capítulo 3

No Dia de Ação de Graças de 1991, tirei da carteira o cartão que a Taylor me dera e marquei o número. Quando uma rapariga dá por si a fazer coisas que nunca imaginou, muitas vezes acontece por fases. Pisa o primeiro risco e avança para o risco seguinte. Um dia, talvez se ache só. Ou sem dinheiro, ou deprimida ou simplesmente curiosa. Ou sentada no sofá em casa dos pais, a sufocar lentamente, uma almofada invisível de recordações pressionada contra a cara. E já se é esse tipo de rapariga; já se percorreu o longo caminho até aqui – que mal faz mais um telefonema?

Eu e o meu namorado, o Sean, estávamos a passar o fim de semana com a minha família. Tinha-me debatido com a decisão de levá-lo ou não, mas o meu desejo de o ter ao meu lado superou a hesitação de levar alguém para casa dos meus pais. Achava que podia estar apaixonada pelo Sean, se bem que o sentido que eu dava a este facto resultasse da minha convicção de que o amor romântico era uma conspiração usada pelo poder capitalista como uma ferramenta de marketing e pela comunicação social como um soporífero tipo boa-noite Cinderela.

Antes de conhecer o Sean, tinha-me envolvido em sucessivos encontros amorosos, paixonetas, namorados (e uma ou duas namoradas), nunca me deixando perturbar pela rápida extinção da chama, nunca esperando que a relação durasse. Quando o conheci, ainda tinha dezassete anos. Já era stripper há seis meses e nunca tivera um namorado sério, nem sequer no liceu. Foi então que o Sean apareceu na Garagem do Espetáculo para visitar uns amigos.

O Sean era magro, com olhar lânguido e cabelo escuro espesso pelos ombros e dedos fabulosos de músico. Era um artista pobre com um palmarés distinto, um ator e guitarrista talentoso que partilhava um apartamento bera de dois quartos na Rivington Street, do lado oposto à Streit’s Matzo Factory. Eu partilhava um apartamento idêntico de um quarto ao dobrar da esquina.

Passámos o nosso primeiro encontro a comer crepes chineses e a beber cerveja no meu telhado, com as nuvens sobre nós pairando pesadas e baixas. Um súbito trovão fez-nos levantar de um salto, sobressaltados, e desencadeou uma série de alarmes de automóveis no parque de estacionamento em baixo. Gordas gotas de chuva começaram a bater no telhado de alcatrão e nós deixámo-nos estar ali até ficarmos encharcados; ele inclinou-se para me prender a cabeça nas mãos e me beijar – beijos demorados com sabor a cerveja – enquanto os restos da nossa comida ficavam ensopados. Foi piroso. Foi fantástico. Era o melhor encontro que alguma vez tivera e ele era de longe o melhor gajo que já conhecera.

O Sean não se importava que eu fizesse striptease. Até chegou a ir ver-me várias vezes. Gostava dos sapatos e achava aquilo tudo um tanto emocionante. Ouvia regularmente com interesse relatos das minhas aventuras felinianas, apesar de alimentar secretamente uma ou outra dúvida.

Comíamos as nossas refeições no El Sombrero ou na pizaria Two Boots e bebíamos até altas horas no Max Fish com amigos de várias bandas e projetos teatrais. Comprávamos cocaína de má qualidade na Avenue B e inalávamo-la na capa no LP dele Houses of the Holy, enquanto bebíamos gin tónico por chávenas de café e falávamos toda a noite de arte, de níveis de desconexão, da comunicação social, do nosso desejo de uma «verdadeira» experiência. Ao fim de algum tempo, concluí que estava apaixonada, mas fiz figas quando o disse, não fosse estar enganada.

