A pesar de fechada num quarto luxuoso, na ilha de Bornéu, a Gestapo estava, nos meus sonhos, a bater-me à porta. Desde que, com oito anos, li o Diário de Anne Frank, os nazis haviam figurado com proeminência nos meus pesadelos. Em sonhos, era a Anne, com o ouvido encostado ao chão, escutando a marcha das botas nas escadas, que nos vinham buscar. Em sonhos, era a Anne e já estava morta, mas vagueava por entre montes de sapatos e tralha. Estava à procura das malas. Sabia que a minha se encontrava ali. Tentava encontrá-la para poder partir.
Em criança, os terrores noturnos contagiaramnhas horas de vigília. Vivia obcecada com pensamentos sobre o Holocausto. O diário de Anne Frank conduziu-me a outros livros que não transmitiam visões positivas do coração humano. Recordo um livro em particular, da biblioteca municipal, com uma Estrela de David em chamas na capa e um mapa dos campos impresso nas guardas. Havia fotografias no interior. Sabem ao que me refiro: o preto e branco, granuladas, as sombras entre as costelas de um negro profundo, a pele nua dos cadáveres amontoados de um branco imaculado.
Estava convencida de que seria apenas uma questão de tempo até o Holocausto voltar a acontecer e interrogava-me sobre a reação da minha família quando os nazis nos viessem buscar. Como é possível sabermos quem realmente somos por dentro? Todos gostamos de acreditar que seríamos corajosos. Seríamos os heróis da fita, os que se sacrificam para salvar os outros, os que procedem bem quando o mundo à sua volta procede mal. No filme, a escolha certa é clara. E saímos do cinema sentindo-nos bem na nossa pele porque podemos dizer: eu tomaria a opção correta.
Ninguém diz: eu seria cobarde. Eu denunciaria o meu vizinho para me salvar. Mas é o que as pessoas fazem no geral. Já com oito anos, eu sabia que era assim.
Então quem seria eu quando eles chegassem? Seria corajosa? E os meus pais? Tentariam esconder-nos, tentariam escapar? Matar-nos-iam para não sermos levados, como os israelitas em Masada? Fariam frente ao inimigo e lançariam tijolos como os judeus no gueto de Varsóvia? Ou entregariam obedientemente os seus documentos, cantando mais tarde nas filas para os chuveiros? Secretamente suspeitava que os meus pais não eram do tipo combativo. Sabia que recairia sobre mim proteger-nos e, como tal, esforçava-me por estar preparada. Traçava planos para fugir e regressar mais tarde para dar luta. Sabia que os planos de resistência eram provavelmente fúteis, mas, apesar disso, tinha decidido lutar.
Como conseguiria ser a corajosa, a heroína? Tinha de praticar os meus passos, repassar vezes sem conta o cenário na cabeça. Sacrificava o sono em prol deste ensaio mental. Preocupava-me que, apanhada desprevenida, agisse de modo pouco louvável. Pressentia que, no meu âmago, não era a Anne. Não possuía essa espécie de alma: a espécie de alma imbuída de um amor tão extraordinário, tão brilhante, que era muito mais impregnáveis do que o seu corpo.
Numa tentativa para me ajudar a dormir, a minha mãe tentou convencer-me de que vivíamos numa era diferente, de que os nazis não iam aparecer um dia na escola para me levar. Mas eu não me deixei convencer. Considerava-a ingénua. Ela não compreendia que eram pessoas que tinham feito isto? As mesmas pessoas que nos rodeavam? As coisas não eram assim tão diferentes.
Não vai voltar a acontecer – explicou pacientemente a minha mãe pela centésima vez. – É por isso que nos lembramos, para não deixarmos que volte a acontecer.
Mãe da Anne Frank disse-lhe que não ia acontecer e aconteceu.
A minha obsessão com o Holocausto acabou por passar, mas os sonhos nunca acabaram por completo. Assim, o sonho no Brunei com a Gestapo a bater-me à porta não constituiu surpresa. Mas, quando abri os olhos, as pancadas não se calaram. Tornaram-se cada vez mais insistentes. Eu e a Destiny sentámo-nos na cama e olhámos uma para a outra, mas nenhuma de nós foi abrir.
