Não sou ele

Allan narrando

Aproveitei o jantar para alinhar algumas coisas com Henrique. O delegado pediu que ficássemos por uns dias na cidade, mas não podia só largar tudo e aguardar o desenrolar da investigação. Estávamos planejando uma expansão para a Argentina e aquilo sem dúvida me levaria ao topo do setor. Era imprescindível que tudo ocorresse bem até a divulgação da nova filial, mas o Gilberto ferrou muito com a minha vida.

Um escândalo desse tamanho nas vésperas do anúncio me traria muita perda, tinha muito dinheiro envolvido e esse sim faria diferença pra mim. Quanto a fechar a unidade 23, eu nem queria ter mantido a inauguração, quem dirá seu funcionamento. Ela seria desativada. Não havia o que discutir quanto a isso, mas íamos tentar realocar alguns funcionários. Henrique apelou e falou sobre a opinião da minha mãe se deixasse tanta gente sem emprego, que aceitei suas ideias.

Era muita coisa, muito problema, mas Henrique era o melhor, nunca tive dúvidas sobre o quanto ele seria brilhante na advocacia. Era minha maior conquista. Sua amizade. A forma como nos tornamos a família um do outro. Eu só tinha ele e eu era tudo o que ele tinha. Formamos uma dupla e tanto, e isso me dava a certeza que iria conseguir driblar esse problema.

Estávamos lendo alguns relatórios, cada um com seu telefone, quando recebi o e-mail do investigador. Ele era muito eficiente, eu só escolhia os melhores para compor o meu time.

Parei a leitura e abri o arquivo que ele mandou. Além do relatório escrito, tinha um compilado de imagens e alguns laudos médicos.

Por mais que eu já tivesse imaginado diversas situações que Laura pudesse ter vivido com o ex, aquele texto me quebrou em muitos pedaços.

Enquanto lia as informações e aguardava o carregamento das fotos, meu peito parecia comprimir meu coração, estava ficando sufocado, e quanto mais meus olhos percorriam aquele texto mais ódio eu sentia do genitor do Ravi.

Quando o arquivo completou e pude ver as fotos, não estava preparado. Tinha registros da Laura na época da faculdade, quando ela começou o namoro com aquele monstro e era nítido que desde o inicio ele apagou o brilho natural dela, seu sorriso apenas disfarçava o sofrimento que vivia.

A próxima foto era de um arquivo que foi compartilhado e depois deletado por ele. Laura tinha marcas no pescoço de estrangulamento, e roxos que indicavam espancamento, pela data ela já estava grávida e não tive dúvidas de que o tempo em que esteve com ele os abusos foram muito além do psicológico. Por isso ela dizia que não aguentava mais os meus pedidos de desculpas, era fácil concluir que ele a batia, fingia se arrepender e depois voltava a agredir aquela mulher.

Tinha outras fotos, acredito que seriam os pais dela, e no relatório indicava que ela tinha sido adotada, algumas da gravidez com a barriga redondinha e enorme. Ele ficou linda grávida e eu queria ter estado ao seu lado quando ela sentiu o primeiro chute do bebê. Eu a faria feliz.

Tinha fotos do nascimento do Ravi. Ela compartilhava tudo nas redes sociais e seu perfil mal exibia seu rosto, a cada três postagens duas era do filho e a outra algo sobre ele.

Laura tinha dedicado sua vida ao filho.

Tinha uma foto sobre o primeiro dia de emprego e depois a foto de quando completou 2 anos aqui, seu texto exalava a gratidão que sentia pela oportunidade que recebeu e suas palavras mostravam o quanto ela tinha se tornado forte depois de tudo.

Me chamou atenção uma foto dela na formatura, fiquei feliz por ver que ela conseguiu se formar, e na foto ela entrava acompanhada do Ravi, percebi seu rosto inchado de chorar mas aquelas lágrimas eram de felicidade, seu sorriso mostrava isso na foto seguinte.

Compartilhei o arquivo com Henrique enquanto voltava as fotos para as que eram sobre o nascimento do filho e vi Henrique enlouquecer. Ele dizia que aquilo era inaceitável e queria que eu prometesse que iria fazer aquele monstro pagar. Tolice dele achar que eu aceitaria aquilo de forma indiferente. Se eu já tinha o sentimento de que deveria proteger Laura antes, depois do que li, tudo o que eu sabia era que daria a minha vida por ela e pelo filho dela.

Eles seriam meus, porque eu já era inteiramente dela, meu coração pertencia a ela desde que ela falou comigo no sinal.

Senti sua presença e levantei a cabeça a sua procura pelo salão. Vi o instante exato que seus olhos encontraram os meus e seu sorriso virou medo. Ele deu um passo para trás e eu sabia que ali ela estava fugindo.

Não exitei, levantei rápido, derrubando a cadeira que estava sentado e corri para abraçá-la.

Ela chorava e tremia nos meus braços e repetia desesperada

- Não posso! Não posso Allan, eu sinto muito. Mas eu não posso continuar, não vou suportar viver tudo outra vez. Me desculpa.

Ela conseguiu soltar do meu abraço e correu para dentro do que acho ser a cozinha do restaurante.

Os poucos clientes que estavam lá viram a cena e não entenderam nada, nem eu tinha entendido direito. O que ela queria dizer com viver tudo outra vez? O que ela estava falando? O que ela estava sentindo?

Fiquei parado olhando a porta onde ela entrou e só então me dei conta. Eu tinha estragado tudo. Porr@!

Ela deve ter visto no meu olhar o ódio que senti ao ler sobre o que tinha acontecido com ela. Em um dos trechos tinha uma transcrição de uma mensagem onde ela dizia ter "visto a cara do demônio na sua frente" e eu deveria estar com a mesma cara naquele momento em que ela se aproximou.

Não poderia ficar ali, precisava falar com ela, cuidar dela, proteger, ela precisava entender que eu não ia a machucar e que tudo o que eu fizesse seria apenas para que ela pudesse ser feliz. Acima de tudo, ela precisava entender que eu não sou ele.

Segui o caminho que ela fez e tinha um garçom parado na porta, implorei com o olhar para que ele me deixasse entrar, e estava disposto a uma briga se ele tentasse me impedir, mas pra minha sorte ele fastou me dando passagem e quando estava ao seu lado, ele me olhou e parecia ver pela minha alma e disse:

- Seja lá o que aconteceu e quem você seja, a única coisa que precisa fazer se entrar aqui é nunca mais permitir que ela sofra. Laura é especial e maravilhosa em tantos aspectos, prometa que não vai ferrar mais com a vida dela.

- Não se preocupe, dedicarei a minha vida inteira apenas para manter o sorriso dela. Não sei o que está acontecendo entre nós dois, mas eu não vou negar que estou apaixonado pela Laura e sem ela não sei como vou permanecer vivo.

- Obrigado, rapaz. Terá minha gratidão se cumprir sua promessa. Pode subir aquela escada, a sala dela é a última da esquerda.

Concordei com a cabeça e segui rápido. Abri a porta sem nem me preocupar em bater antes.

Ela estava encolhida no chão, com a cabeça entre os joelhos e seu corpo tremia desesperadamente.

- Laura! Laura meu amor! Me deixe te cuidar, me deixe te fazer feliz. Eu não sou ele e vou te provar que tudo em mim existe apenas por que você existe também. Eu sou seu e meu coração te quer. Eu não sou ele, Laura. Eu te amo!