Com estadias de uma noite em Los Angeles e Singapura, passei três dias em viagem para o Brunei. As longas horas de voo proporcionaram-me uma oportunidade para refletir.
Atualmente, a minha vida adquiriu um ritmo mais lento e parece que o tempo vai passando e deixando apenas marcas subtis na minha vida: o ligeiro acentuar das rugas em redor da minha boca, o desfazer de uma posição de ioga, uma amizade que é brutalmente testada, talvez, ou o nascimento de uma nova. Lanço-me em intermináveis tentativas para quebrar maus hábitos e para adquirir novos e mais saudáveis. Geralmente fracasso em ambas, mas sem grandes prejuízos. Já não. Por vezes, compro um bilhete de avião. Há sempre um nascimento, uma morte, uma celebração, uma tragédia. Mas quando me sentei nesse avião para Singapura, tinha muito sobre que refletir e ainda mais que esperar. Na altura, o camião desenfreado que era a minha vida galgava a linha divisória, mudando de direção de cinco em cinco minutos.
A ouvir um CD dos Talking Heads no meu leitor portátil. And you may ask yourself, well… how did I get here?
Podem fazer a mesma pergunta. Estão a ver? Que está uma rapariga simpática a fazer a caminho de um harém como este? Permitam-me que volte alguns passos atrás.
Como lá cheguei? Tudo começou com uma corrida impetuosa na praia, já muito depois da meia-noite, numa noite gélida de novembro em East Hampton. Larguei numa corrida a toda a velocidade pelas dunas iluminadas pelos projetores, com o terror estampado na cara. Sob as minhas Reebok, o solo cedia e abrandava-me o passo como se eu estivesse a correr num sonho. A areia à minha frente estava semeada de sombras alongadas. A única coisa que o realizador me tinha mandado fazer, antes de gritar «ação», fora atingir três marcas ao longo da minha trajetória, cada uma delas assinalada por um saco de areia pouco visível. Eu estava com um traje de cheerleader amarelo e azul fácil de arrancar pois prendia com Velcro dos lados, e o meu cabelo castanho estava preso em apertados totós, atados com laços de cetim amarelo. O ar salgado arranhava-me a traqueia e cobria-me os braços e as pernas nus de pele de galinha. Tinha feito dezoito anos três meses antes; podia mesmo ter sido uma cheerleader.
Atingi o primeiro saco de areia num ângulo esquisito e torci o tornozelo. De acordo com o guião, uma mão espectral emergiu da escuridão e arrancou-me a blusa. Soltei o meu melhor grito à Janet Leigh e desatei a correr, agora de peito nu, em direção à marca seguinte, sentindo a perna percorrida de dardos de dor.
Estava ali. Existia na realidade. Era a Patti Smith de totós e estava a gritar a plenos pulmões diante de uma câmara – diante de uma câmara finalmente. Que interessava que fosse um filme foleiro sobre vampiros para lançamento em vídeo na Flórida? Era um filme. Era um começo. Era uma pedra fugaz na estrada dos sonhos que levaria a tudo o que eu queria ser: uma estrela cintilante no palco e no ecrã. O meu plano era ser tão absoluta e inquestionavelmente amada que nunca mais ficaria suspensa nas órbitas exteriores do nada.
Este filme, este primeiríssimo degrau da minha escada para o sucesso, chamava-se Valerie. Valerie era sobre uma aluna do liceu tão obcecada com vampiros que magicamente se transformava num e passava então a aterrorizar a sua escola. Duas semanas antes, tinha respondido a um anúncio na Back Stage que me conduziu ao tipo de moradia citadina de tijolo em Newark onde moram velhas senhoras polacas. Esta audição era diferente da maior parte das audições a que tinha ido, em que acabava num vago estúdio de casting perto do centro com um grupo de outras raparigas viradas para a parede a lerem silenciosamente os excertos do guião, movendo os lábios e erguendo e baixando as sobrancelhas.
