O espelho na minha casa de banho tinha começado a separar-se da parede; era apenas uma nesga mas o suficiente para eu ver uma pequena luz vermelha a acender-se de vez em quando nos recessos escuros atrás. Chamei as outras raparigas para confirmarem. Não havia dúvida: de tempos a tempos acendia-se uma luz.
Não era novidade que éramos observadas mas nem por isso nos sentíamos menos loucas e paranoicas. Quem estava a observar? Que pretendiam ver? Embora a Taylor se tivesse ido embora e eu tivesse sido autorizada a ficar sozinha no quarto porque tinha tanta roupa que precisava do espaço nos roupeiros, nunca me senti verdadeiramente sozinha. Era como uma ervilha debaixo do colchão: o suficiente para me criar desconforto, mas não o bastante para eu identificar exatamente o que estava mal.
Tenho ouvido dizer que a privacidade é uma manifestação do privilégio. Apesar de ter crescido num ambiente de privilégio, nunca senti que tivesse um mínimo de privacidade. O meu pai tirou as fechaduras das nossas portas. A minha mãe leu o meu diário, alegando que caíra de uma gaveta quando a empregada estava a limpar. Nunca parti do princípio de que, no meu próprio apartamento em Nova Iorque, ninguém abria as portas sem bater nem me revistava as gavetas e que não tinha de codificar os meus diários de forma tão complexa que nem eu os entendia mais tarde. No Brunei, estava de novo a viver num mundo em que nem a página era privada. Onde quer que me sentasse a escrever no meu diário, havia um espelho atrás de mim e, atrás deste, uma câmara que registava todas as palavras.
Que viam as câmaras? Qual era o ato que mais me envergonharia? Tirar o buço com cera? Fingir que tocava guitarra? Um vibrador? Estava-me completamente a marimbar.
Não, o que me incomodava era que elas registaram uma rapariga sentada no chão do quarto a olhar para as malas durante dois dias, sem conseguir desfazêlas. Porque, quando as desfez parcialmente, parecia que o quarto tinha sido saqueado e assim ficou durante mais três dias. Porque todas as noites a rapariga conseguia tirar uma indumentária do caos e compor-se para ir à festa, mas todas as manhãs acordava mais uma vez em frangalhos. Só conseguia ler e ouvir música. Deixou de fazer exercício, deixou de nadar, deixou de aparar as bolas de ténis que uma máquina lhe lançava.
Fora como um relâmpago. Algures entre Singapura e o Brunei, uma bala de canhão tinha sido disparada do céu, acertando-me nas entranhas e tirando-me o fôlego. Todos os dias, jurava que ia mudar, que ia ser eficiente e jovial como a Ari, competente e espirituosa como a Madge, mercenária e sofisticada com a Fiona: tudo menos preguiçosa, descontrolada e desalentada. Tudo menos eu.
Estava apanhada nos tentáculos de uma depressão que tem sido uma constante na minha vida, umas vezes deixando marcas impercetíveis e outras vezes paralisandome. Não era a primeira vez que lhe sucumbia. Quando as sombras da depressão encobriam o meu campo de visão no liceu, culpava o meu pai, a escola. Agora que esse tempo passara, percebia que me tinha enganado; a culpa era exclusivamente minha. Acusava-me de ser fraca de espírito, preguiçosa, complacente. A lista de acusações é infinita.
Tinha a certeza de que me restabeleceria, se me esforçasse o suficiente, se praticasse ioga suficiente, se cantasse o «Hare Krishna», se lesse Freud e Jung e o Dalai Lama e Ram Dass, se deixasse de comer chocolate, se passasse a fazer mais exercício, se aprendesse as malditas cassetes de francês que tinha levado comigo. Tinha a certeza de que, se conseguisse escalar esta fortaleza, alcançaria as alturas onde o céu era azul e se respirava ar fresco. Estaria aí e sentiria que tinha salvação, em lugar de me considerar arruinada. Não fazia ideia que tipo de bicho tinha pela frente.
