O céu começava a clarear quando me levantei, ainda sentindo o peso do sonho da noite anterior pairando como uma névoa sobre mim. Deixei esse pensamento de lado, seguindo direto para o banheiro. A água fria me despertou num estalo, me encarei no espelho por alguns segundos.
Escolhi um short jeans rasgado, meias arrastão, uma blusa preta justa e minha velha camisa xadrez — aberta, jogada sobre os ombros como armadura. Finalizei com minhas botas surradas. Me senti pronta, quase como se estivesse indo enfrentar o mundo. Ou Trevor.
Desci, tomei um café apressado e fui até a varanda com a xícara ainda nas mãos. O silêncio da manhã era cortado apenas pelos sons tímidos da cidade despertando. Espiei a rua. Nada dele ainda.
Suspirei, animada. Hora de estrear meu Mustang.
Destranquei o portão da garagem e me aproximei do carro como quem cumprimenta um velho amigo. Girei a chave na ignição, o ronco do motor me arrepiou até a espinha. Era música. Eu sorria sozinha quando...
Buzina.
Assustada, pisei no freio com força. Trevor parava exatamente na saída da garagem, com aquele sorriso provocador colado no rosto.
— Eu sabia! — ele disse, baixando o vidro do carro. — Um conversível vermelho. Apostei comigo mesmo.
— Ai, me poupe! — revirei os olhos, mas não consegui esconder o sorriso. — Isso aqui é um Mustang, não um brinquedinho de shopping.
— Mas ainda vermelho. Eu tava certo. — Ele ergue as sobrancelhas, absurdamente satisfeito com a própria previsão. Como é irritantemente convencido.
— Quer tirar seu carro da minha frente ou tá pensando em passar o dia todo aí desfilando essa cara de ego inflado?
Ele riu, como se estivesse se divertindo com minha rabugice matinal.
— Ei, mocinha... — ele estreitou os olhos. — Você tem carteira, né?
— Faço dezesseis mês que vem — respondi com um sorrisinho cínico. — Mas já dirijo desde os quatorze. Meu pai era do tipo que achava o mundo mais seguro com uma filha armada... ou ao volante.
Ele franziu o cenho, mas não insistiu.
— E mesmo assim, vai sair pilotando essa máquina pela cidade?
— Preciso me acostumar com meu bebê, não é? — falei, alisando o volante com carinho teatral.
— Certo... — suspirou como quem se rende. — Mas me faz um favor: vai devagar. Nada de ultrapassagens dramáticas. Nem arrancadas de filme.
— Relaxa, Trevor. Eu sei o que estou fazendo. — Mas uma parte de mim gostou daquela preocupação estampada no rosto dele.
Ele recuou o carro lentamente, me dando espaço. Fiz o Mustang deslizar pela rua, me esforçando para parecer mais segura do que realmente estava.
No sinal seguinte, ele emparelhou comigo, abaixando o vidro e me observando.
— Você fica linda dirigindo essa coisa. Meio perigosa, meio rebelde. — sorriu com charme despreocupado.
— Para de me olhar como se eu fosse um pôster de oficina mecânica. — fingi irritação.
— Desculpa — disse, mas ainda sorrindo. — Só estou impressionado. Não imaginei que você fosse mesmo o tipo "máquina clássica".
— Eu sou cheia de surpresas. E você? Vai me mostrar o tal Dodge hoje ou era só papo de playboy?
Ele apontou para frente, com a cabeça.
— Me segue, garota Mustang. Você vai conhecer o santuário.
E acelerou suavemente, como se tivesse ensaiado aquele momento.
Eu fui atrás, o coração acelerado — e dessa vez, não era pelo carro.
O carro de Trevor segue à frente, cortando a estrada de terra com precisão, e eu o sigo, os pneus do Mustang desenhando nuvens secas no caminho. Reconheço a trilha da festa, mas então ele vira à esquerda, numa bifurcação oculta pelas árvores.
O caminho se estreita, e a vegetação parece engolir os dois carros. O ar é mais úmido ali, como se a floresta respirasse sozinha. Depois de alguns minutos, avisto algo entre as árvores. E o que vejo... não é nem de longe o que eu imaginava.
