Os dias ultrapassaram a marca das duas e depois das três semanas e agora sentava-se à mesa um novo grupo de raparigas americanas resplandecentes e desfasadas da realidade. A Taylor estava sentada ao meu lado. Tinha arranjado maneira de vir para o Brunei, claro. Convencera a Ari, usando de intimidação, falinhas mansas e outros processos hipnóticos, a enviar-lhe um bilhete. A Taylor não aceitava uma negativa. A princípio, senti receio dela, mas, perante a concorrência, a sua raiva tinha esmorecido e rapidamente renovámos a nossa amizade.
As raparigas americanas e europeias ocupavam agora a casa cinco e a casa seis. A maioria das raparigas asiáticas, à exceção da Leanne e da Fiona, estava alojada noutro local, que era mais como uma residência universitária. Eu e a Taylor partilhávamos um quarto na casa de hóspedes número seis. A Leanne tinha o quarto do outro lado do corredor e a Serena o quarto principal. A Ari ocupava o quarto principal na casa número cinco. As personagens menores, as figurantes, as atrizes de dia (não convém criar laços fortes; elas mudam depressa) eram uma amazona loura que jogava voleibol, chamada Kimmee, uma groupie de rock de Los Angeles chamada Britany, que usava um anel de noivado supostamente do Vince Neil, e uma antissemita chamada Suzy que me regalou com a minha primeira experiência de ouvir a palavra «judeu» ser usada como verbo: «Eu judiei com ele a baixar o preço destes brincos.»
O príncipe podia ter quatro mulheres mas só tinha três. Como tal, nas entrelinhas das conversas entre as raparigas vingativas e rivais no Brunei lia-se que o prémio podia ser uma coroa. O jogo era este: transcender todas as suposições, transcender todas as hierarquias invisíveis, inspirar o amor que conquista tudo, e a enteada do mundo – a prostituta adolescente tailandesa, a modelo da Playboy envelhecida, a atriz em dificuldades, a empregada de balcão, a puta do rock com ilusões de grandeza – podia tornar-se princesa. De pato a cisne, a um sinal dele.
Algumas raparigas iam e vinham, não passavam de caras iguais nas fotografias que tirávamos por brincadeira em casa, quando estávamos bêbadas e demasiado excitadas para dormir (fotos que viriam a embaraçar-me mais tarde quando uma das raparigas vendeu as dela à E! True Hollywood Story). Havia raparigas que ficavam por longos períodos de tempo e escapavam ao radar não passando de bonitas decorações nos divãs. Outras raparigas saíam do banco e entravam no jogo dando-lhe tudo o que tinham. Todas as raparigas mudavam durante a sua estadia no Brunei. Todas as raparigas se transformavam de algum modo, mercê da pressão, da paranoia, da insidiosa insegurança que se insinua quando todas as noites nos comparamos com uma sala cheia de outras raparigas.
Quem seríamos? Génios ou fracassos? Ficaríamos e aguentaríamos ou pôr-nosíamos a andar?
Um dos tópicos de conversa favoritos entre as raparigas era o que diziam aos pais, namorados e maridos. Quando uma atriz pornográfica aparece pela primeira vez num filme, com o cabelo preso em cima e de óculos, antes de se arrastar para a secretária do escritório, perguntamos sempre: como é que ela disse aos pais?
A Serena disse que contou aos pais que andava com o patrão. Disse ao tipo com quem vivia (o ruivo que a tinha levado ao aeroporto, que tinha ido do Kansas para Los Angeles para viver com ela, não o namorado dela, como ela insistia), que era babysitter. A Taylor, tanto quanto eu sabia, não tinha pais. Nunca falava deles e nunca fez um telefonema. Quando nos tínhamos conhecido, ela contara-me uma história falsa sobre uma plantação de pessegueiros e, como tal, nunca mais voltei a perguntar. Achei melhor poupá-la à mentira.
Tendo já adiado por demasiado tempo, achei que era altura de dizer qualquer coisa aos meus pais se não queria provocar um incidente internacional. Eles estavam cada vez mais desconfiados das minhas chamadas apressadas das eternas filmagens em Singapura. Sentei-me, com o meu pijama estampado com gatinhos, ao pé da mesa do telefone no átrio de mármore, peguei no auscultador e marquei o número deles.
A conversa foi constrangida, com a dolorosa pausa das linhas telefónicas internacionais a servir para relembrar a distância entre nós. Disse-lhes que, durante a rodagem desse mítico filme em Singapura, tinha conhecido um homem, que estava a trabalhar como sua assistente e que ele era um príncipe do Brunei.