Se alguém me tivesse então sugerido que os meus problemas se deviam a algum defeito de ligação, alguma experiência química que correra mal no meu cérebro, teria dito que era uma sugestão para não assumir a responsabilidade pelas minhas próprias decisões. Agora sei que estava enganada. Hoje, quando me assombra o fantasma da depressão, reconheço nele o que é. Não desmancho sistematicamente a minha vida sempre que a depressão salta sobre mim de trás de uma árvore. Mas, naquela altura, tinha a certeza de que tinha remédio se o mundo mudasse mais depressa, ou eu.
Em parte, esta ilusão era alimentada pelo facto de, aparentemente, uma mudança de cenário funcionar. Quando o mundo à minha volta se alterava, durante um ou dois minutos, a novidade, a adrenalina, as endorfinas eram capazes de me arrancar ao meu desalento amorfo. Estava a voar nas asas dessas mesmas endorfinas quando saltei da cama e finalmente desfiz as malas de Singapura, preparando ao mesmo tempo uma mala para uma viagem à Malásia. Eu e a Fiona íamos fazer parte da comitiva real numa missão diplomática de duas semanas a Kuala Lumpur. Com a típica falta de pré-aviso, fui informada de que partiria no dia seguinte.
Acho que a Ari sentia pena de mim por causa da maneira como as outras raparigas me tratavam, mas não tanta pena quanto isso. Era extremamente bem paga pelo trabalho árduo que fazia, mas nunca era cumulada com o tipo de joias e dinheiro que as namoradas recebiam. E, na opinião dela, nós não trabalhávamos arduamente. Embora a irritasse, relativizava as coisas. A Ari alimentava uma certa incredulidade a respeito do seu emprego. Afinal de contas, de responsável por uma propriedade em Bel Air tinha passado a angariadora de prostitutas para um príncipe.
As raparigas que a Ari levava para o Brunei quase nunca eram prostitutas, mas nunca encontrei nenhuma que recusasse as investidas do príncipe quando viam as recompensas. Todas as raparigas que conheci no Brunei tinham um preço e o Robin pagava-o infalivelmente. Só uma vez ouvi uma expressão de remorso e, no fim dessa semana, já uma pesada caixa de joias tinha acabado com ele. Na verdade, as raparigas que chegavam vindas de empregos normais, namorados normais, vidas normais, eram as que mais rapidamente aderiam ao novo estilo de vida. Sentia-me embaraçada por elas, pela maneira como se babavam com os Rolexs que recebiam pelos anos. Só porque se está sequestrada numa espécie de irmandade num mundo paralelo não quer dizer que não se possa ter uma certa dignidade.
À Ari, por outro lado, não faltava dignidade. E parecia preservar a identidade perante a influência corruptora do Brunei. Tinha também um noivo na América chamado John. O John era um empreiteiro de sucesso. Tinha um olho azul e outro verde e era absurdamente atraente, como se tivesse acabado de sair de um anúncio a loção da barba. Além disto, trabalhava como voluntário a ensinar natação a crianças autistas uma vez por semana. Era um ator de comédia romântica perfeito, para quem gosta dessas coisas.
Embora a Ari não estivesse romanticamente envolvida com ninguém no Brunei, era tabu mencionar o John. As mulheres como a Ari e a Madge eram incumbidas de tarefas difíceis que envolviam muito dinheiro e informações sensíveis, mas não podiam ser casadas nem ter namorados. Ou pelo menos havia em torno disso um silêncio aceite. Para a Ari e a Madge era uma infração ter namorado, mas para as namoradas do Robin era suicídio. Se alguém descobrisse, o resultado era ir no próximo avião para casa.
Até a Ari se sentia só no Brunei e, por vezes, conversava comigo. Embora eu não considerasse que ser «de confiança» se contasse entre as minhas primeiras virtudes nesse momento, era provavelmente a melhor opção dela. Não era que a Ari confiasse exatamente em mim, mas estava ciente de que eu era suficientemente inteligente para saber que não seria prudente enfurecê-la. A Ari falou comigo sobre os seus planos de casamento sem nunca mencionar a palavra casamento. Sentada na cama de pernas cruzadas, enquanto eu fazia as malas, ia comendo abacate da casca com uma colher.
Neste momento, ando um pouco ansiosa porque, claro, anteciparam a minha data de partida em quatro dias e agora vou ter de faltar às reuniões com a empresa de catering e o organizador. O presidente pode encontrar-se com o arquiteto. Não me estou a queixar.