Quando tínhamos chegado, a Ari ficara com os nossos passaportes que tinha entregado a um guarda. Disse que era para atualizar os nossos vistos ou coisa do género. O incidente não me tinha largado, como um cabelo que não se consegue tirar da boca. É isto que as raparigas inteligentes fazem? Aceitam um emprego dúbio no Sudeste Asiático e entregam os passaportes à chegada?
A situação do passaporte perpassou-me pelo espírito quando, com o sangue a pulsar-me no crânio e no peito, abri uma nesga de porta. Deparei-me com um guarda fardado. Trazia um casaco de lã cinzento com uma gola à Nehru e um desses chapéus usados pelos tiradores de soda. Abri completamente a porta e ele olhou para a minha camisa de dormir, alarmado.
Não está pronta?
Pronta para quê?
Tem de se preparar. Cinco minutos. Se ele não tencionava dizer-me o que se estava a passar, só havia uma pergunta séria a fazer. A resposta a esta pergunta revela praticamente tudo o que uma rapariga precisa de saber para se preparar para as dificuldades que a esperam.
Que é que visto?
Ponha um vestido. Não calce sapatos altos. Não se maquilhe. Tem cinco minutos para se arranjar e vamos.
Pensei em correr para o quarto da Ari, mas lembrei-me de que ela tinha partido para os Estados Unidos de manhã cedo, para tratar de uns assuntos e trazer raparigas novas. Tinha-me garantido na véspera que ficaríamos perfeitamente bem sozinhas e que voltaria antes da nossa partida para se certificar de que corria bem. Olhei para a Destiny, que encolheu os ombros, igualmente às aranhas e visivelmente aliviada por ser eu e não ela.
Dez minutos mais tarde, de sandálias e com um vestido de alças preto, estampado com rosas centifólias cor-de-rosa e com botões na frente, acompanhei o guarda lá para fora e entrei para mais um Mercedes preto com janelas fumadas. Cheirava a carro novo e a couro quente.
Para onde é que vamos?
O guarda fez de conta que não ouviu, pegou num telemóvel e fez uma chamada em malaio. Estes guardas eram inescrutáveis e pareciam ser muitos os que estavam dentro da jogada. Que pensariam de servir de motoristas às mulheres do príncipe durante o dia todo?
Sentia-me estranhamente calma; reclinei-me nos estofos. Olhei pela janela, vendo o mundo desfilar. Não estava exatamente ali. Estava no palco de um concerto, sentada num descapotável estacionário com ventoinhas a soprar-me o cabelo e um ecrã atrás revelando uma estrada sinuosa através da selva. Depois o cenário mudou e estávamos na cidade, a percorrer rua atrás de rua. Durante toda a minha estadia no Brunei, tinha estado atrás de uma parede ou da janela de um carro.
O carro parou na entrada de trás de um prédio de escritórios, um caixote alto e genérico de aço e vidro. O motorista confiou-me a outro guarda, que me levou em silêncio num elevador, ao longo de um corredor e para dentro de uma sala. Deume um copo de água e deixou-me ali, fechando a porta atrás dele.
O interior da sala destoava da fachada profissional do edifício. Estava à espera de encontrar um escritório, mas não, era uma sala de estar repleta do mesmo mobiliário ornado do palácio, uma versão contemporânea e deturpada do estilo Luís XIV. Dava a sensação de que o decorador do príncipe possuía múltiplas personalidades. A superfície de uma enorme secretária de mogno estava pejada de fotografias do que presumi serem as mulheres e os filhos do príncipe. Olhei para elas, tentando estudá-las, recolher alguma perceção do que poderiam ser as suas vidas.