De onde? – perguntou o meu pai.
Do Brunei.
Onde diabo fica o Brunei?
Podia ter inventado algo de menos revelador, algo sem um código tão fácil de decifrar como «assistente». Mas as nossas mentiras têm de assentar na verdade para não nos prenderem como algemas chinesas.
Foi mais difícil do que imaginei. Os meus pais pareciam confusos. Soaram preocupados e impotentes, o meu pai gaguejando de fúria e passando o telefone à minha mãe, que tentou perceber o que se estava a passar, sem hostilizar ninguém: a eterna diplomata, a qualquer preço. Imaginei-a com os dedos enrolados nas costas de uma das cadeiras da cozinha, os nós dos dedos brancos; imaginei um tacho de molho de tomate a ferver no fogão elétrico atrás dela.
Quando é que voltas para casa?
Não sei. Duas semanas. Três. Talvez mais.
Senti o nó da culpa a apertar-se. Sentia o ácido no fundo da garganta. Todas estas mentiras causavam-me náuseas. Lamento não ser uma filha diferente, apetecia-me dizer. Lamento que não sejam pais diferentes. Lamento magoá-los. Lamento toda esta confusão. Lamento mas não vou desistir. Depois de tudo o que se tinha passado entre nós, continuava a sentir o impulso constante para dizer que lamentava.
Quando tomei a decisão de sair definitivamente de casa, tinha dezasseis anos. Sei que era um sábado porque tinha estado a trabalhar como babysitter. Introduzi o código da porta da garagem e entrei pelo andar de baixo. A minha mãe estava a passar a ferro, com um par de jeans e uma sweatshirt BeDazzled. Estava recortada contra a luz da lâmpada nua na lavandaria, a boca apertada e os ombros direitos. A casa cheirava a vapor de algodão. Eu ia a pensar nos livros que tinha de ler para as aulas, em Holden Caulfield a esconder o seu imaginário ferimento de bala, que abril era o mês mais cruel: coisas ponderosas e importantes. Passei por ela em silêncio.
Podias ao menos dizer olá.
Olá. – Continuei. Não tinha tempo para a minha mãe, mas para o meu pai tinha reservas infinitas de tempo. Todos os dias era necessária uma nova manobra do nosso estado de guerra permanente. A minha mãe porém era ignorada. Acho que a minha indiferença a magoava.
Olha para mim – disse ela, exigindo atenção. – Que andaste a fazer?
A conduzir bêbada.
Não me fales assim.
Assim como?
O meu pai estava a meio das escadas; senti os seus passos pesados sobre nós. A minha mãe parou de passar a ferro e barrou-me o caminho numa atitude de confronto. Tentei contorná-la mas ela agarrou-me no pulso.
Não te afastes de mim. Olha para mim. Andas a tomar drogas? Era a sua pergunta favorita. Pertencia a comités de tudo e mais alguma coisa: educação sobre drogas nas escolas, consciencialização para encontros amorosos que podiam acabar em violação, leilões para a feira da escola. O comité de educação sobre drogas tinha-a tornado paranoica. A verdade era que eu não tomava drogas com muita frequência e não estava definitivamente drogada nessa noite, descontando o facto de ter inalado o óxido nitroso do chantilly no Cohens.
Larga-me. – Afastei o braço.
Neste momento, o meu pai apareceu no patamar da escada. Quando retirei bruscamente o pulso da mão da minha mãe deulhe a sensação de que me preparava para lhe bater.
O meu pai conseguia mover-se a velocidades incríveis. Era um tipo baixo e rechonchudo, mas desafiava a física com o ímpeto da sua fúria. Os seus olhos estavam esbugalhados e injetados de sangue. As veias do lado do seu pescoço estavam inchadas de uma maneira pouco natural e os vasos sanguíneos visíveis no seu nariz e maçãs do rosto escureceram com o esforço de permitir a subida do sangue à sua cara. Foi tão rápido que não o vi chegar.
Nunca levantes a mão à tua mãe!
Agarrou-me pelo pescoço e empurroume para trás até eu bater contra a parede.
Desavergonhada. Nojenta. Cadela ingrata.
A cada ponto final, o meu pai puxavame para a frente pelo pescoço e voltava a bater com a minha cabeça contra a parede. Quando me largou, caí no chão e encostei os joelhos ao peito. Chamava-lhe o meu truque de desobediência civil. Fechava os olhos e transformava-me numa bola minúscula. Não oferecia partes vulneráveis.