A Ari ia casar-se com o John dentro de seis meses. Chamava-lhe «o presidente» em código porque o nome dele era John Adams. A Ari tinha vinte e cinco anos e estava a construir uma casa em Malibu. Quanto a mim, fazia sentido que ela estivesse desejosa de uma vida sedentária e de assentar para constituir família. Era o melhor que fazia: não tinha já visto o suficiente com vinte e cinco anos?
Tua mãe não pode substituir-te?
É, em última análise a minha mãe vai encarregar-se de tudo. Já sei. Mas isto é uma coisa que só se faz uma vez, por isso gostava pelo menos de ver os meus convites antes de serem enviados – disse ela.
Já te disse que quando chegares a Kuala Lumpur não podes sair do quarto do hotel por razão nenhuma, a não ser que um guarda te vá buscar? É muito importante.
Depois, interferindo nas minhas decisões relativamente à roupa a levar, disse:
Oh, gosto desse vestido. O que é?
Dior.
Leva esse sem falta.
Fechei as malas e não me dei ao trabalho de tirá-las da cama. Sabia que alguém as viria buscar e que apareceriam como que por magia no destino.
O Robin andava à procura da quarta mulher e não era completamente descabido pensar que a escolheria de entre as raparigas que frequentavam as festas. Para primeira ou segunda mulher, tal coisa seria impensável. Mas, assegurada a linhagem real, a rapaziada da realeza tem mais espaço de manobra. Por vezes, eu pensava como seria casar-me com o Robin. Seria mau ter um marido que não passava muito tempo em casa, especialmente tendo um exército de criados para tratar de todas as minhas necessidades e um jato para me transportar a Singapura sempre que me apetecesse. Mas a liberdade de comprar tudo o que quisesse não era o mesmo que liberdade. Sabia que, se me casasse com o príncipe, nunca mais entraria noutra peça, nunca viajaria pela Europa de mochila às costas, nunca mais iria ao cinema com um amigo, nunca iria sequer a um centro comercial sem um guarda-costas.
Por vezes, sucumbia a fantasias de me tornar princesa. Era muito estranho que tais sonhos tivessem entrado na minha órbita de possibilidades. Que rapariga americana, influenciada pelo mundo da Disney, não tivera, quando deitada na cama, a certeza, bem no fundo de si mesma, que era digna de ser despertada de um feitiço funesto pelo beijo de um príncipe? Que abriria os olhos e, sem o mínimo esforço da sua parte, descobriria que tinha sido salva? Quem não pensaria em tentar conquistar esse anel de ouro, essa coroa de diamantes?
Mas eu não fora sujeita a uma lavagem ao cérebro ao ponto de perder o juízo. Sabia que, no fundo, não me queria casar com o Robin, nem sequer no auge do meu sucesso no Brunei. Se me casasse, nunca mais teria um encontro de amor num telhado à chuva.
Depois da ida às compras em Singapura, mesmo as poucas raparigas que até aí eram neutras em relação a mim se tornaram hostis. Assim, quando parti para Kuala Lumpur, saí porta fora, alegremente vestida com o meu mais conservador tailleur Chanel em tweed rosa e cinzento. Elas tinham-me levado ao limite, tinham sido tão mesquinhas que eu já não sentia a necessidade de me fazer pequenina para gostarem de mim. Que diferença fazia se essas parvalhonas não fossem minhas amigas? Era o que a Fiona teria dito e era o que eu, ao fim de semanas a aturar a crueldade delas, verdadeiramente sentia. Era libertador. Era semelhante à minha descoberta na adolescência dos Ramones e à minha posterior iniciação no mundo da música punk. Era capaz de criar toda uma realidade diferente. Podia ativamente decidir ser diferente dos putos que faziam a minha vida num inferno. Podia de uma vez por todas afirmar que não era eu que estava errada mas eles.
No liceu, passava o meu tempo com a malta do teatro e na sala de cerâmica. Fazia a minha própria roupa, pintei o cabelo em quase todas as cores primárias em sucessão e descobri uma paixão pelo punk rock. Graças às cores sombrias das nossas opções de guarda-roupa, eu e as minhas amigas éramos apelidadas pelos estudantes snobs e privilegiados de Filhas das Trevas, uma alcunha de que nos apropriámos de bom grado e que escrevemos na parede por cima da nossa mesa favorita na cafetaria.
