Mãos atadas e pés descalços

-Samir, mas...

-Mas nada, Virgínia. Além da minha mãe ela é uma senhora, indefesa, idosa. Em qualquer país desse mundo agredir um idoso pode te colocar na cadeia.

-Samir, ela me chamou de vadia, me insultou.

-Virgínia, não me venha com mentiras, não me venha. Se você é uma garota mimada incapaz de ajudar a lavar uma louça para ajudar uma senhora, pelo menos assuma.

-Samir, eu vou descer agora mesmo e fazer aquela velha nojenta desmentir tudo.

-Chega! Cale-se! -Ouço a voz de Samir gritando como nunca havia ouvido- se você insultar, machucar ou mesmo irritar a minha mãe, quem vai responder é o seu pai, não vou permitir que você tire a paz da minha casa, não se esqueça, tenho homens de olho na sua família 24 horas por dia.

Eu desligo o telefone, perplexa. Acho que ainda não acordei e isso aqui é um pesadelo. O que houve com essas pessoas enquanto eu dormia? Sento na poltrona, sem muito o que fazer, baixo uns livros pelo celular, sempre gostei muito de ler. Me lembro da faculdade, resolvo pegar o contato na Internet e ligar para ver como está minha situação.

-Senhora Virgínia, como você já viajou próximo ao recesso, e vejo que já cumpriu os estágios obrigatórios e as aulas práticas, podemos fazer uma adaptação para que a senhora termine as disciplinas à distância e consiga se formar.

-Sério? -Falo empolgada, pelo menos terei algo para ocupar a mente, além de realizar o meu sonho de me formar como enfermeira.

-Sim, sério, só precisa regularizar os pagamentos e ter um bom computador com Internet- A atendente me diz sutilmente.

-Como assim, "regularizar"?

-Senhora Virgínia, aqui no sistema constam 8 parcelas em atraso, podemos tentar um acordo. A senhora deseja prosseguir?

Eu não acredito que meu pai estava sacrificando até os meus estudos pelo seu descontrole, mais outro baque para mim. Sequer conseguiria me formar no Brasil. O que seria da minha família se Samir não tivesse aparecido? Passaríamos fome daqui uns meses? Eu estudo na melhor faculdade do estado, a mensalidade é caríssima.

Fico pensativa, achei que havia encontrado uma solução para algo, uma distração para minha mente. Estudar sempre foi um dos meus maiores prazeres, e olha só mais uma frustração.

Penso, penso, penso numa solução. Samir é a única saída. Fico envergonhada, mas resolvo ligar para ele.

-Samir, preciso de algo.

-O que é dessa vez, Virgínia? -Ele me fala irritado- Se é uma das suas mentiras, nem precisa, não estou tendo um dia fácil aqui.

-Primeiro nunca menti pra você, e depois deixa pra lá, não vou aborrecer vossa excelência expert em contratos. Tchau.

- Espera Virgínia, não precisa desligar assim, fale o que quer.

Explico a Samir a situação, com o rosto queimando de vergonha, ele se compromete a regularizar as mensalidades do curso e prover tudo o que preciso para que eu consiga estudar daqui.

-Com uma condição, Virgínia- Ele diz.

-Qual?

- Que você respeite os meus pais, não quero mais saber de nenhum problema entre você e a minha mãe. E sim, se ela pedir ajuda com o serviço da casa, você deve ajuda-lá sem contestar. É isso que as noras fazem aqui, todas, e você também está morando nessa casa. Se esse casamento por contrato for descoberto caímos nós dois e as nossas famílias junto. É o que você quer? Então comporte-se como uma nora de verdade, entendido?

Respondo que sim, e desligo o telefone, indignada. Ele nem me ouve, acho que a feiticeira aqui é a mãe dele, não eu. Não sei que tipo de lavagem cerebral ela fez pra ele, mas ela está de parabéns, porquê funcionou. Já é fim de tarde quando resolvo descer, minha barriga está roncando.

-Sua comida está no forno, a mãe de Samir mandou que deixasse para você lá- Farym me diz desconfiada.

Pego o prato e sento para comer na cozinha. Quase cuspo, está horrível, cheio de cominho e pimenta.

-Não gostou, minha filha? Eu mesma fiz.

-Está ótimo, eu só perdi a fome.

-Ah, filha, se você soubesse quantas pessoas passam fome aqui em Casablanca comeria tudinho sem reclamar.

Fico envergonhada, mas recolho o prato e dispenso no lixo, Fatym parece me julgar com o olhar, mas é indigesto.

No dia seguinte desço, a mãe de Samir me passa uma lista de obrigações, uma rotina exaustiva de limpeza e atividades. Hoje não vou questionar, então sigo no primeiro dia, segundo, terceiro... Samir não me ligou mais desde então. Não sento com eles na mesa, me sinto excluída de tudo, também não saí de casa, não conheço nada, e nem ninguém. Aisha fala comigo muito pouco, as vezes me olha torto, ainda não consigo entender a personalidade dela. A minha comida segue sempre guardada no forno, separada pela própria mãe de Samir.

Uma noite subo para o meu quarto, exausta. Estou profundamente desanimada. Com a rotina dos serviços de casa e a quantidade imensa de matérias da faculdade que estou adiantando não estou tendo tempo para nada. Minhas unhas estão horríveis, minhas mãos estão secas, meu cabelo vive amarrado, não venho comendo quase nada, não suporto mais essa comida, aqui nem treino, acho que estou emagrecendo. Isso não é vida.

Pego o telefone e ligo para mamãe, desesperada, com as lágrimas descendo. Talvez ela tenha uma solução para isso. Talvez o papai possa vir me buscar, nós daremos um jeito com as dívidas, eu só queria a minha casa agora.

-Mamãe.

-Oi Virgínia, eu já ia te ligar.

-O que houve, mamãe?

-Ví, o seu pai passou mal e está internado.

-O que houve mãe?- Digo assustada, temerosa.

-Filha, ele teve um infarto, seu esposo ficou sabendo, diga a Samir que muito obrigado.

-Como assim, mãe?

-Samir soube do estado do seu pai e o transferiu para o melhor hospital do Brasil, com uma UTI aérea, diga a ele que muito obrigado. Seu pai ficará bem, ele só precisa descansar.

-Me dê notícias, mãe. Eu agradecerei ao Samir, pode deixar.

Estou preocupada com meu pai, mas tranquila em saber que ele está bem cuidado. Mas agora me sinto totalmente de mãos atadas, não posso irritar Samir me queixando sobre a sua mãe e nem posso contar com a ajuda do meu pai. Só me resta continuar como está, me sinto de mãos atadas e pés descalços.

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