|•Capítulo 1•|

Gatilho: este capítulo pode conter cenas de violência física e/ou mental.

Foi…simples. Não teve muita demora, enrolação. Não teve uma despedida decente. Em nossa atual situação, era o mínimo que podíamos fazer. Não tinha muito o que pensar, falar. Foi…silêncio. Ninguém tinha vontade de dizer, gritar, de implorar. Não tinha porquê. Ninguém chorou. Não teve lamento. Ao menos a morte não é injusta — ela pode ser tudo, menos injusta. A morte trata a todos da mesma forma.

É o suficiente.

A única voz em meio a todo aquele silêncio, todo aquele vazio, era a do padre — ou pastor, não sei — fazendo uma oração pelas almas. Almas que foram libertadas pela morte, levadas por ela. Inclusive a de Walter. Este momento sóbrio, onde só havia uma viúva, dois órfãos, uma serva e um coveiro e o religioso diante do túmulo, me fez recordar de uma cena do livro A menina que roubava livros de Marcus Zusak que há tantos anos fora lido a mim por Amélia. A cena representava o enterro do irmão mais novo de Liesel — a personagem principal da história — a qual agora tanto me identifico.

...✯ Uma pequena observação ✯...

...Eu sou cega. Liesel enxergava perfeitamente bem....

Eu era uma dos dois órfãos. Jack, o outro. A viúva se tratava de minha mãe, o defunto de meu pai. Num estalar de dedos tudo havia mudado. Foi incrível a forma com que aqueles homens sequer se importaram com a presença de Jack e Ruth na sala de estar — sequer os tocaram, como se fossem fantasmas: invisíveis. Não tinha porque percebê-los, estavam petrificados, colados como duas estátuas no chão. Não tiveram trabalho algum. Tinha sido rápido. Ao menos, Walter não sofreu. Uma série de tiros, uma ameaça se tornando realidade. Meu pai no chão, morto. Foi tudo o que Jack contou.

Não demorou nem meia hora para que meu irmão mais velho entrasse naquela sala transtornado. Os homens tinham ido embora. Ele deu a notícia sem rodeios e agradeço aos céus por ele ser tão direto. Ruth havia se trancado no quarto depois de velar o corpo até que o buscassem. Para falar a verdade, somente saiu de lá nesta manhã para ir ao enterro. Amélia disse que seus olhos estavam inchados e vermelhos. Pareceu-me que tinha passado a noite chorando — pelo que ouvi. Por amar meu pai ou pela dësgraça que agora recaiu em nossa cabeça? Deixe-me adivinhar: talvez a segunda opção.

É claro que também chorei — não a estava julgando por isso — mas não de frente ao túmulo, em frente à Ruth. A noite havia servido para isso — com Amélia me consolando. As lágrimas nos lavam por dentro, nos acalmam, nos deixam leves, aliviados. Quem nunca caiu no sono chorando? Agora, Ruth está trancada em seu quarto outra vez. Nem se deu o trabalho de se sentar à mesa para o almoço assim que chegamos. Não sei se olhou em minha direção.

Jack não voltou para casa, do cemitério foi direto para a empresa falida. Eu não estava com fome, mas Amélia obrigou-me a comer com um argumento — há muito ultrapassado — de que eu poderia passar mal se não me alimentasse. De Ruth ela cuidaria mais tarde, ou seja, agora. Deve estar anoitecendo neste exato momento. Faz alguns minutos que Amélia saiu de meu quarto, estou só. É estranho ela sair para cuidar de Ruth e me deixar, ela nunca precisou. Amélia sempre esteve comigo. É estranha a perspectiva de dividi-la com a mulher que pouco se importa comigo, mesmo que ela apareça estava vulnerável. É um pouco ridículo, entende? Aquela que nunca precisou de ninguém precisar agora. Sinto-me cansada. Talvez eu deva dormir.

[ … ]

Ouço o barulho de uma discussão. A paz se foi nesta manhã. Faz dois dias que Walter está morto. Não falei com ninguém durante esses dias, em exceção de Amélia. Ela é sempre uma exceção. É mais que normal que eu fale com ela todos os dias — não há opção. Não ouvi falar de Jack, Amélia sempre dizia que ele não estava em casa. Mas na noite passada eu o ouvi chegar tarde — estava sem sono. Ouvi sua conversa irritada e fria com alguém pelo celular, seu murro descontrolado na parede. Só não consegui distinguir as palavras ditas, ele podia estar gritando, mas tentava ao máximo abafar a conversa. Só sei que era algo sobre a dívida. E agora, logo de manhã, Ruth e meu irmão estão discutindo. Fazia algum tempo em que eu não escutava a voz descontrolada de minha mãe.

— Por que os dois estão brigando tão cedo Amélia? — perguntou para os ares, não sei onde ela está.

— Não sei Bel, não estou entendendo nada do que dizem — pondera.

— Me leve onde estão — peço.

— Tem certeza? — ela duvida.

— Absoluta — me levanto da cadeira da sala de jantar onde tomava meu café para dar ênfase ao pedido.

— Eles estão no escritório — Amélia revela pegando em meu braço, me indicando o caminho. — Faça silêncio — avisa.

Apenas aceno com a cabeça concordando. Nós duas caminhamos silenciosamente, ouvidos à escuta, prestando atenção. A cada passo a conversa fica mais alta, mais grave. Mas ainda é impossível de entender.

— Estamos chegando e a porta está aberta. Quando eu apertar sua mão é porque já estamos lá dentro, entendeu? — sussurra.

— Sim — sussurro de volta.

Mais uma sequência de passos. Respiro fundo, ansiosa. Não sei o que vou ouvir, mas não me parece ser algo bom. Sinto que de alguma forma irá me fazer mudar por inteiro.

— Ele irá matar a todos nós Jack! Todos! Não temos escolha! — minha mãe grita, autoridade, medo, tudo na voz.

— O que não temos escolha? — pergunto a interrompendo fria o bastante ao sentir o aperto de Amélia.

— O que você… — Ruth vocifera.

— Deixe-a mãe! Ela tem todo o direito de saber — Jack também a interrompe.

Ruth bufa.

— Conte você a ela então, pois eu não direi nada.

Algo é arrastado: uma cadeira. Outra. Rute se senta.

— Quer se sentar, Bel? — meu irmão pergunta apreensivo.

— Não, não quero. Obrigada — mantenho a frieza.

— Certo — Jack pigarreia. — Estamos com problemas na empresa há algum tempo…

— Se for falar da dívida pela qual Walter foi morto, eu já sei. Não é necessário repetir toda a história melancólica. Quero saber o motivo da discussão — seca.

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Comments

adoradoradesombras

adoradoradesombras

a patroa chegando, abre espaçooo

2022-11-08

10

Deusa_do_Luar

Deusa_do_Luar

que descrição magnífica e sombria é essa?! tô pasma

2022-11-08

1

Cristiane Silva

Cristiane Silva

parabens amando ler parabens autora emocionante MARAVILHOSO

2023-01-22

1

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