capítulo 18

Quando regressei de Kuala Lumpur, descobri que a Serena tinha partido.

Partiu?

Partiu. Os armários estão vazios. Bilhete de ida. Partiu disse a Ari.

Ah, que dia feliz! A Serena tinha-se ido embora. Acho que até dancei o running man. Depois percebi. Teria sido por causa da farpa que eu espetara contra ela, na cama com o Robin, que ela fora recambiada para casa? Que interessava, se tivesse sido isso? Devia sentir-me vitoriosa. Ela tinha tentado fazer o mesmo comigo, mas sem sucesso porque era demasiado transparente.

Lembrei-me dela a comer aquele morango. Conhecia a sensação de passar a língua pelas pequenas grainhas, antecipando o gosto, fingindo, fingindo sempre, que uma dentada chega, que nunca é necessário sentirmo-nos cheias, saciadas. Experimentei uma pontada não sei de quê. Não exatamente de culpa. De repulsa. Pela Serena e por mim própria. Pela víbora maldosa que ela tinha sido, por aquilo a que a sua maldade me reduzido. Mas não era assim que eu queria ser? A implacável, a que luta e vence, mesmo que saia a sangrar? O contrário de lutadora não é amante, é fugitiva. Quem é que eu queria ser?

Perguntei à Ari porque é que a Serena se tinha ido embora e ela finalmente contou tudo sobre ela. A história da Serena era que tinha sido a número um antes da chegada da Fiona. A Serena tinha sido a número um antes de haver outras raparigas ocidentais no Brunei. Noutro tempo o Robin tinha adorado a Serena. Mas, como a mulher do Barba Azul, ela não foi capaz de resistir à única coisa que lhe estava proibida.

Nos primeiros tempos das raparigas das festas no Brunei, oito meses antes, a Ari, a Serena e a Leanne tinham sido regularmente autorizadas a ir almoçar ao Hilton e a tomar banho na piscina. Tinham ido a Singapura fazer compras e visitado o jardim zoológico juntas. Viviam em casas individuais.

Durante essa época de ouro, o príncipe Hakeem, o filho mais velho do Jefri, que eu ainda não conhecia, era frequentador diário das festas. Tinha um amigo chamado Arif, um homem atraente que contrastava com Hakeem, o mastodonte. O Arif começou a aparecer na piscina do Hilton em determinados dias que eram milagrosamente os dias em que a Serena lá estava.

A Serena servia-se do telefone da casa para combinar os encontros clandestinos. Aparentemente, a nossa beldade frígida de olhos azuis gostava também de usar linguagem porca ao dito telefone e não com o príncipe. O Robin raramente usava o telefone por razões sociais. Porque havia de usar? Tinha outras pessoas para lhe fazerem as chamadas. Se quisesse falar com alguém, informava um dos seus assessores e a pessoa em causa não tardava a apresentar-se à sua frente.

A Serena foi uma pioneira no Brunei. Não sabia que os telefones estavam sob escuta. Nunca desconfiou que as suas conversas privadas seriam passadas ao príncipe, que nunca a confrontava diretamente, mas fazia insinuações, em momentos oportunos, citando frases bem escolhidas das conversas dela com o Arif. Imagino que ele gostava de ver o corpo dela a ficar tenso e arrefecer vários graus, os olhos dela a registar medo e culpa que nem ela conseguia disfarçar, de vê-la cobrir-se de uma película de suor e esforçarse ainda mais por lhe agradar, fingindo uma paixão mais intensa.

O príncipe não lhe cortou sumariamente a cabeça. Não lhe ofereceu sequer um bilhete de ida para casa. Que graça é que isso teria? Não era o estilo dele. Se era o inquisidor-geral e tinha alguém esticado numa roda, fazia a coisa durar dias. Rodava a roda em avanços tão milimétricos que a vítima nem se dava conta de que estava a ser torturada até ver os intestinos no chão ao seu lado. Não, ele fingiu que tinha perdoado à Serena. Voltava a convidá-la e sentava-a numa cadeira e depois ignorava-a durante meses enquanto se envolvia em romances com todas as outras mulheres na sala, mas mais acutilantemente com a rival dela. Essa rival viria a ser eu.

A Ari contou-me tudo isto enquanto comíamos sanduíches de queijo e talhadas de melancia. Senti os dedos dos pés a arrefecer. A Fiona, a minha melhor amiga Fiona, devia estar ao corrente disto e nunca me disse nada. Não era que não me tivesse avisado. «Não sou tua amiga», tinha dito. Mais uma lição útil que aprendi no Brunei: quando alguém nos diz qualquer coisa como «Não sou tua amiga», é para acreditar.

A Taylor, deitada ao meu lado na cama, tinha-me instigado a vingar-me dos abusos que recebia. «Tu também és esperta», sussurra-me ela ao ouvido.