Olha para mim quando falo contigo.
Pôs-se a andar de um lado para o outro à minha frente, cerrando e descerrando os punhos. A agressão física custava menos que as palavras. Acontecia com pouca frequência, mas as palavras eram diárias. Eu sabia que ele não tinha razão, sabia que não tinha desculpa. Mas, mesmo assim, as palavras eram o pior. Brotavam-lhe da boca em gaguejos. Falava por línguas, espumando literalmente da boca. –
És uma porca, vestes-te como uma puta e ficas horrorosa, pareces uma fufa feia e, se achas que vais conhecer gente simpática assim, desengana-te, se julgas que vais conhecer um rapaz simpático assim, não vais, temos vergonha de ti, és uma desilusão, porra, uma merda de uma criatura que não vale nada, que é que aconteceu, que é que te aconteceu, que é que eu fiz para merecer isto, esta vida de merda, estes filhos de merda, és um desastre, pões-me a ridículo.
Eu conhecia os ataques de fúria do meu pai e sabia como pará-los. Sabia que iam atingir o ponto alto durante um minuto, mas não tardariam a passar. Instiguei-o.
Não és capaz de melhor?
Que é que me disseste em minha casa?
Agarrou-me pelo cabelo e afastou-me da parede.
Estás drogada?
Desliguei o botão. Pus o corpo mole e os olhos mortiços. Ele encavalitou-se sobre o meu peito e bateu-me várias vezes na cara, alternando entre a palma aberta e as costas da mão, que eram ainda mais dolorosas. Sempre que a mão estabelecia contacto, voltava a perguntar:
Estás drogada?
Zuniam-me os ouvidos e o zunido era como um fio. Agarrei na ponta do fio e puxei por mim, leve como o ar, para o alto da sala e para fora, para a noite suburbana verde e profunda com o aroma a relva cortada e os grilos, as luzes atrás de cortinas, os televisores a tremeluzir nas salas de estar. Sobrevoei West Orange e Newark, Parkway e o Hudson e nem uma vez olhei para baixo até que vi Nova Iorque, a Cidade Esmeralda, as suas torres brilhando ao luar. Sabia alguma coisa sobre Nova Iorque. Sabia que não seria feia quando lá chegasse.
A minha mãe estava de braços caídos aos pés das escadas do outro lado da sala. Parecia alguém num filme, suspensa no tempo, enquanto as outras personagens continuavam a mover-se. O encantamento passou o suficiente para ela gritar. –
Chega. Por favor. Já chega.
Não percebi se estava a falar com o meu pai ou com Deus.
O meu pai levantou-se e recuou, parecendo confuso e perdido. Nesse momento, imaginei que sabia no que ele estava a pensar: que a sua vida não podia ser mais diferente do que tinha esperado, do que tinha procurado realizar, do que tinha sonhado quando sonhava com uma família. Que estava nos antípodas do homem que tinha pensado que era. Senti pena dele.
Os meus filhos são uma maldição de Deus – disse ele, dando meia-volta e saindo pela porta da garagem.
Quando estourava assim, horas mais tarde – ou, nos piores casos, no dia seguinte – uma pessoa inteiramente diferente batia-me envergonhadamente à porta do quarto e perguntava se eu queria descer e ouvir música diante da lareira ou se queria ir comer um gelado ao BaskinRobbins e alugar um filme. –
Tenho mau génio – gosta de dizer sobre si mesmo. – Mas passa depressa. – Como se uma tareia rápida fosse preferível a uma longa conversa.
Depois dessa noite, informei a minha mãe de que ia sair de casa. A minha mãe – que expedia os melhores pacotes de iguarias para os campos de férias, dava alegremente boleia a toda a gente, era presidente da Associação de Pais, voluntária incansável, meticulosa redatora de mensagens de agradecimento, organizadora de jantaradas perfeitas, prestadora dedicada de cuidados a familiares e amigos doentes – achou que era boa ideia. Sugeriu que eu fizesse os exames do ensino secundário e me candidatasse à universidade um ano mais cedo.
Consegui entrar para a Universidade de Nova Iorque e a minha mãe levou-me ao Loehmann’s para comprar roupa nova para a faculdade. Sempre que íamos às compras, a minha mãe não podia ser mais generosa. Muitas vezes, sofria as consequências mais tarde, quando a conta chegava e o meu pai protestava pela sua falta de cuidado e incompetência. Dizia que ela nem a casa era capaz de limpar. Só servia para fazer compras. Estes ajustes de contas aconteciam sempre que chegava uma fatura, mas ela continuava a ir às compras.