A casa.
Feita toda de madeira escura e janelas largas, cercada por vegetação densa, ela parece pertencer àquele lugar, como se tivesse nascido junto da floresta. Há uma quietude ao redor, como se até os pássaros respeitassem a existência dela.
Estaciono atrás do carro de Trevor, ainda absorvendo a cena. Ele desce e vem até mim com aquele sorriso de sempre, só que agora... há algo mais nos olhos dele. Um tipo de orgulho silencioso.
— E aí... gostou da toca do lobo? — diz com sarcasmo leve, percebendo minha expressão.
— É linda, Trevor. Eu achei que você fosse espalhafatoso, mas... isso aqui me surpreende.
— Eu não sou nenhum playboy — diz, abrindo a porta de entrada. — E minha família... não é como você imagina.
— Hum... isso tá ficando interessante. — Entro com ele.
A casa é ainda mais impressionante por dentro. O perfume amadeirado da estrutura se mistura ao cheiro de lareira apagada. Uma grande sala com estantes até o teto, recheadas de livros e peças de porcelana antiga. Um sofá caramelo com poltronas firmes e elegantes, abajures de vidro âmbar suavizam a luz. A escada sobe em curva, e há um corredor estreito à esquerda.
— Uau... — murmuro, tocando o encosto do sofá. — É incrível. Parece saída de um daqueles filmes antigos.
— Mérito da minha tia. Ela tem bom gosto demais. — Ele sorri, fechando a porta atrás de nós. — Ela cuida de tudo aqui.
— E seus pais...? — hesito, mas a pergunta escapa.
O sorriso dele vacila por um segundo. Há algo sombrio e solitário nos olhos dele que me desarma.
— Minha tia... e meu avô. São minha família. O resto... é história pra outro dia.
— Desculpa, eu não quis... — começo, mas ele corta gentilmente com um gesto.
— Quer ver o carro, não quer? — Ele muda de assunto. — Sabia que isso ia te deixar mais animada.
— Muito animada — respondo com um sorriso sincero.
Ele me estende a mão. E no momento em que meus dedos tocam os dele, sinto algo. Não é só um arrepio. É como se tivesse sido tocada por uma energia invisível. Como se a pele dele tivesse temperatura e frequência próprias. Ele também percebe. Seu olhar prende no meu por um segundo longo demais.
— Por aqui.
Passamos pela cozinha e seguimos até uma porta de madeira nos fundos. A garagem é ampla, bem iluminada, com cheiro de óleo e couro. Há uma moto encostada à esquerda, mas é o que está sob a capa preta que me faz prender a respiração.
Com cuidado, Trevor puxa a proteção, revelando a máquina.
Um Dodge Charger azul cobalto. Impecável. Selvagem.
— Meu Deus... — murmuro, me aproximando com reverência. Passo a mão pela lataria, como se fosse uma criatura viva.
— Meu avô me ajudou a montar. Comprei ele bem surrado. Tive que restaurar peça por peça, até o motor. Foi um projeto nosso.
O brilho nos olhos dele me comove. Aquilo significava algo muito maior do que apenas um carro.
— Ele é perfeito. — Me viro para Trevor. — Você já dirigiu?
— Ainda não. Sou apegado ao Royce. Esse aqui... — faz uma pausa, hesita. — Esse aqui carrega outra história.
— É do seu pai, né?
— Era. Mas deixou mais do que isso. Deixou um legado. — Seus olhos desviam dos meus.
Legado. A palavra vibra no ar como uma nota dissonante.
— Que tipo de legado?
Me arrependo assim que pergunto. Curiosidade é meu veneno.
Ele fecha os olhos brevemente, como se se preparasse para engolir um segredo.
— Nada. Coisas de família, só isso.
— Se quiser desabafar... estou aqui. — digo, um pouco mais suave.
— Ué, mas não era você quem vivia dizendo que a gente nem era amigo? — Seu olhar brilha com provocação, mas há algo mais ali... vulnerável.
— Você que começou com essa. — Sorrio, mordendo o lábio.
— Quer conhecer meu quarto?