Eu conhecia mais ou menos Newark. A minha família é uma dessas antigas famílias judaicas de Newark em que os octogenários são requestados para entrevistas por etno-historiadores. O meu trisavô e os irmãos chegaram de barco de uma shtetl na Polónia e, banhados em tons de sépia, começaram com uma carroça de fruta e abriram uma mercearia que veio a transformar-se numa cadeia de mercearias. Começaram por entregar jornais a troco de canetas e acabaram a passar receitas. Eram médicos e dentistas e empresários e magnatas do setor imobiliário. Contribuíram para a fundação da sinagoga mais antiga de Newark, a mesma onde eu e o meu irmão fizemos o bat e o bar mitzvah.
Perguntem ao meu pai que ele explica tudo: a nossa família ajudou a construir Newark. Adoramos Newark. Muito depois de ele sair de casa, os pais dele foram, durante anos, a última família branca a viver no seu quarteirão. Só mudaram de casa quando o meu avô se reformou e ele e a minha avó eram demasiado velhos para olharem pela casa sozinhos. Embora o meu pai viva agora num subúrbio endinheirado a cerca de vinte minutos, é o primeiro a dizer que não tem complexos de grandeza; não passa do mesmo catraio de Newark. O meu pai é um homem sentimental e, quando eu era pequena, costumava levar-me a passear no seu Cordoba branco e indicar a velha casa na Lyons Avenue, a Escola Secundária de Weequahic, o cemitério judaico. Falava tanto sobre todas estas coisas que os passeios Newark nos eram familiares apesar de nunca lá termos vivido nem sequer sairmos do carro.
Assim, senti que quase reconhecia a moradia citadina quando cheguei à morada escrita numa folha de papel na minha carteira. Bati à porta e o untuoso realizador do filme, a quem não faltava um rabo de cavalo fino e jeans de cintura alta, conduziu-me a uma sala de estar onde todas as superfícies estavam cobertas de uma teia de napperons rendados e todas as peças de mobiliário estavam protegidas por plástico; provavelmente a casa da mãe dele. A mesa de apoio fora afastada para o lado da sala e, em seu lugar, estava um tripé com uma câmara vídeo do tamanho de uma torradeira.
Pus-me à frente da câmara e fiz a minha audição, que consistia inteiramente em tirar a blusa e gritar. O realizador e o assistente franziram as testas e tomaram apontamentos numa prancheta enquanto se mexiam em cima das capas do sofá rangente. Dois dias mais tarde, chamaram-me para me informar que eu fora escolhida para Vítima Um. O realizador disse-me também que o Butch Patrick, o tipo que interpretara Eddie Munster, era primo dele e que, portanto, o projeto apresentava imensas potencialidades.
Costuma dizer-se que não existem pequenos papéis, mas apenas pequenos atores, e, como eu ainda não tinha descoberto que este aforismo não é verdadeiro, aceitei o trabalho.
Dirigi-me para a segunda marca, onde uma mão entrou no plano e me arrancou a saia da cintura. Este grito foi menos potente, com menos fôlego. Corri a última etapa do percurso só de cuecas, sapatilhas e soquetes. Quando cheguei ao último saco de areia, a Maria, a atriz que interpretava o papel de Valerie, surgiu à minha frente e bloqueou-me a passagem.
Grito
Corta.
Maria era claramente anorética, uma loura com um ar torturado. Os seus olhos arroxeados eram ensombrados por círculos arroxeados que nem a maquilhagem branca e densa cobria completamente. Vestida com um roupão em mau estado e recortada contra as luzes brilhantes do décor, parecia uma extraterrestre com o seu corpo de sílfide a sustentar estranhamente um crânio que parecia enorme em comparação. A que propósito é que esta rapariga era a vedeta enquanto eu era a Vítima Um?