Era? Eu tinha dado um passo que na altura me parecera bom, mas pelos vistos os outros participantes neste jogo estavam muito mais bem informados do que eu. Com a partida da Serena, iria ser marginalizada, agora dispensável no esquema do Robin para a torturar? Ele adorava as lutas internas entre as raparigas. Sem uma rival, eu seria agora menos interessante para ele? Voltaria para Nova Iorque à espera de um telefonema da Ari que nunca chegaria, a minha esperança morrendo com a passagem dos meses? Se tinha de todo influenciado a partida da Serena, teria dado mostras de tacanhez nas minhas manipulações?

A Fiona teria previsto tudo isto? Terme-ia usado para se livrar da Serena, certa de que o Robin perderia o interesse por mim assim que a Serena desaparecesse? Ou estaria eu simplesmente a construir uma complexa telenovela no meu espírito?

Devia ter-me cingido àquilo em que era boa: arvorar um ar engraçado, contar histórias divertidas e ser convincente. Vieram-me à memória as palavras do meu pai. Tu não és nenhuma call girl internacional de renome, como tal tens de convencer. Eu sabia que, num confronto com a Fiona, nunca ganharia, mas tinha aprendido o suficiente com ela para lhe dar boa luta. Sempre que começava a enlouquecer de tédio ou a agonizar de ódio por mim mesma, pronta a pedir um bilhete de avião para casa, acontecia qualquer coisa que me prendia mais uma vez ali.

O Robin comprou um Lamborghini novo. Antes de eu chegar sequer à sala das festas, um guarda foi-me buscar e conduziu-me à entrada das traseiras do palácio, onde o Robin estava à espera para me levar a dar uma volta no carro. Entrei e as portas desceram automaticamente, como a escotilha de uma máquina do tempo. Os bancos eram tão baixos que tive a sensação de estar sentada no chão. Uma lomba ter-me-ia raspado as nádegas.

Acelerámos por estradas bordejadas por selva, apenas iluminadas pelos faróis. Andar de carro com o Robin era mais uma estranha intimidade, como se fôssemos um casal normal e pudéssemos ir para todo o lado, jantar fora ou ao cinema. Exceto, claro, que íamos voltar para o mesmo lugar para onde íamos todas as noites. Vi o Robin atento à estrada. Algo pulsava contra a sua pele e atrás dos seus olhos e pelas veias do seu pescoço. Era como se estivesse a debaterse para controlar o desejo de conduzir a oitocentos quilómetros por hora. Parecia quase alheio à minha presença. Interroguei-me se ele só quereria conduzir sem parar para ir para algum lado onde não fosse príncipe.

Que é que achas? – perguntou-me ele, arrancando-me às minhas reflexões. Acho que devíamos simplesmente continuar até à Tailândia, estive a ponto de dizer. Não levar nada connosco. Comprar um guarda-roupa novo quando lá chegarmos e ficar numa cabana numa praia em Phuket e dar mergulhos dos rochedos.

Que é que achas? – repetiu.

De quê?

Do carro – respondeu ele, irritado. O carro. Claro. Como se houvesse mais alguma coisa.

Tentei encontrar um adjetivo para descrever o carro, qualquer coisa que o enchesse de satisfação. O que eu honestamente pensava era: feio, ridículo, patético. Mas disse: Duro.

Duro?

Não pareceu satisfeito.

Lindo. É um carro lindo.

A palavra lindo era usada ao desbarato no Brunei. Tudo era lindo: a selva, os colares, as raparigas, os carros, as obras de arte dele, a casa. Era dono de tudo. Era tudo igual. Lindo era sempre o que ele queria ouvir. Tudo o que é teu é lindo; está na palma da tua mão.

Algumas das caras tinham mudado durante as duas semanas em que estivemos ausentes. O mais notório foi que, com a partida da Serena, o príncipe Hakeem tinha voltado às festas. Ele era como um boneco empolado, três vezes maior em tamanho do que o pai. O Robin deixou-me à porta e eu desci as escadas sozinha. O príncipe Hakeem estava no patamar à entrada da sala de festas a brincar com um carro elétrico telecomandado que era uma réplica em miniatura do Lamborghini do qual eu acabara de sair. Duas raparigas tailandesas magras, que aparentavam ter a idade certa para se produzirem para um baile de liceu, estavam descontraidamente encostadas uma à outra nas escadas, a rir-se das habilidades dele.

Fiz-lhe a vénia habitual ao passar. A sensação de fazer uma vénia a um tipo da minha idade, com um telecomando gigante na mão, era diferente de fazer uma vénia ao Robin. Com este, a vénia era submissa, sexual. Com o príncipe Hakeem, era sarcástica.