A pessoa que mais figurava nas imagens era um jovem que tinha ar de um bebé gigante e ampliado, muitas vezes espremido num fato de polo. Seria o príncipe Hakeem, o filho mais velho e herdeiro do Robin? Era impossível que este colosso fosse descendente do franzino príncipe. O Hakeem fazia-me lembrar Francis em A Grande Aventura de Pee-Wee. Imaginei o pedante e gordo adolescente sentado numa banheira do tamanho de uma piscina a brincar com navios de guerra em miniatura.
As mulheres nas fotografias eram todas fabulosas num estilo pintado, de lábios brilhantes. Trajavam vestidos compridos de brocado e cobriam o cabelo com lenços diáfanos. Seriam as mulheres dele? Havia uma menina sorridente de totós. Interroguei-me sobre a idade em que os trocaria pelo lenço na cabeça. Seria a filha? O príncipe não aparecia pessoalmente em nenhuma das fotografias com as mulheres, embora estivesse ao lado do Hakeem numa ou duas.
Não sabia exatamente do que estava à espera, mas tinha esperança de que fosse o Robin. Suponho que devia ter achado estranho estar a olhar para fotos das várias mulheres do Robin enquanto esperava que ele aparecesse, mas já me tinha habituado à miríade de mulheres do príncipe depois de passar uma série de noites no palácio. Tomei uma posição atrativa no divã e tentei pôr um ar casual naquela sala que estava a uma temperatura subártica graças ao ar condicionado, tanto que me causava surpresa o meu bafo não se condensar. Segundo um relógio dourado numa mesa do outro lado da sala, passaram dez minutos e depois meia hora. Finalmente desisti de estar sentada numa postura decente e levantei os joelhos debaixo do vestido, massajando a pele de galinha dos braços. Encolhi-me na mais pequena bola que consegui, mas sempre pronta a endireitar-me e arvorar um ar sexy ao mais leve sinal de a maçaneta da porta rodar. Mas a porta continuou fechada e trancada.
Passou uma hora. Não havia livros, nem revistas, nem televisão. Comecei a andar em círculos. Voltei a sentar-me. Procurei uma casa de banho. Experimentei a porta mas estava trancada. Experimentei uma segunda porta, igualmente trancada. Sentei-me de novo. Mais uma hora. Eu era a protagonista de uma peça de Sartre sem público. Pensei em urinar num cesto dos papéis. Estava a tremer de frio, de fome, de nervos. Tentei raciocinar através da minha lancinante dor de cabeça causada por falta de cafeína. Se se tinham esquecido de mim, ficaria ali a apodrecer como Antígona, sepultada viva?
Pior ainda: e se não estivesse à espera para ser a belle de jour de Sua Alteza? E se me esperava uma sorte pior? Se desaparecesse, quem me procuraria? Os meus pais, sem dúvida. Mas por onde começariam? Por um décor de cinema imaginário em Singapura? A quem poderiam atribuir o meu desaparecimento? Tive consciência de que podia desaparecer nesse momento e nunca ninguém seria responsável.
Mas estava a ser simplesmente histérica. E, além disso, não havia nada que eu pudesse fazer. Será que ia construir uma escada de corda com retalhos do couro branco das almofadas do sofá e descer pela janela para as ruas de Bandar Seri Begawan?
Fechei os olhos e tentei aquecer-me. Imaginei-me num lugar ensolarado, talvez numa praia. Demasiado piroso. Depois imaginei-me numa das pinturas do harém do Robin, a enfiar os dedos dos pés no banho fumegante. Demasiado molhado. Por fim, imaginei simplesmente que estava na minha cama em casa, no choco dos cobertores do meu futon, no chão do meu lúgubre apartamento da Ludlow Street. Tinha saudades de casa. Estava morta por regressar e voltar a ser estagiária no teatro, ser novamente uma rapariga normal no metro. Adormeci no divã com os joelhos encostados ao queixo.