É preciso compreender os homens – disse-me ela. – Deixamo-los dizer o que precisam de dizer e depois fazemos na mesma o que queremos.
Como a minha mãe queria ir ao Loehmann’s e eu queria ir à única loja de roupa punk de New Jersey, chegámos a um compromisso. Eu sentia terror ao que chamava as «coxas Hadassah9» das velhinhas judias nos gabinetes de prova coletivos do Loehmann’s e ela sentia horror às suásticas tatuadas de cada lado da crista da empregada da loja punk, mas nesse dia não fomos agressivas uma com a outra.
Ela não devia usar um corte de cabelo daqueles com uma cara tão gorda – foi tudo o que a minha mãe disse sobre a empregada.
Almoçámos juntas mas não me recordo do que conversámos. O ritual desenrolouse com uma certa doçura, a última ida às compras antes de eu sair definitivamente de casa. Era como se eu fosse uma rapariga normal que saía de casa para ir para a universidade. E, num certo sentido, era verdade. As duas realidades existiam em simultâneo. Eu era uma adolescente anorética meio avariada, que me escondia atrás de uma cabeleira roxa e fugia ao mundo, e era uma rapariga precoce com aspirações teatrais, um ingresso prematuro numa boa escola e uma lista de sonhos e planos que ocupavam dez páginas do meu diário.
E as duas mães existiam em simultâneo: a mãe cujos olhos se toldavam, que fixava o espaço e ficava de braços molemente caídos enquanto o marido descompunha os filhos; e a mãe que coseu etiquetas em todos os lençóis antes de eu partir para a universidade. Nesse dia, ouvi as duas mães do outro lado da linha telefónica.
Pergunta-lhe se ela sempre vai connosco este ano para as ilhas Caimão – disse o meu pai atrás. –
Querida, vais chegar a tempo de ires connosco para as ilhas Caimão? Gostávamos muito que viesses – traduziu a minha mãe.
Não, mamã, acho que não.
Que é que ela disse? – perguntou o meu pai à minha mãe.
Não. Disse que não. Este ano não pode vir.
O quê? Fico reduzido ao irmão? Dizlhe que me está a dar cabo das férias.
A minha mãe não traduziu este último comentário. Preferiu dizer: – Estás mesmo bem?
Estou ótima. O trabalho é fantástico. Não posso perder esta oportunidade.
Quando desliguei, sentia-me aliviada por eles saberem esta meia-verdade e também por não ter de estar com eles durante uns tempos. Como ninguém estava espera para usar o telefone, liguei ao Sean. Liguei ao Sean e desfiz-me em lágrimas. Sentia saudades dele. Saudades de casa. Virei-me e olhei para a minha imagem no espelho, vendo a minha cara tornar-se pálida como pasta e manchada de vermelho. Secretamente gostava de me ver chorar. Era como observar a cara de outra pessoa. Provava-me que era capaz de emoção. Às vezes, passava tanto tempo a representar o papel que me esquecia do que sentia verdadeiramente, esquecia-me até se alguma vez experimentava emoções sinceras.
Então vem para casa, Jill. Vem para casa – disse ele, soando cansado. Cansado de mim. Mais tarde, disse-me que não estava cansado de mim, estava triste por mim, por aquilo em que eu me estava a tornar, pela sua impotência para alterar o rumo que eu dera à minha vida.
Não posso.
Não te posso ajudar.
Liguei à Penny e ela disse-me que o espetáculo continuava sem mim, mas garantiu-me que o meu lugar estaria sempre à minha espera. Quando eu chegasse, escreveríamos qualquer coisa de novo. Só que eu não sabia quando ia regressar. Lamentava não ter aplacado a preocupação da minha mãe, não voltar para o Sean, não estar com a Penny quando ela estava a escrever o nosso espetáculo, mas sentiame compelida a ficar de um modo que não conseguia explicar a nenhum deles. Não podia simplesmente afastar-me. Não podia partir e entregar os pontos à Serena. Não queria ser eu a desistir.
Eu resplandecia e divertia-me nas festas, mas na casa andava sombria e saudosa de casa. A Serena não dava tréguas. Mandava embora a comida antes de eu chegar lá abaixo de manhã. Organizava cocktails na piscina e esquecia-se de me convidar. Punha filmes na sala de estar, ao lado do meu quarto, em altos berros quando eu estava a tentar dormir. Dizia às outras raparigas que eu cheirava mal, que era uma prostituta com herpes, uma bêbada, uma desmazelada gorda e bulímica. Tudo o que ela dizia chegava aos ouvidos dos poderes instituídos que espreitam e vigiam, a tal ponto que depois da acusação do herpes, fui levada de surpresa ao médico.