Eu e o Sean chegámos a casa dos meus pais no mesmo autocarro em que eu tinha andado um milhar de vezes, durante o liceu, quando viajava para aulas de Interpretação ou de Dança ou espetáculos rock na cidade, sobre os quais mentira dizendo que ia dormir em casa de uma amiga. As árvores já tinham largado quase todas as folhas mas o relvado ainda estava brilhante, de um verde de veneno. A casa cinzenta de dois andares dos anos setenta era uma declaração sem conteúdo, um orgulhoso monumento ao status quo. Todas as casas na rua eram uma variação sobre o mesmo tema, uma configuração diferente da mesma construção de Legos.

Os meus pais arrebataram-nos à porta com ávidos abraços. O meu pai estava mais magro do que nunca, impossibilitado de comer graças à sua hérnia do hiato. Quando a sua face aflorou a minha, estava húmida de suor frio. Estava visivelmente doente, o que me deixou abalada. Que faria eu se acontecesse alguma coisa ao meu pai? Ele sempre fora como um rochedo, uma dessas pessoas que acham que os médicos são para as pessoas fracas e os dentistas uma perda de tempo.

Deu-me um apalpão no rabo quando eu ia a subir as escadas e eu tropecei, amparando a queda com as mãos.

Ei, gorducha. Pelos vistos, decidiste começar a comer outra vez.

Ao meu namorado disse: – Não é uma rapariga delicada? Costumava pôr-se por aí a dançar e a gente chamava-lhe Katrinka.

Poderosa Katrinka é uma personagem de uma série de filmes mudos. Era interpretada pela Wilna Hervey, uma atriz de comédia que media quase um metro e noventa e pesava cento e trinta quilos. Era a alcunha que o meu pai me dava quando achava que eu estava a ser uma cretina. O meu pai era uma pedra. Uma pedra amarrada ao meu tornozelo quando eu caía borda fora. Deixei imediatamente de me preocupar com a sua saúde para passar a esperar que ele morresse à fome, ali mesmo, durante o jantar de Ação de Graças, com um lauto banquete à sua frente.

Escapei aos preparativos de Ação de Graças que se seguiram e fui descansar para a sala do andar de baixo. Sentei-me no sofá modular, por baixo de uma fotografia de família recente que permitira relutantemente que tirassem. Mostra a minha família rigidamente em pé numa secção de relva no quintal das traseiras. O deck branco da piscina paira atrás de nós como um disco voador e a luz áspera do sol achata-nos, transformando-nos em blocos bidimensionais de cor. Pernas incongruentemente finas sustentam o tronco porcino do meu pai. Ele está a semicerrar os olhos na direção do sol, os pés de galinha em redor dos seus olhos formando uma expressão de descontentamento.

A pele da minha mãe está brilhante e esticada, com um ar ainda jovem, mas a sua postura sugere que alguém acaba de lhe dar uma pontada no esterno. O meu irmão, Johnny, exibe uma cabeleira de górgona de rastas mal cuidadas e eu estou periclitante ao seu lado com uma inócua T-shirt branca e um sorriso artificial, o mesmo sorriso que surgia sempre que estava em casa dos meus pais, um reflexo involuntário tão certo como um tique numa perna depois de uma pancada com um martelo de borracha na rótula.

Sean estava com o Johnny no quarto dele a ouvir os Pink Floyd. Puseram as cabeças de fora da janela e o Johnny passou ao Sean o charro que estava normalmente colado ao seu lábio inferior.

Os meus pais adotaram o Johnny quando eu tinha quatro anos. Esperei pela chegada dele em bicos de pés, abanando os meus totós por cima da balaustrada de ferro branca que corria a toda a largura do cimo das escadas. A minha mãe subiu as escadas com um bebé ao colo, que parecia um chouriço, embrulhado numa manta, com uma cara encorrilhada e cabelo preto em ondas que lembravam a cobertura glaceada de um queque. Tomei-me imediatamente de amores por aquela criaturinha quente. Ele era para mim como um boneco com vida, com o seu cheiro de bebé, os bracinhos rechonchudos e macios e os grandes olhos azuis. Adorava embalá-lo no sofá durante o que pareciam horas, fazer-lhe cócegas nas orelhas e beijar o seu nariz em miniatura.