As Filhas das Trevas eram um grupo excêntrico de miúdas com cortes de cabelo esquisitos que faziam coisas como escrever óperas rock ou desenhar as suas próprias histórias aos quadradinhos, autobiográficas. Abriram as capas punk e os sobretudos rotos e acolheram-me no seio do seu mundo. Eu podia fazer o que quisesse, por mais estúpido que fosse, para o espetáculo de talentos da escola que teria sempre uma claque. Éramos uma tribo. Mas a minha recente aceitação implicava pintar os olhos com eyeliner preto e usar alfinetes de ama decorativos. E as coisas estúpidas que fiz para o espetáculo de talentos passaram por fazer sapateado e tocar versões instrumentais dos Siouxsie and the Banshees.
Aos olhos do meu pai, tudo isto representara um desvio monumental de um comportamento aceitável, um embaraço para a família, um insulto pessoal para ele. Estava permanentemente à beira de uma explosão. Por isso, quando eu estava em casa, imaginava que era uma versão punk de Glinda de O Feiticeiro de Oz, a flutuar numa bolha cor-de-rosa por cima de tudo. Era intocável, exatamente como quando levantei a mão e dirigi às víboras no Brunei um acenozinho de despedida.
Ciao.
Que faria a Patti Smith? Diria: que se fodam. Podia não estar com um tailleur Chanel ao dizê-lo, mas uma pessoa tem de dar um toque pessoal às coisas.
Partimos numa caravana real de um aeroporto privado. Vi caras conhecidas a cirandar por ali – o Dan e o Winston e o Dr. Gordon das festas – mas não vi outras mulheres. Interroguei-me se veríamos alguma das mulheres do Robin em pessoa, mas não estavam lá mulheres e também não havia sinais do Robin; apenas um punhado de homens de fato que nos ignoraram. O Dan acenou com a cabeça e o Winston sorriu.
O Winston fora sempre o meu preferido. Ele e a namorada, a Tootie, faziam um par amoroso e passavam as noites a conversar de mãos dadas. Por vezes, olhava para eles e sentia uma ponta de inveja, embora fosse de pouca dura. Uma coisa era certa, ela não ganhava um milésimo do que eu ganhava, mas o namorado parecia gostar dela a valer. Ainda assim, se me fosse dado escolher, teria escolhido o dinheiro.
Mais uma vez, eu e a Fiona viajámos num avião próprio, que é definitivamente como se deve viajar. No aeroporto em Kuala Lumpur, fomos conduzidas, sob um intenso aparato de segurança, para os carros que nos aguardavam. Controle de imigração não era coisa que existisse quando se viajava sob proteção diplomática. Ninguém questionou a nossa presença. Eu já tinha aprendido a deixar-me conduzir sem levantar ondas. Disse a mim mesma que era uma folha num riacho. Vivia o momento. Era praticamente uma monja zen.
Com a nossa própria guarda pessoal, eu e a Fiona fomos levadas ao hotel na cidade e deixadas em quartos contíguos. O nosso guarda instruiu-nos a não sairmos sem sermos chamadas. Plantou-se entre as duas portas. Eu disse adeus à Fiona ao entrarmos para as nossas luxuosas celas de prisão adjacentes. Cinco minutos depois, ela telefonou para dois dedos de conversa.
Porque é que nem sequer podemos estar uma com a outra?
Não te preocupes. Ele não fica ali fora o dia todo. A gente vê-se ao jantar.
Duas horas mais tarde, ela apareceu de pijama, logo seguida de uma garrafa de vinho e do serviço de quartos. Incitou-me a mandar vir o que me apetecesse. Pede uma garrafa de vinho; pede três. –
Fazes ideia de quantas pessoas estão aqui? – perguntou ela. – O Martin e o Robin têm um andar inteiro para a comitiva deles e uma luxuosa penthouse cada um. Achas sinceramente que alguém vai olhar para a conta?