Acordei com o ruído da porta a abrir e dei por mim a olhar para o Robin, vestido com um uniforme cinzento com medalhas na lapela e um chapéu militar. Era a primeira vez que o via sem ser de calções e sapatilhas. Assim sim, parecia um príncipe. Endireitei-me demasiado depressa, como uma criança apanhada a dormitar quando devia estar a fazer os trabalhos de casa. Senti-me vítima do síndrome de Estocolmo, em que a prisioneira se apaixona inevitavelmente pelo seu salvador mesmo que ele seja o tipo que a fechou à chave durante quatro horas geladas sem uma casa de banho sequer. Senti uma profunda gratidão e um intenso desejo de ser valorizada pela pessoa diante de mim. Em circunstâncias extremas, esta combinação pode exibir semelhanças com o amor.
Estás aqui há muito tempo? – perguntou ele, sentando-se ao meu lado e passando a mão pela pele fria do meu braço.
Estou.
Este facto pareceu enchê-lo de um certo prazer.
E estás fria.
Pôs-me a mão na nuca e puxou-me para ele para me dar um beijo suave: não prepotente nem confiante nem o que eu esperava deste famigerado playboy. Eu não tinha chegado diretamente de um emprego de balcão foleiro para cair nos braços de um príncipe. Raparigas como a Serena faziam de conta que tinham vindo propositadamente para admirar o arcoíris e que o pote de ouro na ponta era acidental.
Procurei não acrescentar a ilusão à minha lista de defeitos de personalidade. Sabia que éramos prostitutas. Sejam quais forem as cores com que pintemos a questão, quando estamos presas na mesma festa todas as noites e acabamos na cama com o tipo que dá as festas e depois, como que por magia, nos vemos com um punhado de dinheiro na altura de partir para casa, somos putas. Há corações que têm apenas um banho de ouro e outros que são de ouro maciço e outros ainda, como o meu, que estão divididos em dois, um lado brilhante e o outro na sombra.
Sabia que era uma prostituta mas, não sei porquê, sentia-me como a Cinderela quando o Príncipe Encantado me pegou na mão e me conduziu para a segunda porta da sala que estava agora destrancada. Estava mais ou menos à espera que ele se ajoelhasse e tirasse do bolso um chinelo de vidro. Em parte, era simplesmente eu a ser uma excêntrica romântica e, em parte, era ele. Ele possuía algo. Como muitos grandes amantes de mulheres, o Robin olhava para mim de uma certa maneira que me tornava subitamente adorável. As mulheres ignoram todas as formas de infidelidade e crueldade, esmagam a sua lógica sob um salto de vidro, se um homem as fizer sentir que pertencem a um pedestal no Louvre.
No entanto, a carruagem transformouse numa abóbora quando a Cinderela saiu da casa de banho e olhou para a divisão do lado. Era um quarto que parecia um espaço com o qual o Hugh Hefner apenas podia fantasiar. As paredes estavam revestidas com a mesma seda negra lustrosa dos lençóis e da cabeceira da cama. Havia espelhos no teto, espelhos nas portas dos armários, pelo menos três câmaras de vídeo à vista, colchas de chinchila dispersas e um ecrã de televisão montado junto do teto. Duas cadeiras de couro preto estavam viradas para um tabuleiro de xadrez com peças em ouro e prata. Pensei no comentário que a Serena tinha feito quando entrámos no palácio pela primeira vez: é tudo real. Mas absolutamente inútil. Quem é que jogava ali xadrez?
Ele pousou em mim um olhar sem ambiguidades. De pé, retribuí o seu olhar.
Que fazes no teu país? – perguntou ele.
Sou estudante. E atriz.
Atriz – disse ele, acenando com a cabeça como se fosse importante. – E um pouco disto talvez? – Indicou a cama com um gesto vago.
Senti o calor assomar-me às faces. A Serena. A puta. Tinha cometido o erro de lhe falar da agência de acompanhantes, um dia, ao almoço, quando baixara a guarda e ela se mostrara cordial. Claro, fora logo espetar-lhe. Senti um arrepio no estômago. Nesse momento, não queria ser encarada como uma acompanhante, não apenas porque não era o papel que eu estava a representar para o Robin, mas também porque não era a fantasia que eu vivia na minha imaginação. Reprimi os germes da fúria e pespeguei um ar de inocência na cara. Agora a coisa estava em marcha. Eu tinha entrado no jogo. Havia de me vingar dela.