Eu estava a par da traição da Serena através da Taylor, que me mantinha ao corrente porque também detestava a Serena e porque eu era talvez a sua única amiga no Brunei ou em Nova Iorque ou em qualquer outro lugar, apesar de continuar a tentar cobrar-me uma comissão sobre o dinheiro que eu ganhava. Eu e a Taylor ficávamos juntas na cama a olhar para as luzes no teto em degraus. Era uma espécie de sala de estar rebaixada em negativo.
A Taylor sussurrou-me ao ouvido, com a música no máximo, para ninguém nos ouvir. Tentou convencer-me a vingar-me da Serena.
Tens de retaliar.
Ninguém me dá ouvidos; dão-lhe ouvidos a ela.
O Robin dá-te ouvidos. Porque é que achas que ela se comporta assim?
Eu começava a acreditar que inspirava, de algum modo, algum antigo instinto tribal para ostracizar a pessoa que era diferente.
Não é porque são diferentes, minha linda – disse a Taylor. – Deixa-te de alimentar esse conceito sobre ti própria. É porque és melhor. É porque ele te prefere a ti. Mas essa cabra é capaz de o fazer mudar de ideias a não ser que te empenhes e reclames o que te pertence.
Mas eu não me lembrava de alguma vez me ter vingado de ninguém. Em vez disso, afundava-me cada vez mais dentro de mim; fugia. Agarrava-me aos meus sonhos de estrelato e sabia que era aí que residia a minha vingança. A Taylor tinha em mente uma ação muito mais imediata e, sob a orientação dela, eu estava a começar a considerar a hipótese. Estava a começar a pensar que devia isso a mim mesma.
Não é afinal o que fazemos quando descobrimos de súbito que fazemos parte da corte de um príncipe? Conspiramos. Maquinamos. Manobramos para conseguir uma posição. Exercemos vingança. Não é essa a pessoa que queremos ser? Ou queremos ser a rapariga leal, de bom coração, a rapariga que toda a gente pisa, a rapariga que inevitavelmente se deseja que tenha menos tempo de antena porque os outros são muito mais interessantes?
Tens de te defender. Podias dizer-lhe qualquer coisa sobre ela que fizesse com que fosse recambiada para casa – sugeriu a Taylor, enrolando uma madeixa do meu cabelo distraidamente no dedo.
Ele é demasiado esperto. Percebia logo o que eu estava a fazer.
Não necessariamente. Se também fores esperta, não percebe. Mais esperta. E tu és capaz, ouviste? Ele tem um ponto fraco. O ego cega-o.
A Visita da Taylor ao Brunei terminou depressa, para minha grande desilusão, pondo fim aos nossos esquemas. Foi mandada embora depois de três semanas e não foi convidada a voltar. A Taylor e o Robin não estabeleceram qualquer química entre si. A Taylor podia ser brilhante, à sua maneira, mas era demasiado calculista, não tinha pontos vulneráveis suficientes. Era exatamente como ele e ele reconheceu isso imediatamente. Preferia raparigas que pudesse encantar, raparigas que pudesse ferir. A Taylor era uma boa atriz, mas tinha as suas limitações. Não era dada à vulnerabilidade. Mas tinha ficado tempo suficiente para plantar uma semente dura e fria dentro de mim.
A semente que a Taylor tinha plantado, a Fiona regava. Depois de a Taylor partir, eu escapava para casa da Fiona à tarde para fumar e comer os chocolates dela. A Fiona era a única rapariga na propriedade que tinha casa própria. Dormia no quarto principal e usava os outros dois quartos – os quartos inteiros – como roupeiros. Mandou retirar as camas e no lugar delas pôs cabides de roupa. Os seus tailleurs e vestidos de noite, os fatos de ténis, a roupa casual e até os pijamas estavam organizados primeiro por tipo e depois por cor. Não se ocupava pessoalmente da tarefa; delegava-a com um majestoso sentido de poder.
A Fiona tinha o dobro dos criados na casa dela do que nós na nossa e eles andavam sempre num corrupio a executar tarefas.