Passámos a maior parte dos nossos dias no quarto uma da outra, mandando vir caviar, vendo filmes e bebendo vinhos caros. O champanhe e o caviar são clichés horríveis mas maravilhosos quando consumidos de fato de treino vestido e a ver o Today Show por satélite. Pedíamos massagens e ouvíamos música e arranjávamos o cabelo uma à outra e, uma vez, até escapámos para fazer uma pedicura no salão do hotel. Eu estava tão nervosa enquanto lá estávamos que fiquei com urticária.
Não sei o que a Fiona fazia à noite; não falávamos sobre isso. O Robin ignoroume completamente durante seis dias inteiros. Enquanto a Fiona desaparecia à noite, eu lia Artaud e Hesse e dava em doida. Lendo as palavras de Artaud: Não sou completamente eu mesmo, pensei: como eu. Eu não sou completamente eu mesma. Nem sequer sei quem esse «eu» é. Disse a mim mesma que tinha de sair rapidamente dali, fazer alguma coisa de real, ser livre.
Liguei ao Johnny, que estava em casa para uma estadia breve entre a expulsão de um colégio interno e o envio para outro. Os meus pais estavam preocupados porque o dossier sobre a desordem obsessiva-compulsiva do Johnny tinha aparentemente engrossado desde a última vez que eu o vira. A minha mãe dissera-me, na nossa última conversa telefónica, que era um inferno fazê-lo sair de casa porque ele tinha de executar uma série de rituais antes de transpor a porta. Vivia fechado num mundo privado de tiques, explosões, exclamações, a tocar nos caixilhos das portas, a cuspir em poças, a bater com colheres contra as tigelas.
Mano.
Mana.
Como estás?
Sereno. Sereno. Estou a residir na propriedade por um tempo. O Ralph Reuben soube pela mãe que és uma escrava na China.
Por sinal, estou na Malásia. E onde é que a mãe do Ralph Reuben ouviu isso?
Encontrou a mamã no ShopRite.
Fantástico. Pelos vistos, a minha mãe andava a revelar o meu paradeiro a toda a gente que encontrava no supermercado.
Importas-te de lhe pedir que seja um pouco mais discreta?
Está descansada. Eu digo-lhe. Deve resolver o assunto.
Que vais fazer agora? – perguntei-lhe.
A mamã e o papá querem muito despachar-me para mais uma excelente instituição de ensino.
Porque é que saíste desta vez?
Sentia-me como costumava sentir-me quando ia à igreja com o Anthony Dante. Gostava sempre até àquela altura durante o ofício em que aquelas coisinhas caíam das costas dos bancos e toda a gente se ajoelhava e eu era o único que ficava sentado. Era assim nesta escola. Eu era o único judeu na igreja.
Compreendo o sentimento.
Mesmo numa conversa casual, o Johnny era um poeta. Preocupava-me com ele. Parecia frágil, translúcido. A poesia não levava ninguém muito longe e o mundo não tratava com benevolência as pessoas que sofriam de evidentes distúrbios mentais. Mas eu estava a quase 50 000 quilómetros de distância e não podia fazer muito para convencê-lo a esforçarse para que as coisas resultassem na próxima escola. Nem a mim era capaz de convencer a assentar. Como podia fazer-lhe uma sugestão que soava aos meus ouvidos como uma pena de prisão?
Gosto muito de ti, mano. Tenho saudades tuas – disse eu. O eco da minha voz chegou até mim pelas linhas telefónicas internacionais. As palavras pareciam insuficientes. E seguiu-se então a pausa por que eu tinha aprendido a esperar.
Também gosto muito de ti, mana.
Esquecida durante dias, queria desesperadamente voltar para Nova Iorque e retomar os ensaios. Ignorada pelo Robin, a atração que ele exercia sobre mim foi diminuindo. A minha vida estava a sumirse, as horas dissolvendo-se enquanto eu apodrecia na gaiola de um quarto de hotel. Quando tentei falar sobre Artaud com a Fiona, ela disse-me categoricamente que Artaud era um maníaco e eu uma fedelha. – Não consegues estar cinco minutos quieta? Até parece que te mandaram cavar valas. Força, escreve a poesia toda que quiseres aqui. Aprende doze monólogos novos. Trabalha até morreres de cansaço. O problema não é o sítio onde estás.