Não faz mal – disse ele. – Gosto de atrizes. Conheço muitas. Acho que elas têm muitos sentimentos. É muito recreativo. Vá, chega aqui.
O Robin estendeu a mão e desceu-me a alça do vestido. Aproximei-me dele e ele pôs-me as mãos na cintura. Puxou-me para a cama e sentou-se à minha frente. Cruzou as mãos no colo e olhou para mim na expectativa, como alguém que nunca na vida se tinha preocupado em fazer outra pessoa feliz, que nunca tinha considerado que seria preciso mais do que a sua presença para pôr alguém à vontade.
Sobretudo porque não me ocorria mais nada para dizer, desci a outra alça e tirei o vestido, ajoelhando-me à frente dele e pousando a cabeça no seu colo. Passei as mãos pelo lado das suas coxas mas ele pegou-me pelos cotovelos e levantou-me. Sentei-me ao colo dele e curtimos durante um minuto antes de ele se levantar e de eu, que tantas vezes censurara impiedosamente a minha mãe por causa dos seus casacos de vison, me enfiar debaixo do cobertor de pele com uma onda de gratidão, por estar tapada e por estar quente. Estava tão enregelada que a pele por baixo das minhas unhas estava roxa.
O Robin despiu-se como se se preparasse para entrar para o chuveiro, dobrou muito bem a roupa, pousando-a na cadeira do xadrez, e meteu-se debaixo da chinchila comigo. Cheirava irresistivelmente a lavado, como sabonete ou águade-colónia (Egoïste, tinha ficado a saber depois da visita à casa de banho). O seu corpo não exibia poros nem pelos e era musculado. Não tinha cicatrizes, não tinha emoções à superfície, nada de notoriamente humano digno do nome. Olhava-me nos olhos o tempo todo, olhos cor de obsidiana, ligeiramente encovados e matreiros. Era o tipo de indivíduo que se juraria que estava a fingir o orgasmo se as provas físicas não estivessem à vista. Fiz-lhe a minha melhor mamada, ao estilo porno, carregada de contacto visual, e ele mostrou-se quase entediado. Para mim era novidade.
O Robin usava uma espécie de talismã ao pescoço que parecia uma mezuzah. Quando eu era pequena, o meu pai usava um assim. Lembro-me de olhar através da rendilhada filigrana de prata e de tentar ver o minúsculo pergaminho lá dentro. Não me recordava do que estava escrito no interior de uma mezuzah. Era qualquer coisa do género: «Leva a peito estas palavras que te ordeno hoje. Ensina-as fielmente aos teus filhos.» Ainda adorava o som dessas preces apesar de acreditar em signos, espíritos, fantasmas e musas e talvez em anjos, mas de maneira nenhuma em Deus.
A minha mente estava a fazer o que fazia com clientes do clube e da agência e, para ser franca, com namorados também. Tinha descolado, subindo em espirais e saindo do quarto, de tal maneira que metade do tempo, quando acabava de ter sexo, não me lembrava. Era quase como andar no mesmo metro em que se andou um milhar de vezes antes: entra-se num devaneio, chega-se à paragem e as estações intermédias foram completamente apagadas da memória. Por vezes, o devaneio é tão profundo que se desperta para a realidade e se descobre que se deixou passar a paragem e se foi parar a Queens.
Foi o que aconteceu. Entrei num devaneio e acordei em Queens. Acordei e o Robin estava a foder-me sem preservativo e eu tinha perdido a fala e não conseguia pará-lo. Estava-se no apogeu da epidemia da SIDA e eu tinha amigos do teatro, nos Estados Unidos, que estavam a morrer com a doença de maneira horrenda. Mas, tão rapidamente quanto tinha surgido, pus o pânico de lado. Os meus joelhos deslizaram contra o pelo e pressionei a seda fresca da cabeceira da cama com as mãos.