Enquanto esperávamos que preparassem o plano seguinte, eu e a Maria agasalhámo-nos com um edredão surripiado numa casa de praia próxima que pertencia aos pais não sei de quem. Chegadas uma à outra para nos aquecermos, senti contra mim as arestas angulosas dos ossos ilíacos dela, desprovida como era de qualquer camada de proteção contra o mundo. A equipa azafamava-se à nossa volta, montando as luzes e preparando a nossa próxima cena conjunta. Era a minha cena final. O meu Grande Momento.
Realizador veio falar connosco enquanto o diretor de fotografia preparava a câmara para a filmagem.
Dirigiu-se à Maria em primeiro lugar.
Esta é a tua primeira morte. Finalmente cedeste à sede de sangue contra a qual vens lutando durante todo este tempo. É hipnótico. É orgástico… o poder quando a dominas. Saboreia-o. Não te precipites. Sobretudo na mordida.
Virou-se para mim e disse simplesmente: – Dá-lhe luta.
Uma rapariga apagada da área de adereços, com um colete de pelo, um gorro e luvas de borracha até aos cotovelos, preparou uma mistura de sangue falso num balde. No primeiro plano, a Maria tinha de arrancar a última e insubstancial barreira que separava o meu corpo da noite – o par de cuecas que seria sacrificado para a ocasião – e de me atirar em seguida ao chão. O plano seguinte era a matança homoerótica, na qual eu sucumbiria à vampira e acabaria submersa em sangue falso. A aderecista frisou a necessidade de fazer a cena num take porque não haveria maneira de me voltar a limpar.
Cena da luta foi lastimosa. A Maria mal tinha força nas mãos para me agarrar nos pulsos. Eu tenho a forma de uma réplica viva das voluptuosas raparigas de banda desenhada de R. Crumb, com grandes traseiros, coxas robustas e redondas, cinturas delgadas e seios arrebitados copa B, o que equivale a dizer que podia ter reduzido os frágeis ossos da Maria a uma pilha de galhos com um empurrão. Não estava disposta a deixar que a fragilidade dela estragasse o meu momento. Assim, entrelacei os dedos nos dela e sacudi-a como se ela fosse um fantoche, tentando dar a impressão de que estava a lutar pela minha vida de cheerleader. Depois, lancei-me para trás e puxeia para baixo, para cima de mim. Ela pareceu abalada.
Grito.
Corta.
Plano seguinte era o plano sangrento. A aderecista tinha posto um avental de borracha preto, concluindo a sua toilette de autêntica carniceira. O resto da equipa enterrou umas tubagens transparentes na areia de maneira a surgirem atrás do meu pescoço. Enquanto se atarefavam à minha volta, deitei-me na areia, fechei os olhos e tentei não hiperventilar. Refugiei-me em mim mesma e fiquei estranhamente ensonada, sentindo o tornozelo torcido quente e palpitante. Pensei se estaria a começar a morrer de frio. Vozes atrás de mim indicavam a sua preocupação de que o sangue na tubagem não fluísse livremente já que começara a espessar e a formar um bloco de gelo xaroposo. O supervisor do guião deu uma cotovelada ao realizador e apontou para a minha figura prostrada.
Ele entrou em ação. – Muito bem. Vamos à matança. Tem de ser agora; estamos a perder a nossa Vítima. Toda a gente a postos.
Maria posicionou-se sobre mim, os seus olhos injetados de sangue e encovados denotando profunda exaustão e fome. Certificou-se de que os dentes estavam bem presos. A rapariga carniceira aproximou-se com um copo de plástico e encheu-me a boca de uma mixórdia repugnante que eu devia cuspir no momento em que me rendesse.
Silêncio.
Estamos a filmar.
Ação.