Duas raparigas novas, a Delia e a Trish, tinham vindo substituir a Serena. Quando entrei, fui saudada por um coro de guinchos das tailandesas. A Yoya, a Tootie e a Lili sufocaram-me com abraços. Não percebi porque estavam a ser tão calorosas comigo. Talvez porque eu desafiava as convenções e me movia com frequência para a ilha delas no nosso pequeno arquipélago de raparigas. Sentei-me na ponta do divã apinhado delas e perguntei-lhes como se dizia por favor e obrigada em tailandês, e em troca elas trataram-me como uma amiga de infância há muito desaparecida. Havia boas raparigas no Brunei, raparigas simpáticas.

A Fiona recebeu-me com o que supus que fosse afabilidade, que nela não era muito diferente de displicência, ainda que não fosse desdém. O Robin e os amigos entraram ao som da apaixonada atuação da Angelique a cantar «How Am I Supposed to Live Without You». Cerca de uma hora depois de os homens chegarem, o Eddie deu-me uma palmadinha para eu sair da sala. Um guarda conduziu-me ao corredor ladeado de portas e abriu uma por onde nunca tinha passado. Atrás da porta número dois, existe uma reserva inesgotável de Turtle Wax, atrás da porta número seis há um monte de tijolos de ouro, atrás da porta número três há… uma banheira. Uma banheira muito grande.

Devia estar sentado no canto, de pincel em punho, um pintor orientalista. No centro, encontrava-se uma banheira do tamanho de uma pequena piscina, revestida com pequenos azulejos de ouro que refletiam raios de luz cintilantes em redor da sala fumegante. Uma travessa repleta de fruta, bolo de mel e chocolate estava pousada ao lado da banheira. O patinho de borracha que eu comprara ao Robin na Malásia estava a boiar na água, tristemente inclinado de lado. Não queria entrar para a banheira e ficar toda suada antes de ele chegar, mas sentia-me estúpida com o vestido de noite e, como tal, despi-me e reclinei-me nua no divã, uma odalisca tirada de um dos seus quadros. A única coisa que estragava a absoluta autenticidade da fantasia do banho num harém era a televisão montada no canto da sala a transmitir, como sempre, a CNN em altos berros. Suponho que a ideia dele era mostrar-me que afinal não tinha medo de tomar banho com uma rapariga.

Dava a impressão de que ele tinha preparado um pequeno interlúdio romântico para nós, mas, quando apareceu, a sua expressão era fria e dura. Quase não me tinha dirigido a palavra no carro ao princípio da noite. A nossa familiaridade da Malásia tinha-se sumido. Desconfiava que ele estava provavelmente desiludido por não encontrar a Serena ao chegar, apesar de ter sido ele quem fez a chamada que ditou o exílio dela. Mas eu não lhe dera alternativa. Ele sabia que ela tinha um namorado e eu sabia que ele sabia, portanto não podia deixá-la ficar. A culpa da partida dela era minha e, não tendo mais ninguém a quem castigar, castigava-me a mim.

Mesmo que a Serena não tivesse sido uma vítima, já o conhecia o suficiente por esta altura para não estranhar que a sua atitude comigo tivesse mudado tão rapidamente. Não era necessária uma razão. Quando ele se mostrava gélido, eu sentiame nervosa, mas não tão nervosa como quando ele era generoso. Quando ele era generoso, era mais que certo que estava a preparar alguma. Talvez o meu castigo fosse moderado.

Estás muito bonita.

Foi mudar-se na outra sala e, quando voltou, pendurou o roupão e entrou para a banheira, onde submergiu até à cintura. Eu enfiei-me ao seu lado e ele virou-me ao contrário sem sequer me beijar. Sentime flutuar até ao teto enquanto ele me fodia. Era o tipo de foda cuja intenção era fazer-me sentir mal mas não fez. Eu estava cada vez menos ligada ao meu corpo. Era capaz de me desprender de mim mesma sempre que queria e deixar para trás unicamente um holograma. Por baixo de mim, o holograma agarrou-se à perna mais próxima do divã para se acalmar. Mas era livre. Não era um dos súbditos servis dele. Não estava sequer sujeita às leis da gravidade.

Depois de o Robin se vestir, imediatamente antes de me deixar para regressar à festa, experimentei uma das frases em malaio que tinha memorizado. Andava a guardar esta para uma ocasião especial.

Aku cinta padamu – disse eu.

Como já disse, o sultão só queria que lhe chupassem a pila, mas o Robin desejava ser amado. As pessoas que precisam de ser amadas por toda a gente são exponencialmente mais perigosas do que as pessoas que se contentam simplesmente com o poder e o dinheiro. É preciso ir muitíssimo mais longe para as fazer felizes.

Isso é bonito – respondeu ele.

O que eu tinha dito não era exatamente verdade. O que eu sentia por ele era semelhante ao amor, mas não completamente.Era algo como amor, mas também algo como absolutamente nada.

Quando voltei para a sala, a Fiona fezme sinal e eu atravessei a sala para retomar o meu lugar à esquerda do Robin e esperar a minha sorte.

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