A Fiona falava com eles quase unicamente em tailandês e eles até pareciam gostar dela. Eu sentia-me sempre um pouco culpada com os criados. Ainda tinha muito que aprender. A Fiona fora uma atriz popular de televisão nas Filipinas. Disse-me que o Robin se apaixonara por ela ao vê-la numa série e a tinha procurado e convidado para uma visita. A princípio, ficou intrigada, mais tarde sentiu repulsa, e finalmente deixou-se conquistar. Na sua primeira noite no Brunei, tinha entrado na festa e voltado logo a sair. O Robin reagira à consternação dela com diamantes. Ela tirou o colar de uma gaveta atafulhada de guarda-joias e pô-lo para me mostrar. Tinha a forma de um puma que se prendia pela cauda. Enrolava-se-lhe no pescoço como algo de domado, desprovido de garras. Já estava no Brunei há seis meses.
Estávamos a beber chá na sala de estar da Fiona, que estava reclinada a fumar cigarro atrás de cigarro. Não era permitido fumar em lado nenhum; o Robin abominava o tabaco. Mas a Fiona fumava na mesma.
A chorar baba e ranho, queixei-me à Fiona. As outras raparigas eram horrivelmente cruéis. A Taylor tinha voltado para casa. Sentia saudades de Nova Iorque. Saudades do Sean. A minha ansiedade crescia de dia para dia, tinha demasiadas ressacas, acordava todas as manhãs com uma nuvem negra sobre a cabeça que não conseguia dissipar.
Não aguento aquelas cabras más. Não aguento mais isto.
Não sejas estúpida. Estás aqui para fazer amigas? – perguntou ela. – Isso é um erro. Essas palermas são tudo menos tuas amigas. O teu único amigo é o dinheiro.
Queria ser como a Fiona. Quando tinha quinze anos, julgava-me uma pessoa adulta, mas estava a mudar de ideias.
Além disso, hás de vingar-te delas. Eu tenho ideias muito próprias sobre retaliação – declarou ela. – Quase todas passam por ir às compras.
Uma manhã, pouco depois, ouvi a já familiar pancada na porta mas, quando desci para o carro, era a Fiona quem estava lá dentro.
Vamos às compras – disse ela. – O Robin gosta de nos ver com vestidos tradicionais. Não te preocupes; mais tarde compramos roupas em condições. Imagina que é um aperitivo.
Um motorista conduziu-nos a lojas malaias tradicionais, onde mulheres muito maquilhadas, com roupas de seda estampada, nos cumularam de atenções, ataviando-nos com kebayas e bajus kurongs de cores vivas, a que não faltavam sapatos recamados de joias, peças para usar no cabelo e joalharia. Devemos ter comprado dez cada uma. O motorista foi desembolsando nota atrás de nota e carregou os nossos sacos para o carro.
Nessa noite, o Robin mandou-nos fotografar às duas junto da fonte no átrio do palácio. Eu estava com um traje tradicional de seda cor-de-rosa coberta de contas, com uma cintilante flor artificial cor-de-rosa a adornar-me o cabelo. As fotos eram quase todas individuais mas, em algumas, eu e a Fiona estávamos sentadas ao lado uma da outra de mãos dadas como se fosse um retrato de casamento.
A Fiona estava a tornar-se mais do que uma amiga; era como uma espécie de irmã mais velha, num sentido pervertido. Sempre desejei ter uma irmã. Nessa noite, senti que a minha posição na hierarquia do harém fazia de mim uma participante em qualquer coisa de ancestral. Por um lado, era traiçoeiro e terrível mas, por outro, não era muito mau, este mundo de mulheres com um homem que era um enigma e nos tinha sob o seu domínio.
Da vez seguinte que fomos às compras foi inteiramente diferente.
Eu e a Fiona sentámo-nos no banco de trás de outro carro, desta vez com destino ao aeroporto de Bandar Seri Begawan, onde embarcámos num avião privado para Singapura. O interior do avião era todo em couro branco e ferragens douradas e as paredes pareciam de mármore branco com veios de ouro. Elegantes hospedeiras de bordo serviram-nos bebidas e o almoço e apresentaram-nos uma seleção de revistas.
Obrigada, Siti. Obrigada, Jing – disse ela às sorridentes hospedeiras ao desembarcarmos. A Fiona perguntava o nome a toda a gente e memorizava-o.
Conduziu-me através do aeroporto como se tivesse um destino predefinido mas nunca como se estivesse com pressa. Usava sempre saltos altos que davam à sua anca um leve bamboleio: nada de excessivamente rasteiro, mas o suficiente para que a atenção dos homens por quem passava gravitasse na sua direção. Imitei o andar dela durante todo o percurso até ao carro que nos esperava e novamente quando chegámos ao Hilton, onde íamos ficar na suíte privada do príncipe. Esta ocupava um piso inteiro, com uma hoste completa de funcionários, e era mais como uma vivenda do que uma suíte. O interior era Robin clássico, com uma enorme fonte interior e montes de puxadores de porta de ouro maciço.