A Maria arregalou os olhos, na sua melhor expressão à Bela Lugosi, e preparouse para um ataque lento e dramático. Eu não podia contorcer-me muito por causa da tubagem do sangue precariamente instalada e assim procurei transmitir o pânico na minha expressão. Considerei que era o tipo de desafio que distinguia os amadores dos profissionais; não votava aos amadores senão desdém. Soltei um derradeiro e absolutamente genuíno grito quando a Maria se baixou para a mordida e um rio do que parecia ser ranho congelado jorrou do tubo como um gêiser e submergiu-nos a ambas. Arfei em mortais convulsões enquanto ela erguia o rosto para a lua, os olhos alucinados com a chacina. Finalmente imobilizei-me e deixei cair a cabeça para o lado, o sangue escorrendo-me pelo canto da boca flácida e os olhos fixos à minha frente.
Corta.
A Vítima Um está feita. Maria, vai-te limpar para o plano seguinte. As cerca de cinco pessoas presentes rebentaram numa salva de palmas pouco entusiasta e a rapariga do açougue atiroume uma toalha. Eu aproveitei para me pisgar e encaminhei-me a mancar o mais depressa que podia para a casa. Um assistente de produção estava a guardar a entrada para o alpendre.
Chuveiro exterior – disse ele.
Estou nas últimas.
Não estou a brincar.
Descalcei as meias e os sapatos, agora cor-de-rosa, e encaminhei-me sombriamente para o que era de certeza o auge da tortura da noite. Descobri que em East Hampton, ao contrário da praia de Jersey, os chuveiros exteriores têm água quente e cabeças de chuveiro do tamanho de discos voadores. Sobre uma base de betão, desprendi o cabelo empastado dos totós, deixando a água quente lavar o lodo e aquecer-me o corpo, e tudo o que restava das últimas horas era o céu estrelado de Long Island e o oceano negro e revoltoso à distância. Procurei libertar-me da inquietante apreensão que sentia no peito. Não tinham passado de uns momentos divertidos e macabros, certo? A próxima audição seria a sério. O próximo papel que me fosse oferecido seria a sério.
Quatro raparigas peitudas estavam sentadas em divãs cobertos com toalhas, numa sala do andar de baixo da casa. A caracterizadora tentou aplicar-lhes a maquilhagem corporal uniformemente com uma esponja, mas a base branca escapava ao seu controlo, demasiado espessa e seca em certos pontos e demasiado fina e fluida noutros. As raparigas estavam a ensaiar o texto umas com as outras, preparando-se para as cenas em que interpretavam as esposas vampiras que acolhiam a Valerie no seu círculo maldito.
Vesti o fato de treino, penteei o cabelo molhado para trás e instalei-me, preparada para esperar que o resto da longa noite passasse. A sala era toda em cerejeira, almofadas de chintz e largas riscas azul-marinhas. Uma mesa no canto oferecia um litro de Diet Coke, uma embalagem de água mineral, um monte de sanduíches empapadas e alguns Cheetos. Contornei este lastimoso cenário e descobri o bar. Depois comecei a passear-me por ali com o Jameson como se fosse a senhora da casa, armada em afável anfitriã e regando os refrigerantes de toda a gente com whisky.
Whisky animou a festa. Com a adrenalina em alta, conversámos sobre clubes de striptease e namorados, cientologia e colonterapia, professores de Interpretação e restaurantes da baixa. Ponderámos essa grande questão feminina: Por que razão as vampiras se chamam «esposas vampiras» quando os vampiros não se chamam «maridos vampiros»? Apesar desta injustiça para com o nosso sexo, as esposas vampiras acabaram por ir filmar as suas cenas e eu enrosquei-me numa cadeira e adormeci, agarrada a uma almofada com um cãozinho bordado a meioponto.
Acordei quando as esposas vampiras apareceram, frescas do duche e embrulhadas em toalhas, com vagas manchas brancas ainda agarradas ao cabelo. O céu tinha começado a clarear com a pálida alvorada e só a Maria continuava no exterior a rodar as últimas cenas. O assistente de realização trouxe algum do material filmado ao início da noite e ligou uma segunda câmara à televisão. Juntámo-nos para assistir. Fiquei excitada quando me vi na imagem. Considerei que me tinha saído lindamente dadas as limitações evidentes.