Mas a Fiona era mais velha do que eu. Eu não fazia ideia do que era um dólar, não via nenhum mal em comer manteiga de amendoim diretamente do frasco ao almoço e Pop-Tarts da caixa ao jantar. Ser pobre nunca me tinha afetado e, como tal,
Mas a Fiona era mais velha do que eu. Eu não fazia ideia do que era um dólar, não via nenhum mal em comer manteiga de amendoim diretamente do frasco ao almoço e Pop-Tarts da caixa ao jantar. Ser pobre nunca me tinha afetado e, como tal, enriquecer sem fazer nada não parecia nada do outro mundo. Isto era quando ainda acreditava sinceramente do fundo do coração que tinha uma carreira de sucesso diante de mim no palco.
Andava inquieta, mas ainda me sentia dividida. Ainda não tinha desistido completamente do Brunei, não estava preparada para admitir a derrota. Assim, quando recebi a chamada a dizer-me que o Robin me tinha convidado a subir ao andar de cima, recuperei o ânimo. Desejei deslumbrá-lo. Esperava atear algo que galvanizasse de novo a sua atenção e que, por sua vez, me inspirasse a ficar. Vesti-me para receber o Óscar com um vestido de lantejoulas Armani, decotado nas costas. O Robin era uma apreciador de rabos; procurei escolher a roupa com isso em mente.
O nosso guarda acompanhou-me até um opulento jantar na suíte de luxo onde eu, a mulher solitária, me sentei ao lado do Robin. Reconheci muitos dos homens à mesa do jantar, mas havia caras novas, homens com sotaques diferentes do sotaque do Robin e dos seus acompanhantes habituais. Talvez alguns fossem iranianos; outros eram britânicos. Pareciam mais jocosos que o costume, como se estivessem a celebrar algum sucesso.
Foi uma dessas noites que passou a voar num tapete mágico de champanhe, momentos certos e um bom sentido de oportunidade, em que tudo encaixa e uma pessoa se sente bela e inteligente. Percebi que lhe agradei. Não se mostrou sombrio como habitualmente, nem crítico, como os seus sorrisos artificiais davam muitas vezes a entender. A expressão do Robin manteve-se livre das nuvens de descontentamento que auguravam castigo, proscrição da sua cama durante dias, a exibição de uma rival à minha frente.
Mas, como acontecia com todas as noites com ele, a festa prolongou-se até depois de todos os outros estarem exaustos. Ele era dessas pessoas que não precisavam de dormir, que teciam juízos sobre quem dormia durante o breve tempo que passava na Terra. Era o género de insone que, se fosse uma pessoa normal, passaria muitas horas de solidão até horas tardias da noite. Mas, sendo um aristocrata podre de rico, podia pagar, se quisesse, festas cheias de gente para ficar toda a noite acordada com ele.
Às quatro da manhã, o Robin dispensou os convidados e levou-me para o seu quarto. Este estava rodeado de janelas do chão ao teto, como se toda a cintilante cidade estivesse dentro do nosso aquário privado. Fodemos com as cortinas abertas e a luz apagada.
Quando acabámos, estava à espera de ser mandada embora com a habitual palmada no rabo e beijo na face. Mas aconteceu o inconcebível. Ele carregou num botão num telecomando que fechava as cortinas, pôs o braço à minha volta e desejou-me boa-noite.
Fiquei completamente atarantada. A intimidade era um passo monumental. Na presença do Robin, estava sempre eletrizada com a tensão, assumia poses e queria agradar, nunca considerando as minhas próprias necessidades. Era uma atitude de tal modo paralisante que nem consegui sacudir dos pés demasiado quentes os cobertores com medo de o perturbar. Permaneci acordada, a transpirar dos pés, o coração a bater acelerado, com um aperto no estômago. Tinha esperança de que ele adormecesse primeiro e começasse a ressonar ou coisa assim para poder relaxar. Fiz de conta que estava a dormir.
Não estás a dormir.
Não se deixava enganar. Senti-me um fracasso. Por fim, ele deu-me um comprimido para dormir e também tomou um.
