Não se pode dizer que não tentei recuar, que tentei não me aprofundar nessa amizade, mas a verdade é que tudo que eu planejava para me afastar ia por água a baixo assim que a voz do mordomo preenchia meus sentidos. Não acredito em contos de fadas, mas talvez este homem tenha a voz enfeitiçada.
É como uma sinfonia cantada por milhões de vozes desde o princípio ao fim do mundo. Tem aroma de cerejeira, sabor de suas frutas. Cereja. Doce e calmo e fresco e impassível. Vida e morte desnorteadas, sem sentido, misturadas. Inverno e verão e primavera. Voz de mil vidas, mil mundos, mil eras. De dor e sofrimento e trauma e ainda assim de amor e perdão e alegria. A calma de quem já passou por tanta coisa que…apesar de tudo, ainda sabe o sentido das coisas simplesmente da vida. Tão…suave e grosseiro ao mesmo tempo. Tão confuso e legível. Tão…silvestre e indomado.
— Bella, dá para sair do mundo da lua e voltar para a terra novamente? — a voz de Charlie entremeia meus pensamentos baixa e alta e me tira de meus devaneios como se houvesse um fio amarrado a minha mente para ser puxado por quem desejar. — Estou falando com você! — um som estranho, mas conhecido. O estalar de dedos, uma, duas, três vezes.
— Desculpe Charlie, estava pensando em algo — falo com um leve tom de culpa.
— Ah, isso você não precisa dizer, já vi a muito tempo — a governanta afunda ao meu lado na cama.
— O que estava falando? — sussurro um pouco envergonhada.
— Eu estava dizendo a uma certa garota totalmente distraída chamada Bella que esta manhã Alexander não fará companhia a você, pois está preparando algo para a tarde — ela responde com tom de deboche. — Então, quem fará companhia a você enfim será eu. Não é ótimo? Alex parece achar ter posse de você recentemente, mal passamos duas horas juntas antes que você apague de cansaço.
Solto uma risada baixa por conta da indignação de Charlie.
— Ei! Não tem graça sabia? Ter uma amiga e perdê-la para um idiøta como o Alex não é nada engraçado.
— Não estou tudo disso — começo sorrindo — , estou rindo de sua indignação exagerada.
Charlie solta um tsk de irritação e eu caio na gargalhada com ela também sedendo.
— Posso saber o que Alexander está aprontando desta vez? — pergunto um tempo depois de nos acalmarmos.
Charlie fica um tempo parecendo cogitar em dizer seja lá o que for que Alex esteja planejando.
— Já andou a cavalo? — ela indaga.
— Hum…não, por quê? — curiosa.
— Então hoje você irá cavalgar pela primeira vez — ela diz com o tom de voz ficando alegre derepente, arqueio uma sobrancelha. — Ah Bel, não faça essa cara! Será legal!
— Essa vai ser a pior de todas as coisas que você e Alexander já aprontaram até hoje — murmuro.
Em duas semanas depois do dia da biblioteca, já havíamos feito piquenique em um lugar qualquer da cidade, lido livros e cantado no jardim, além da guerra de travesseiros numa das salas de estar da mansão e mais algumas dezenas de coisas malucas. Mas andar a cavalo? É uma total perder de senso.
— Não acho que isso seja pior do que o banho que demos em Alex ao você empurrá-lo na piscina — ela diz tentando conter uma risada, sorrio. — Ele ficou uma fera comigo depois por ter pulado em você e tê-la feito empurrá-lo…você nem imagina.
— Eu nem sequer sabia que tinha uma piscina atrás de nós e se no último segundo você não tivesse me segurado, eu teria caído junto.
— Foi por isso mesmo que ele quase me matou…
— Charlie — falo quebrando o silêncio que havia se instalado.
— Hum — ela responde preguiçosamente, dou uma cotovelada ao lado do corpo dela. — Aí!
— Acorde sua folgada!
— O que foi? — ela resmunga.
— Não acha que você e o Alexander soa próximos demais para apenas serem colegas de trabalho ou amigos? — pergunto um pouco hesitante.
Charlie fica um tempo em silêncio parecendo sopesar as palavras.
— Alex e eu crescemos juntos. Quando eu tinha oito anos de idade meus pais morreram em um acidente de avião e passei a morar com meus tios, os pais dele. Somos primos mas eu o considero como um irmão mais velho — ela responde baixa demais, a voz rouca carregada de dor e saudade e luto.
— Eu sinto muito — respondo em igual tom piscando para afastar a ardência nos olhos ao me lembrar de Jack, possivelmente perdido no mundo ou simplesmente morto como meu pai. E Amélia? Ruth? Apesar de tudo, sim, Ruth.
— Você fala como se entendesse tudo o que eu sinto, como se já tivesse passado por algo parecido ou até mesmo pior… — a voz agora estava contida, mas com indício de choro. Permaneço em silêncio.
— Meu passado não vale a pena. O que vale é o aqui e o agora. Aquele passado — digo mais para mim mesma do que para Charlie — darei um jeito de esquecê-lo e no momento certo, cumprirei minha promessa.
— Promessa? — o choro sumiu, somente curiosidade permaneceu em seu lugar. Engulo em seco. Falei demais. Silêncio. — Bella do que você está falando?
Respiro fundo, tentando conter-me.
— Fiz uma promessa de encontrar uma pessoa antes de vir para a Itália…
— Quê? Eu não estou entendendo nada — confusa.
Me sento, levando os joelhos junto ao corpo e apoiando o queixo neles.
— Quando eu ainda morava nos Estados Unidos Charlie, fiz uma promessa a uma pessoa importante para mim de encontrá-la independentemente de onde estivesse, mesmo que ele esteja morto, prometi me despedir dele — falo tentando permanecer inespressiva.
— Era seu namorado ou algo assim antes de você voltar para cá?
Voltar. Solto uma risada nasal. Nunca sequer na vida eu poderia imaginar que iria parar em outro continente, muito menos na Itália.
— Eu nunca tive um namorado — digo com sarcasmo — , Jack era meu irmão.
— Seu irmão? — ela indaga.
— De consideração — corrijo rapidamente. — Meu irmão mais velho que eu nem sequer merecia… — murmuro.
— Bella, depois de tudo que você passou, você merece o mundo.
— Eu não merecia sequer estar aqui Charlie. Não devia estar aqui.
— Onde deveria estar então Bel, se não aqui? Não estou entendendo o que você quer dizer com isso.
— Não importa Charlie. Deixe o passado onde ele deve ficar: esquecido.
A governanta suspira.
— Tudo bem se não quer me contar.
— Só não estou pronta ainda para encarar meu passado outra vez Charlie…
— De qualquer forma, estarei aqui quando achar que deve me contar, quando estiver pronta para encarar seu passado Bel — a governanta fala pegando minhas mãos e apertando-as.
— Grazie Charlie. Você é a amiga que eu nunca tive — sussurro e ela me puxa para um abraço apertado, retribuo.
— Não tem o que agradecer Bella. Sempre vou estar aqui — ela sussurra de volta.
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Atualizado até capítulo 37
Comments
Ellen
eita quando ela vai descobrir que o Alex é o marido misterioso
2023-02-14
7
Sil Fernandes
Tô gostando da estória.
2025-02-23
0
NATALIA CAMPOS
Estou gostando muito dessa leitura !/Heart/
2024-10-17
0