A Fiona respirava classe ao passo que eu me sentia como a Courtney Love aos tropeções pelo Palácio de Buckingham. Decidi que, se ia ser apaparicada por hospedeiras de bordo, pilotos, motoristas e criadas, devia pelo menos ser digna do papel. Comecei por fazer um esforço consciente para não usar palavras como fodase e tipo em casa frase. Copiar o sotaque britânico da Fiona seria ir longe de mais mas, tirando isso, forcei as minhas sílabas a acompanhar a dicção perfeita dela. Procurei substituir a aspereza de Jersey que ainda não me tinha sido arrancada por anos de aulas de Teatro pelos seus tons maviosos de contralto.
Observei a maneira como ela se sentava de costas aprumadas ao jantar sem perder a pose relaxada. Comecei a manter o garfo na mão esquerda, a cortar pequenos pedacinhos de frango e a conseguir falar de boca fechada enquanto mastigava. Estudei a Fiona como se fosse um exercício dramático. Estava definitivamente a desempenhar um papel, mas não era um papel que viesse a ser fácil abandonar. Quando saí para aquela varanda em Singapura e me senti à beira de uma transformação, percebi que não me tinha enganado.
Passámos lá a noite e, de manhã, tomámos juntas um pequeno-almoço de bacon e ovos. A Fiona comia como uma senhora, mas não deixava ficar nada. Não fazia dieta.
Hás de aprender que o Robin nunca fica muito tempo com raparigas magras – disse ela. – Agora diz-me, quem pode resistir a um homem assim?
Era verdade. Quem não gosta de um tipo que gosta das raparigas bem abonadas? Ignorei o bacon mas servi-me sofregamente de mais ovos. Era um alívio enorme.
Conversámos sobre as nossas vidas nos nossos países. Ela já tinha comprado moradias citadinas para ela e para os pais com o dinheiro ganho como atriz. Depois dera a casa dela à irmã e comprara uma segunda casa com o que tinha ganhado com o Robin; ou melhor, com as «prendas».
Tentei explicar-lhe o que era o teatro experimental e percebi que ela achava que era a coisa mais estúpida que já tinha ouvido.
Muito artístico – disse ela com bons modos.
Era claro que me achava, senão fabulosa, pelo menos divertida; senão uma igual, pelo menos uma companheira de diversão à altura. Ocorreu-me que não tinha subido tão rapidamente na hierarquia porque o Robin se tomara de amores por mim, se bem que acredite que a afeição dele por mim estava genuinamente a crescer. Era porque a Fiona desejava uma amiga. Fora a Fiona a escolherme, a orientar os afetos dele.
Disse ao Robin que desta vez tinhas de vir comigo às compras – contou-me ela, em jeito de lembrança de quem mandava.
Depois do pequeno-almoço, partimos separadamente, cada uma com o seu motorista. Eu era de opinião de que devíamos ir juntas mas, quando disse isto à Fiona, ela ignorou-me, invocando que não haveria espaço ao mesmo tempo na mesma loja para as duas, o que achei absurdo. Ao lado do meu motorista ia um guardacostas com um saco Louis Vuitton cheio de dinheiro, parodiando o saco que um grupo de assaltantes num filme mudo poderia usar para roubar um banco.
O guarda-costas perguntou-me onde eu queria ir. Sabia onde ficavam todas as lojas de Singapura; bastava-me escolher. Indiquei a primeira marca de luxo de que me lembrei: Dolce & Gabbana. Desejo concedido!
Singapura fazia-me lembrar uma utopia prateada de ficção científica, situada sob uma cúpula de oxigénio. Como microcosmos da própria cidade, os centros comerciais eram cintilantes e modernos. O primeiro era brilhante e branco, e subia em curva como uma espiral, semelhante ao Guggenheim. Hesitantemente, passei as mãos pelas roupas na Dolce, olhando para os múltiplos zeros nas etiquetas dos preços. Uma empregada de balcão rondava atrás de mim e tirava cada peça do cabide mal eu a tocava. Quando já tinha uma braçada delas, passou-as a outra rapariga que correu para o gabinete de provas. Parecia uma brigada de incêndio a passar baldes.