Mais tarde, ele escreveu não sei o quê nas minhas costas com a ponta do colar. Fez-me lembrar o jogo que jogávamos em miúdos no campo de férias. Fechávamos os olhos e uma amiga sentava-se à nossa frente, pegando-nos no braço. Com a ponta de uma unha, escrevia uma palavra que tínhamos de adivinhar. Era quase impossível adivinhar pela sensação real. No fundo, era um teste para aferir a que ponto conhecíamos essa amiga, para ver se éramos capazes de adivinhar que palavra ela tinha decidido escrever na nossa pele.
Fez-me também lembrar um jogo que eu jogava, mais tarde, quando estava deitada, nua, com amantes e escrevia o meu nome nas costas deles com as pontas dos dedos, fingindo que estava simplesmente a fazer-lhes cócegas. Escrevi «Amo-te» ao Sean muito antes de lhe fazer verbalmente a declaração. Não sei o que o Robin escreveu.
Deitei-me de barriga e o Robin deitou-se ao meu lado durante exatamente três segundos antes de dar-me uma palmada no rabo, me dar um beijo na cara antes de sair da cama como se tivesse carregado no botão de ejeção de emergência.
Gostei muito. Estou atrasado para uma reunião.
Tive a sensatez de não dizer: espera, espera. Dê-me outra oportunidade que eu te dou vontade de ficar. Sabia até que não o devia sentir, mas senti. Era característico de mim.
Estaria realmente já embeiçada por este tipo (que não era apenas o tipo menos disponível no planeta, mas era também muito provavelmente uma espécie de tarado sexual que encaixa uma rapariga diferente entre cada reunião de negócios) ou não queria simplesmente ser deixada mais uma vez sozinha?
Enquanto o Robin tomava um duche e se vestia para partir, servi-me do espelho do teto para arranjar o cabelo na travesseira. Queria gravar a minha imagem no cérebro dele, queria transformar-me numa recordação que o apanhasse desprevenido quando estivesse sentado numa reunião ou andasse no banco de trás do carro, ou o que quer que fosse que os príncipes faziam. Quando ele saiu, estava com um aspeto tão elegante e imaculado como quando tinha entrado.
Disse a mim mesma que era uma embaixadora da boa vontade, melhorando sem a ajuda de ninguém as relações entre os judeus e os muçulmanos de todo o mundo. Não era a primeira judia na cama de um sultão. Hadassah mudou o nome para Esther para se casar com o rei persa. O feriado do Purim foi instituído para celebrar a história de Esther.
Mas não haveria feriado nenhum para comemorar as minhas ações. Eu não era embaixadora de nada, a não ser da minha própria carteira e do meu próprio desejo de me sentir desejada. Mal conseguia olhar pela minha vida; não ia salvar ninguém. Inúmeras mulheres como eu tinham dormido com reis, mas nunca ninguém ouvia as suas histórias porque ninguém lhes dava importância.
Quando tive a certeza de que o Robin não ia voltar, fui para a casa de banho tomar um duche. A parede de vidro e o mármore negro do chuveiro ainda estavam manchados com a água do duche do Robin. Fiquei ali, sentindo a água nas costas, e pensei na manhã depois da primeira noite que passei em casa do Sean. Não tinha querido ir para casa com o meu vestido justo da véspera e tinha posto a sua velha sweatshirt da faculdade e um par de jeans, com as pernas compridas reviradas várias vezes. Quando cheguei a casa, estava exausta e suja e o meu cabelo cheirava a tabaco, mas não tinha querido tomar um duche porque ainda sentia o cheiro dele em mim. Tinha-me enfiado na cama e adormecido com a roupa dele ainda no corpo.
Passaram três horas até ser tomada das suspeitas de que se tinham mais uma vez esquecido de mim e entrei em pânico.
Está aí alguém? Socorro! Estou aqui. Abram a porta.
Bati com toda a força na porta e gritei durante uns bons quinze minutos antes de aparecer alguém a rodar a chave na fechadura.
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Atualizado até capítulo 30
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