O jeito como ele diz isso... me faz levantar a sobrancelha, desconfiada.
— Uau... direto assim? Que safado.
— Para com isso. — Ele ri, mas há algo de tenso em seu tom. — Só estou tentando te mostrar o Charger dos meus sonhos e minha estante de quadrinhos.
— Vai saber se esse não é o covil de um lobo faminto.
Ele engasga com a resposta, rindo enquanto passa a mão nos cabelos.
— E se for? Ainda quer subir?
Seu tom muda. A brincadeira vira desafio. O olhar se aprofunda. E pela primeira vez, fico sem palavras.
— Vamos logo — digo, disfarçando a inquietação. — Mas se fizer gracinha, eu te mato.
Ele ri baixinho, já subindo os degraus à frente.
Mas meu coração martela no peito como se soubesse de algo que eu ainda não entendo.
E talvez... a floresta também saiba.
Subimos as escadas de madeira clara, que rangem sob nossos passos como se guardassem memórias. No topo, um corredor ladeado por portas fechadas nos conduz até a terceira — a do quarto de Trevor. Ele abre com naturalidade, como se aquele gesto significasse algo mais do que um simples convite.
— Pode entrar. — Sua voz soa casual, mas carrega um leve nervosismo. Ou talvez seja só o meu.
Entro e paro por um segundo. O quarto é amplo, extremamente organizado. Muito mais do que eu esperava de alguém como ele. As paredes são revestidas por prateleiras que exibem livros, peças antigas e um globo celestial iluminado. O teto... é pintado como o universo. Estrelas, constelações e galáxias deslizam por ele em tons profundos de azul e púrpura. Uma varanda de portas duplas de vidro se abre para a floresta. A luz atravessa os galhos e projeta sombras dançantes no chão de madeira.
— Você é bem... organizado. Para um adolescente, isso é quase sobrenatural. — Provoco, cruzando os braços.
— Obrigado? — Trevor sorri de canto, meio ofendido e meio orgulhoso.
Caminho até a estante. Meus olhos percorrem os títulos. Clássicos. Muitos. Ecléticos. Antigos. Nada disso combina com a ideia que faço de Trevor Belmont.
— Você... lê?
Pronto. Mais uma daquelas perguntas que me fazem parecer uma completa idiota. Ótimo trabalho, Sophie.
— Leitura é meu jeito de silenciar a mente. — responde. Seu tom é leve, mas sua expressão é profunda.
— Hamlet, Orgulho e Preconceito, Drácula... O Vermelho e o Negro? Você é uma incógnita.
— Gosto de clássicos. Eles têm mais verdade do que muitos noticiários por aí.
— Posso... pegar um emprestado? — Pergunto com a mão suspensa diante de Drácula.
— Claro. Escolhe um.
Puxo o livro com cuidado, sentindo o cheiro antigo das páginas.
— Drácula. Vampiros me fascinam.
O rosto de Trevor muda sutilmente. Um músculo em sua mandíbula se contrai.
— Escolha... curiosa. — diz ele, com os olhos presos no livro em minhas mãos.
— Algum problema com isso?
— Vampiros são predadores. Parasitas. Romantizar isso sempre me pareceu... estranho.
Seu tom é mais denso. Frio, quase. Me viro, surpresa pela mudança repentina.
— Nossa, você realmente não gosta da ideia.
— É só uma opinião. — Ele se aproxima, pega o livro das minhas mãos e o folheia, como se buscasse algo que só ele pudesse ver. Depois, o devolve. — Fica com ele. Não vai me fazer falta.
— Tem certeza?
— Tenho. Já decorei cada página. — Seus olhos me atravessam por um segundo. — E você... vai entender algumas coisas quando terminar.
Não sei o que ele quis dizer com isso, mas por um instante... senti frio.
— E que tal irmos até aquela lanchonete? Chamar seus amigos? — Tento mudar o rumo da conversa, afastar aquela sensação.
— Eles devem estar no Mouth. Se quiser, podemos ir. — Sua expressão suaviza. — A decisão é sua.
— Vou chamar a Sarah. Ela vai adorar.
Trevor assente e pega as chaves. Ligo para Sarah que topa encontrar a gente.