Vimos o que me pareceram centenas de cenas antes da minha e eram todas intragáveis. Não me devia ter sentido surpreendida quando finalmente apareci no ecrã, a iluminação era tão má que era quase impossível distinguir-me. Não passava de uma mancha de fita amarela no cabelo e um par de mamas brancas saltitantes no escuro. O grande plano do meu estertor de morte estava desfocado e era óbvio que seria eliminado.
Dirigi-me ao alpendre para assistir ao nascer do sol, decidindo que não precisava de ver mais. O filme nem num estilo irónico tinha qualquer valia. Era apenas mais uma noite mal dormida e outro cheque «diferido» que nunca mais chegaria. Pelo menos, tinha a história. No final de todas estas noites surrealistas e inúteis, havia sempre a história.
Uma das esposas vampiras, uma rapariga chamada Taylor que era a cara chapada da Ellen Barkin, seguiu-me até lá fora. Envolvemo-nos as duas em sobretudos e edredões e apertámo-nos uma contra a outra no baloiço do alpendre. A Taylor estava com uma camisola de gola alta J. Crew e parecia deslocada entre o pessoal da pornografia de baixo orçamento que constituía o resto de elenco de Valerie. Tinha cabelo espesso e louro veneziano e a cana do nariz sardento exibia um bronzeado desmaiado.
Conversámos enquanto víamos o sol sobre o oceano a passar pelas mais pálidas tonalidades de limão e rosa-pétala e azul-bebé
Então que fazes quando não estás com as maminhas ensanguentadas ao frio a troco de um pagamento miserável, joia?
Taylor falava com um leve sotaque sulista, o que lhe permitia tratar impunemente as pessoas por «joia».
Disse-lhe que trabalhava como estagiária no The Wooster Group, uma lendária companhia de teatro no centro da cidade. Passava longos dias na Garagem do Espetáculo, na esquina da Wooster e Grand, onde arquivava documentos para o Spalding Gray e ia buscar lattes para o Willem Dafoe. Assistia aos ensaios enquanto a encenadora Elizabeth LeCompte, como uma espécie de xamã pósmoderna, desconstruía, reconstruía e dava corpo à obra-prima iconoclasta do momento.
Quando a Kate Valk ou um dos outros veteranos superchiques do The Wooster Group se apiedava dos seus estagiários prediletos e nos oferecia uma bebida no Lucky Strike, na esquina, o vinho faziame arder os cortes feitos pelo papel nos cantos da boca. Mas o tempo que passava na Garagem do Espetáculo era o melhor. Os meus amigos estagiários ali iam ser os atores principais na nova vaga de teatro experimental nova-iorquino; estávamos convencidos disso.
Às tantas é a melhor companhia de teatro do mundo e eu ando para ali a lamber envelopes de angariação de fundos – disse eu à Taylor.
E o que fazes para ganhar dinheiro quando não és uma escrava das artes?
Quando me faziam esta pergunta, normalmente mentia, mas, por qualquer razão, contei a verdade à Taylor. Disselhe que dividia o meu tempo entre um sórdido bar de topless, mas na moda, da Canal Street, chamado Baby Doll, e um ainda mais sórdido e completamente fora de moda peep-show, na Times Square, chamado Peepland.
Comecei a dançar quando abandonei a Escola de Arte Tisch da Universidade de Nova Iorque. Tinha sido admitida aos dezasseis anos, através de um programa de admissão precoce, e os meus pais tinhamme recambiado para uma residência universitária doze andares acima do Washington Square Park, ainda eu não tinha tirado a carta de condução. Quando deixei a escola seis meses mais tarde, indiquei a minha preferência pela lendária escola da vida, mas o meu pai não foi na cantiga. Diante de camarões e cogumelos, no Jane Street Seafood, cortou-me prontamente o cordão umbilical das finanças.
Há seis meses dizias: Não preciso do estou pronta para a universidade – disse ele, as suas bochechas transformando-se num balão escarlate de raiva. – Agora é: Não preciso da universidade, estou pronta para a vida. A vida custa dinheiro.