Johnny não era um bebé fácil. Não era esperto, engraçado nem desejoso de agradar como eu. Quer isto fosse ou não inicialmente verdade, é difícil uma pessoa afastar-se de um tal guião a partir do momento em que ele é escrito para ela. O Johnny, diz o meu pai, teve problemas desde o princípio, a implicação sendo que a culpa por aquilo em que se transformou não é dele: os episódios obsessivos-compulsivos, as trips de ácido destrutivas, o extremismo religioso.

Durante os primeiros anos de vida, o Johnny andava constantemente agarrado às pernas da minha mãe enquanto eu dormia com as T-shirts da equipa de softball da empresa do meu pai. Tínhamos tomado partido. Eu adorava o Johnny mas adorava ainda mais ser a predileta do meu pai.

Hoje em dia, o Johnny é hassídico e vive em Jerusalém. Passa o tempo a recitar as liturgias na sinagoga e ocasionalmente trabalha como apanhador de azeitonas migrante ou vendedor de tónicos à base de plantas biológicas. Sonha com um pequeno terreno, um rebanho de cabras e algumas oliveiras suas. No seu mundo, os homens e as mulheres comem em salas separadas. É um mundo com uma lógica própria, mas onde eu não tenho exatamente lugar. Ainda falamos ao telefone de tempos a tempos. Quando me lembro, mando presentes de aniversário ao filho dele.

Agrada-me culpar o Johnny da distância entre nós. É ele que usa o chapéu preto de abas largas e defende o sistema de fé arcaico, não sou eu. Mas a verdade é que, quando as coisas deram para o torto, fugi de casa e deixei-o. Prometi que voltava para o buscar e nunca voltei. Nesse Dia de Ação de Graças, fui para o andar de baixo, onde me sentei sozinha no sofá, e não lhe dei ouvidos quando ele tentou dizer-me que o meu pai lhe tinha batido na cabeça com o telefone na noite da véspera.

Minha mãe andava numa azáfama entre a sala de jantar e a cozinha, absorvida nas misteriosas artes de pôr a mesa e preparar a comida com um timing perfeito. Na sala de estar, o meu pai estava a tocar o seu precioso piano de meia cauda Steinway. Ia avançando incansavelmente através de um medley de temas populares que, a certa altura, começava a tocar ao triplo da velocidade normal. Tocava sempre como se houvesse uma canção mais importante, algures num horizonte em permanente refluxo que nunca conseguia alcançar. Foi ao som dessa música fora de tempo que comecei a cantar em altos berros as canções de South Pacific e a rodopiar pela sala de estar.

Minha dança inspirara o meu pai a chamar-me Katrinka, mas eu nunca tinha ouvido falar da Poderosa Katrinka. Continuei a dançar. Era a Graciosa Katrinka, a Talentosa Katrinka, nascida de uma mulher tão etérea que tinha simplesmente desaparecido a flutuar.

Depois de fugir para Nova Iorque, atravessar de novo a fronteira para New Jersey foi como pôr um saco de plástico na cabeça. Quanto mais tempo lá estava, menos oxigénio tinha. Estava a ficar sem ar, sufocada pela própria casa, pela música e pelos retratos de família, pela própria família e pelo namorado no andar de cima que já vira tudo. Talvez tenha sido por isso que decidi tirar do porta-moedas o cartão que a Taylor me dera. Estava a tentar abrir um buraco no saco, a tentar respirar. O Crown Club parecia ser um instrumento bastante afiado e na altura não me ocorria nada melhor. Lá em cima, a música estava suficientemente alta para ninguém me ouvir. Não me parecia que alguém fosse atender o telefone no Crown Club, na tarde do Dia de Ação de Graças, mas, claro, alguém atendeu.

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