Quando acordámos, tomámos juntos o pequeno-almoço trazido pelo serviço de quartos e vimos a CNN enquanto ele se vestia para ir trabalhar. Até ao fim da viagem, foi assim que passámos as noites e as manhãs. Tornou-se rotina. Não pensei senão passageiramente no facto de ser agora a Fiona quem estava à espera sozinha.
A primeira Guerra do Golfo tinha terminado recentemente mas o seu rescaldo ainda era noticiado. Ainda meses antes, participara numa manifestação contra a guerra no Tompkins Square Park mas, por essa altura, no Brunei, já tudo isso parecia distante: não só a guerra, mas o Tompkins Square Park. A maioria das pessoas que me questiona sobre o Brunei presume que fica no Médio Oriente, talvez por causa do petróleo e da cor de pele castanha. Mas o Sudeste Asiático fica longe do Iraque e eu não detetei qualquer ligação. Claro que existia uma ligação. Todos os sultões, reis, presidentes e primeiros-ministros de países ricos em petróleo navegam na mesma maré negra.
O Robin estava preso nesta rede de petróleo de formas que eu não entendia e de que nunca poderia falar com ele. Não era exatamente para isso que ali estava. Mas a questão intrigava-me ao ver a sua atenção permanente às notícias que constituíam um pano de fundo constante de tudo o que ele fazia. Deitada na enorme cama de hotel, com a cidade de Kuala Lumpur a fervilhar quarenta andares abaixo, assistia à omnipresente CNN enquanto o Robin se preparava para ir para o trabalho, o que quer que este fosse.
Manhã atrás de manhã, via, entre outras coisas, a cara mirrada de Nelson Mandela a interpelar o mundo sobre o colapso do apartheid.
À medida que o Robin se transformava para mim cada vez mais num amante e menos num patrão, atrevia-me de tempos a tempos a perguntar-lhe a opinião sobre os acontecimentos que víamos diariamente nos noticiários. Mas ele era normalmente evasivo e, como tal, eu não fazia demasiadas perguntas. Sabia que não havia liberdade de imprensa no Brunei, que o sultão era um autocrata (ainda que um homem afável) e que era um crime grave denegri-lo. Não eram aspetos positivos, mas eu preferia ignorá-los. Não estava ali a representar a Amnistia Internacional. Não era o meu país. Não era o meu problema.
Todas minhas convicções políticas, os anos de militância, eram subitamente irrelevantes. Não era uma questão de eu ter passado de repente a defender a teocracia, a poligamia e o consumismo descontrolado, mas no fundo aquilo em que acreditava não tinha importância nenhuma.
No liceu, tinha ido de autocarro a Washington para participar em manifestações a favor do aborto e em comícios pelos direitos dos homossexuais. Escrevi artigos sobre os zapatistas e planeei uma viagem de pós-graduação a Chiapas. Mas nunca cheguei a ir a Chiapas. Preferi aliar o meu ativismo às minhas ambições artísticas e entrar para a ilustre história do teatro contestatário até descobrir que não dava muito dinheiro e as necessidades de subsistência começarem a corroer os meus ideais. Nem a arte nem o ativismo tinham lugar no meu mundo no Brunei, que estava, com a passagem dos meses, a tornar-se no meu mundo real.
Mais do que pelo fim do apartheid, o Robin interessava-se pelo divórcio real britânico. E mais ainda pela barra de mensagens móvel sobre as finanças internacionais que víamos em inglês, mas que podia igualmente ser em malaio para o que eu entendia de índices das bolsas de valores. O meu pai não me tinha ensinado patavina, provavelmente porque eu nunca tinha perguntado. Mas disse ao Robin que o meu pai trabalhava na área financeira, o que o impressionou por um momento, embora tenha rapidamente perdido o interesse. Assim, comecei a inventar habilidades para o manter divertido.
Uma manhã, meti-me com o Robin por ele não querer tomar banho comigo.
Só tomo banho com um patinho – declarou.
Nessa tarde, mandei um guarda ir comprar um patinho de borracha e dei-o ao Robin de presente para ele não se sentir só na banheira. Nesse dia, ele mostrou-se especialmente encantado comigo, mais do que o habitual. Não tinha planeado fazer aquilo, mas a semente que a Taylor plantara em mim tinha criado raízes.