A universidade também.
Tens sempre resposta pronta. Achas que tem graça, o caminho que levas? Não te dou nada. Vê como te desenrascas e depois veremos se mudas de ideias a respeito da universidade.
Ele tinha razão. A vida custava dinheiro. E a vida em Nova Iorque custa dinheiro e muito, consideravelmente mais do que eu ganhava como desastrosa empregada de mesa no Red Lion na Bleecker Street. Uma das outras estagiárias no The Wooster Group trabalhava no Kit Kat Club na esquina da Fifty-second e da Broadway e convenceu-me de que seriam muito mais tolerantes lá para com a minha falta de talentos naturais para o serviço de mesa. Um dia, acompanhei-a ao trabalho e passei cerca de quarenta minutos a servir à mesa antes de arrancar os trapos e saltar para o palco com uma tanguinha emprestada.
Para aqueles que não tiraram financeiramente partido da sua sexualidade, aqueles de nós que inspiraram muitas vezes um espectro extremo de emoções: por que razão nos despiríamos por dinheiro? O que nos leva a dar esse primeiro mergulho? O que torna uma rapariga com problemas de dinheiro numa stripper e outra numa empregada de mesa e outra numa estudante de Medicina? Convém ligar os pontos. Querem certamente garantias de que não será a vossa filha ali no palco de perna enrolada no poste. Uma relação de merda com o meu pai, a autoestima pelas ruas da amargura, uma ânsia de aventura astrologicamente inevitável, sonhos de estrelato, uma história de depressão e ansiedade, uma tendência para consumir drogas – ponham tudo no caldeirão e fervam e verão emergir a trabalhadora sexual ideal, a cintilar e a pingar e intacta.
Olhem só para a lista de requisitos. Não se preocupem, não é a vossa menina. Ela nunca virá a ser como eu.
Dançar no Peepland e no Baby Doll permitia-me ganhar o suficiente para viver à custa de refogados vegetarianos, fazer noitadas no Max Fish e ter um apartamento dividido em Lower East Side, mas não se podia dizer que nadasse em champanhe.
Trabalhas de mais e ganhas mal e porcamente e vais dar cabo dos joelhos – disse-me a Taylor. – Já fizeste dezoito anos?
Tinha acabado de fazer.
Ótimo, porque a Diane verifica. Não lhe podes entregar identificação falsa como se ela fosse uma segurança meio emborrachada numa discoteca.
Dizia «Crown Club» em letras douradas em relevo, com uma pequena coroa por cima do «o» e um número de telefone por baixo. Tirou uma caneta da carteira e escreveu também o número dela.
A Diane dirige a agência de acompanhantes para a qual trabalho. É a melhor em Nova Iorque. Andas a vender-te ao desbarato. Se vieres trabalhar comigo, a tua vida muda num abrir e fechar de olhos.
Uma agência de acompanhantes. Parecia simples e cheio de estilo. Imaginei que a Diane seria uma mulher elegante de fato creme, sapatos práticos de salto e brincos de diamante. Arvoraria um ar perspicaz e distante mas teria um lado maternal, como a Candice Bergen em Mayflower Madam. Seria alguém digno de admiração, alguém que me poderia ajudar. Eu andaria menos cansada, teria mais tempo para me dedicar à minha carreira de atriz.
Taylor pôs o braço à minha volta. Éramos novas amigas, juntinhas contra o frio, contemplando a extensão sem nuvens do céu. O sol tinha nascido; a equipa guardara o equipamento e estava a carregá-lo em carrinhas. Os membros do elenco foram saindo um a um para o alpendre à espera de boleias para a cidade.
A história da Mayflower Madam era uma fantasia agradável, mas eu sabia que as probabilidades de ligar à Diane eram remotas. Fazer trabalho de acompanhante era ir longe de mais. Mas meti na mesma hora o cartão ao bolso, para o caso de mudar de ideias.
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Atualizado até capítulo 30
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