...☆...
A lanchonete Mouth vibra em cores quentes e sons de risadas. Ao entrarmos, os garotos já estão em volta de uma mesa cheia de embalagens vazias e refrigerantes. Rubi é a primeira a notar nossa chegada. Seus olhos varrem meu corpo como uma lâmina afiada.
— Olha só, o Trevor com a misteriosa outra vez. — Sefe provoca, jogando um guardanapo em Trevor.
— Vai arrumar o que fazer, Sefe. — Trevor rosna, arrancando risos do grupo.
— Deixa o cara, palhaço. — Robin dá um tapa leve na cabeça do amigo.
— Isso é pura inveja. — diz Caio, ainda rindo.
— Sophie, o que achou da festa? — Vitor sorri para mim.
— Foi divertida. E inesperada. — retribuo o sorriso.
Me sento no único lugar disponível — ao lado de Rubi. O desconforto é instantâneo. Seu perfume forte me envolve como um aviso.
— Sophie, né? — Sua voz soa doce demais para ser sincera.
— Sim.
— E como virou tão íntima do Trevor, assim... tão de repente?
— Rubi, você sabe que posso ouvir tudo, né? — Trevor interrompe, sem paciência. O tom dele é afiado. Ela revira os olhos.
— Eu sei, Trevor. — responde com um sorriso venenoso. — Só queria entender o que ela tem de tão... especial.
— Eu não tenho nada de especial. — respondo, encarando-a com firmeza.
— Ah... mas você tem. Eu sinto isso. — murmura, quase como se não fosse para eu ouvir.
— Já chega, Rubi. — Trevor diz, firme.
Antes que a tensão aumente, uma jovem morena surge ao lado de Robin, o abraçando com carinho. É linda. Os traços delicados, os olhos vivos.
— Oi, meu amor. Demorou. — Ela beija Robin e olha ao redor. — E essa? — pergunta sem nenhum tato.
— Sophie. — respondo antes que alguém tente me ignorar.
— Luara. Namorada do Robin. — diz, limpando a mesa com agilidade.
— Terceira rodada de hambúrguer? — Provoca, olhando os restos.
— Precisamos de energia. É noite de lua cheia, lembra? — Caio diz, brincando. Mas o clima muda.
Sefe o cutuca sob a mesa. Trevor o lança um olhar rápido.
— O que tem a lua cheia? — pergunto, inocente.
— Nada demais. Só fazemos rondas na reserva. — responde Trevor, tenso.
— Foi mal, me esqueci. — diz Sefe, com um sorriso nervoso.
Eles estão mentindo. A forma como trocam olhares, a rapidez com que cortam o assunto... algo ali não bate.
Pouco depois, Sarah chega e Trevor arruma uma cadeira ao meu lado para ela. Rubi solta um suspiro exagerado.
— Mais uma estranha. — murmura ela.
— Relaxa, Rubi. — diz Vitor, baixinho. — Não precisa ser assim.
O ambiente pesa. Eu sorrio, falo pouco. Mas tudo está registrado na minha mente. Os cochichos. As palavras suspensas. As pausas longas.
O relógio marca quatro da tarde quando Trevor se levanta.
— Desculpem, meninas. A gente precisa ir.
— Mas ainda é cedo... — digo, desapontada.
— Temos compromisso na reserva. — Seu tom é firme, definitivo.
Ele se inclina e beija minha bochecha antes de se afastar. Um gesto simples. Mas meu coração salta como se fosse um segredo.
— Obrigado por hoje. E pelo livro. — murmuro.
— Até mais, Sophie. — diz ele, os olhos escuros e profundos como o céu pintado em seu quarto.
Eles saem.
E eu fico ali, com o livro em mãos... e a sensação inquietante de que todos ali sabem de algo que eu ainda não sei.
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Atualizado até capítulo 81
Comments
Sara Niziato
talvez lobo seja kkkk
2025-03-31
0
Rozineide Oliveira
autora estou amando mais falta as fotos pra conhecer os personagens espero que tenha 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼😍❤️
2023-09-25
4
Amanda
Uma vibe mais crepúsculo né, gostei
2022-10-24
1