O Robin gostava de meter o nome da Serena nas conversas, sobretudo quando as coisas corriam bem entre nós e eu começava a mostrar complacência. Não sei como surgiu. Estávamos a falar de teatro? De música?
Acho que a Serena canta num grupo em Los Angeles. Não canta? – perguntou ele.
Canta, lembro-me de ela dizer que canta na banda do namorado – respondi. Não custou nada. Ele tinha-me fornecido o pretexto.
Ela disse isso? – perguntou ele bruscamente.
Que é cantora de jazz? – Fiz de conta que a referência ao namorado me tinha saído sem querer. – Foi o que ela me disse.
Dei-lhe um beijo de despedida nessa manhã e depois pus-me à janela, onde fiquei durante muito tempo a contemplar a cidade. Fazia o mesmo todas as manhãs. Tinha sempre duas horas para matar até um guarda me vir buscar para me levar para o meu quarto, onde passava pelas brasas, mandava vir comida do serviço de quartos e lia durante algum tempo, vestindo-me finalmente para repetir a rotina. Mas a minha hora do dia preferida era quando o Robin saía para o trabalho, os primeiros momentos de tranquila solidão. Quando me cansava de estar só, ligava por vezes para o quarto da Fiona, mas ela agora nunca lá estava durante o dia. Tentava não pensar onde ela estaria.
Todas as manhãs me despedia com um beijo do Robin e todas as noites me sentava ao lado dele ao jantar. Era como ter um namorado, com a diferença de que ele era irmão de um ditador, era casado três vezes e tinha mais quarenta namoradas, uma das quais eu estava ativamente a tentar afastar do caminho.
É difícil explicar por que razão eu estava a lutar tão encarniçadamente pelo Robin. Por vezes, achava-o manipulador e fascinante, um vilão sensual. Por vezes, ele fazia-me sentir incrivelmente adorável. Por vezes, achava-o um parvalhão e sentia um impulso incontrolável para lhe bater na cabeça com o telecomando. Mas eis a verdade nua e crua: partilhava a cama do Robin e sentia-me parte de algo de poderoso e importante. Nunca até então conhecera o poder. Não tinha a certeza de estar exatamente apaixonada pelo Robin enquanto pessoa, mas estava apaixonada por essa sensação, perdidamente apaixonada. É possível que tenha confundido as duas paixões.
O poder tinha o gosto de uma ostra, como se eu tivesse engolido o mar, todas as suas memórias, serenidade, podridão e brutalidade. Tinha o sabor de uma ostra que comi uma vez em criança, uma ostra ainda trémula de vida. A comida favorita do meu pai era o marisco. Em tempos, numa viagem a Boston, quando eu tinha cerca de sete anos, ele levou-me a Faneuil Hall e pôs uma dúzia de ostras cruas entre nós e uma dúzia de amêijoas cruas ao lado. Espetou a primeira ostra, mergulhou-a no molho cocktail e depois engoliu tudo e desafiou-me a fazer o mesmo. Até atraímos um pequeno ajuntamento de pessoas que queriam ver a menina a comer ostras.
Levantei a criatura à minha frente por um segundo, com vontade de escapar à experiência. Parecia a parte de baixo de uma língua, húmida e feita para estar escondida. Meti-a à boca e tentei mastigála, mas ela escorregou-me para o fundo da garganta, engasgando-me. As pessoas riram-se. Aplaudiram. Anda lá, menina, és capaz! Engasguei-me outra vez antes de aprender a abrir a garganta e a engolir.
Deu-me vontade de vomitar, mas devorei aquela ostra e devorei mais quatro. Sei que o meu pai se sentiu orgulhoso. E, com cada ostra, compreendi um pouco mais. São repugnantes, são deliciosas e engole-se até à última só para se provar que se é capaz. Tinha desejado o deslumbramento e tinha-o conseguido. Era uma amante real, exibindo-me de lingerie La Perla e contemplando Kuala Lumpur de uma luxuosa penthouse. E se tinha a sensação de que a ostra me estava a envenenar o sangue, se o mais leve pensamento de que estava em jogo algo de irreversível me tinha assaltado o espírito, ignorei.
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Atualizado até capítulo 30
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