Ele é meu...

A água descia com violência pela rocha, cortando o mundo em duas realidades — o que eu conhecia… e o que ainda me assombrava nos sonhos, fugi daquela presença, daqueles olhos cor de âmbar que me dominavam, o medo e a incerteza, mas a vontade e o desejo.

A cachoeira era um véu.

Um lugar que parecia me chamar há dias.

Ou talvez, vidas.

O som da água não abafava as vozes.

Nunca abafava.

Sussurros se misturavam ao som do vento, como se a própria natureza quisesse me dizer algo — ou tudo.

"Ela vai nos trair."

"Ou vai libertar todas nós."

"Você vai dormir ao lado de um lobo… ou acordar o mundo com fogo?"

Fechei os olhos.

A pele formigava.

Os olhos ardiam como se queimassem por dentro.

Havia algo errado.

Ou certo demais para ser compreendido.

Dei um passo.

A água gelada cortou meus pés como agulhas.

Outro passo.

O vestido encharcou.

A correnteza tentou me levar. Eu não lutei.

Precisava saber quem eu era.

O fogo… começou a queimar dentro de mim. Não era dor. Não era poder.

Era algo… primordial.

Senti o cheiro dele.

De Rhaziel... Como sabia seu nome? Ele era meu.

Mesmo sem vê-lo, eu o sentia como se estivesse impresso na minha alma.

Mas outro cheiro se impôs.

Podre. Antigo. Escuro.

Uma sombra.

Não humana.

Não viva.

Ela me observava.

As vozes aumentaram, gritando em línguas que nunca aprendi.

Dentro da minha mente. Dentro da minha carne.

"A marca arde."

"Ela está abrindo a porta."

Caí de joelhos dentro da água.

Fraca. Queimando. Tremendo.

O mundo ao redor girou.

E antes que a sombra me tocasse…

Antes que a escuridão me engolisse…

Ele apareceu.

Rhaziel.

Com olhos em brasas e alma em pedaços, ele me arrancou da água como se nada mais existisse.

Seu corpo me envolveu, me ancorou.

Seus braços pareciam conter o universo.

E naquele instante, por mais impossível que parecesse...

Eu soube.

Nós éramos um.

Um só destino.

Uma só chama.

Mas mesmo juntos... havia algo em mim que ele não podia controlar.

O fogo.

E ele… sentiu isso também.

— Quem… quem está ali? Posso sentir algo ruim — minha voz saiu fraca, engolida pelo rugido da água e pelas batidas descompassadas do meu coração.

Ele se aproximou, os olhos como duas brasas acesas sob a noite. O corpo ainda úmido da travessia, como se a natureza também o tivesse marcado.

Rhaziel.

— Preciso levar você para um lugar seguro. — ele disse com a voz baixa, firme, carregada de algo que eu ainda não conseguia nomear.

— Por quê?

Houve um silêncio. Um momento em que o mundo pareceu prender a respiração.

— Porque você é minha luna… — seus olhos buscaram os meus, mas havia mais ali, algo mais profundo, mais sombrio — …mas é mais do que isso, Elowen, não sou somente eu quem te procura, forças malignas te encontraram e se entrarem na sua mente é o nosso fim.

O nome saiu dos lábios dele como um segredo que ele guardava há séculos.

E eu… não senti medo.

Pelo contrário.

Senti paz.

Assenti, sem palavras, apenas caminhando ao lado dele, as pernas trêmulas, o corpo exausto pela onda de fogo que havia me invadido.

A cada passo, meu equilíbrio falhava.

Ele não disse nada.

Apenas parou.

E antes que eu pudesse protestar… me tomou nos braços.

Meus dedos tocaram o peito nu dele, firme, quente, pulsando.

O cheiro dele era… indescritível. Amadeirado, selvagem, como uma tempestade prestes a ruir.

E naquele instante, mesmo fraca, mesmo quebrada, mesmo sem saber quem eu era de verdade…

Eu me senti inteira.

Nos braços dele.

Ali era meu lugar.

Ele correu. Como o vento.

Como se nada mais importasse.

E pela primeira vez em anos, fechei os olhos e… confiei.

A aldeia apareceu diante dos meus olhos como um sussurro antigo, escondida entre árvores ancestrais e uma névoa que parecia viva. Eu ainda estava em seus braços, e mesmo fraca, meu corpo parecia desperto de um jeito novo — como se cada nervo soubesse que aquele lugar mudaria tudo.

Mas antes que chegássemos aos primeiros degraus da entrada, vieram os sons.

Sussurros. Gritos. Pensamentos que não eram meus.

"A bruxa chegou."

"Ele enlouqueceu."

"Isso vai nos destruir."

"É o fim da nossa linhagem."

"Ela não pode ser sua luna."

"Ela vai acabar com todos nós."

O som se tornava um zumbido alto na minha cabeça, como um milhão de vozes misturadas em raiva, medo e… inveja.

Olhei ao redor, e o mundo parecia girar em tons de hostilidade.

Mulheres me observavam com olhos afiados, algumas belas, fortes, vestidas com ornamentos prateados, símbolos de suas posições — algumas, eu soube sem saber como, haviam se preparado uma vida inteira para serem o que agora eu era.

"Por que ela?"

"Uma bruxa, de verdade?"

"Rhaziel era o mais forte… e entregou tudo por ela."

— “Ela vai nos amaldiçoar.”

Eu os ouvia.

Mesmo quando não diziam nada com a boca.

Mas ele… ele seguia como se o mundo não existisse.

Rhaziel subia a trilha de pedra com passos firmes, me carregando como se eu fosse sagrada.

A roupa rasgada, o peito arfando, os olhos fixos em algum ponto da montanha.

Indiferente aos olhares. Indiferente aos julgamentos.

Apenas nós dois.

E a fúria do destino.

Quando chegamos ao topo, ela estava lá.

Uma mulher de cabelos grisalhos, longos, adornada com cristais e folhas presas à túnica de linho escuro. Os olhos dela eram de um âmbar antigo, como se já tivessem visto todos os finais possíveis.

Ela deu um passo à frente e murmurou, com um sorriso que aquietou as vozes dentro de mim:

— Enfim, ela chegou.

Meus olhos se encheram d’água.

Ela sabia.

Antes mesmo de perguntar, antes mesmo de me explicar — ela já me conhecia.

A curandeira não teve medo. Não me olhou como aberração.

Ela me viu.

E sussurrou algo para Rhaziel que eu não entendi, mas que fez seus ombros relaxarem… só um pouco.

— Vamos, criança da lua. O tempo é curto, e você está prestes a despertar.

E ali, envolta por medo, julgamento e um poder que ainda não compreendia…

Eu senti, pela primeira vez, que era parte de algo.

De algo maior.