava errado, mas quando o último de seus ex-membros desconectou, a única coisa que ele fez foi finalmente deixar as lágrimas fluírem.

...☫...

"Você não sabe a dor que estou sentindo agora." Uma voz doce, serena e chorosa ecoou no fone de ouvido de Renan.

Ele se assustou e levantou desajeitadamente seu corpo encurvado.

"Você ainda estava aí? Eu não percebi que alguém estava conectado." Renan respondeu, tentando enxugar seus olhos com a manga de seu moletom.

Olhando para a tela, ele percebeu que sua câmera estava ligada. Aly estava lá, despercebida porque sua câmera estava desligada, e ele sentiu um pouco de vergonha por apenas um instante.

Aly era a Pugilista do grupo de Renan, uma das Marechais desde a criação do clã, e terceira no comando. Além disso, ela era de longe sua melhor amiga. Eles frequentemente conversavam no Discord ou WhatsApp até tarde da noite.

Renan ficou feliz que ela estivesse lá. Tão feliz que ele não percebeu que havia uma sirene tocando estridentemente.

"O que você está planejando fazer agora?" Aly falou em um tom baixo.

Renan pensou por um instante, ele tinha muitas coisas que nunca teve coragem ou motivação para fazer e queria experimentar nessa nova fase que estava para começar.

"Viver, como nunca vivi antes." Respondeu, por fim.

O som do alarme de incêndio misturou-se com o som de passos pesados. Renan retirou seu fone de ouvido e finalmente percebeu que algo não estava certo.

"Só um segundo, Aly." Renan disse isso e saiu antes que Aly pudesse responder.

..."Mano, o que tá acontecendo!?"...

Era uma mistura de alarme de incêndio, sirenes mais agudas, gritos e um cheiro insuportável: um total caos. Ele passou pela escuridão do quarto e abriu a porta da sala de estar. O som ficou ainda mais alto e ele se preocupou, notando que algo realmente sério estava ocorrendo. Ele foi até a porta que dava acesso ao corredor trombando em alguns móveis pelo caminho, estava escuro e quando seus dedos apalparam a mesinha ao lado da porta, procurando pelas chaves que costumavam ficar ali, não as encontrou.

Se Renan tivesse participado do treinamento da brigada, ele teria aprendido os protocolos de segurança para esse tipo de situação, mas ele não foi porque queria evitar o contato com outras pessoas. Se tivesse ido, pelo menos saberia o que esses alarmes significavam. Não é que o prédio estivesse pegando fogo, mas poderia acontecer facilmente.

Ele puxou a cordinha que acendia a luz do lustre, lâmpada essa que era a única na casa que não se tratava de uma LED, e naquele instante que pareceu a eternidade ele foi cego pela luz amarela, azul, laranja e branca. No fim, ficou tudo escuro.

Se Renan não fosse tão introvertido, talvez ele soubesse que estava ocorrendo um vazamento de gás.

...☫...

Era uma verdade é que Renan nunca se encaixou no mundo. Sem família ou amigos, ele vivia com um tio que nem sequer prestava atenção nele. Tudo o que ele tinha era os animes, mangá, novels, seu personagem e seu clã. Não é como se alguém fosse sentir falta dele.

Sua mente flutuando no vazio pensou nisso por um momento. Ele até pensou que não se importava.

..."Mas o que isso quer dizer!?"...

Ele mesmo se confrontou. A realidade, a verdadeira realidade, é que ele não queria morrer. Ele queria conhecer muitas pessoas, queria viajar pelo mundo, ele queria viver tanto. Ele queria viver por 100 vidas.

"EU NÃO QUERO MORRER, CA***LHO!"

Ele gritava sem voz, mas agora era tarde demais... até onde no vazio seu grito sem som poderia ser ouvido?

...❝ 𝐸𝑛𝑡𝑟𝑒 𝑛𝑜 𝑚𝑒𝑢 𝑚𝑢𝑛𝑑𝑜, ℎ𝑒𝑟𝑜𝑖, 𝑒 𝑡𝑜𝑚𝑒 𝑝𝑎𝑟𝑎 𝑠𝑖 𝑡𝑜𝑑𝑎𝑠 𝑎𝑠 ℎ𝑎𝑏𝑖𝑙𝑖𝑑𝑎𝑑𝑒𝑠 𝑚𝑎𝑖𝑠 𝑝𝑜𝑑𝑒𝑟𝑜𝑠𝑎𝑠 𝑎𝑡𝑟𝑖𝑏𝑢𝑖𝑑𝑎𝑠 𝑝𝑒𝑙𝑜𝑠 𝑑𝑒𝑢𝑠𝑒𝑠. ❞...

...☩   ☩...

...CONDIÇÃO CUMPRIDA...

... BENÇÃO DIVINA ATIVADA...

...CENTELHA CENTENÁRIA — VIDAS RESTANTES 99...

...☫...

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