Quando fui provar a roupa, descobri que as empregadas de balcão nas lojas de marca em Singapura são ligeiramente diferentes das da Urban Outfitters. Enfiaram-se três no meu gabinete e praticamente encarregaram-se de me despir.
Comecei com calma, experimentando tudo duas vezes, olhando para os preços e pedindo opiniões. As empregadas cacarejavam e puxavam pelo tecido e acenavam aprovadoramente com a cabeça. De testa franzida, eu rodopiava diante do espelho até que o meu guarda se fartou e me agarrou pelos ombros.
Olhou para mim e disse: – Esta é só a primeira loja.
Pegou num vestido do banco do gabinete e mais três do cabide e passou-os à empregada, falando com ela em malaio. Ela levou tudo para o balcão.
Leve-os todos. Pode não ter outra oportunidade de fazer compras na vida.
Pegou numa carteira, iluminada por um projetor, numa prateleira de vidro e passou-a à rapariga seguinte que a levou para a parte da frente da loja.
Mas quanto é que posso gastar? – Não queria atingir o limite e acabar com um monte de roupa de que não gostava especialmente, e muito menos quando podia não ter outra oportunidade de fazer compras na vida.
Pegue nelas e vamos embora. Eu digo-lhe quando estiver a chegar ao limite.
Chanel, Hermès, Versace, Dior, Armani, Gucci. Percorremos o primeiro centro comercial e fomos para o seguinte e depois mais outro até que tudo, inclusivamente as coisas mais caras – especialmente as coisas mais caras –, começou a parecer barato e nauseante. Não chegávamos sequer a levar os sacos connosco; eram despachados à nossa frente. Era frenético. Era como uma mãe dos subúrbios que ganha uma rifa em que o prémio são dez minutos na Toys’R’Us, percorrendo os corredores com um carrinho de compras e agarrando em tudo a que consegue deitar a mão.
Sentia-me consciente do meu consumismo encarniçado. E as escravas de oito anos na China que cosiam estes trapos absurdamente caros? E as pessoas com fome? Os sem-abrigo? Países inteiros assolados pela miséria e pela fome? Quarteirões inteiros em Nova Iorque em que os passeios estão cobertos por habitações de cartão?
Era o que dizia a mim mesma: o dinheiro não era meu, era do Robin, e ele não estava a gastá-lo com os sem-abrigo, estava a gastá-lo em roupas para a amante e, se eu não comprasse aquele vestido ali, não ia ajudar nenhuma causa, não ia dar a uma só costureira explorada mais um centímetro cúbico de ar fresco. Estava a ser idiota, a alimentar as presunções do coração de manteiga burguês. Não comprar um vestido porque havia pessoas a morrer à fome? Até a culpa era embaraçosa, tipo teatro experimental. A Fiona teria zombado de mim. Teria considerado a minha idiotia imperdoável. Convenci-me de que o Robin era provavelmente um tipo muito caridoso noutros sentidos. Afinal de contas, toda a gente no Brunei tinha acesso a cuidados de saúde; toda a gente recebia educação gratuita. Que mal tinha ele também querer que as namoradas andassem bem vestidas?
Depois de as lojas fecharem às nove da noite, os seguranças abriam-nos as portas. As empregadas ficaram nas lojas até mais tarde e nós continuámos a fazer compras; doíam-me os pés nas sandálias enquanto percorríamos energicamente os sombrios corredores dos centros comerciais fechados. Comecei a atirar vestidos Chanel para cima do balcão sem sequer os provar. Achei boa ideia continuar até atingir o meu limite orçamental, mas antes disso o cansaço apoderou-se de mim e desisti. Voltámos para o hotel perto da meia-noite. Tinha andado nas compras desde as onze da manhã.
Afinal qual era o meu limite? – perguntei ao guarda-costas quando íamos no carro. Custava-me a crer que não o tivesse atingido. Não tinha sido por não tentar.
Não havia limite. Há raparigas que não têm limite. Só as muito especiais.
Bem, então quanto é que gastei?
Ele mencionou um valor que me deixou sem fala. Excedia em muito a entrada que dei para a casa onde atualmente moro. Senti-me inebriada.
Eu e a Fiona jantámos em silêncio. Eu estava desidratada e os noodles estavam duros e insípidos. Fomos imediatamente deitar-nos, exaustas. Quinze malas idênticas estavam encostadas à parede. As minhas novas roupas já estavam dobradas e emaladas. Deitei-me na cama e tentei apertar com força os joelhos contra o peito para dissipar a sensação de repulsa.
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Atualizado até capítulo 30
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