Sábado de manhã, às 7h em ponto, Isabella se levantou. Fez seus alongamentos matinais, tomou banho e se vestiu para tomar seu café. Naquele dia escolheu café preto e ovo mexido. Depois de comer, lavar a louça e guardar tudo, ligou a TV enquanto calçava os sapatos e viu algumas notícias do país de do mundo.
Pegou a bolsa, conferiu se o fone de ouvido, os óculos escuros, a carteira e o livro estavam lá dentro. Pegou as chaves do carro e desceu de escadas os 5 andares até chegar à garagem. Tomou essa decisão, pois precisava chegar em boas condições à terapia que teria dali 20 minutos. Se chegasse com crise de ansiedade, o tempo todo da sessão seria dedicado à sua recuperação e não ao tratamento da causa.
Na sua playlist tocou "Whuthering Highs" no meio do caminho, mas ela se distraiu com o trânsito e acabou deixando a música passar sem "aproveitar" a canção totalmente, o que a fez voltar a música do início. Quando chegou ao estacionamento da clínica, esperou a música acabar para sair do carro e dar continuidade à programação do sábado.
Ela entrou na clínica e pegou uma ficha para fazer o cadastro no pré-atendimento. Enquanto esperava, pegou o livro e começou a ler, mas não demorou muito seu número foi chamado no painel. Depois de fazer o cadastro, foi direcionada à sala de espera da psicóloga.
Menos de 5 minutos de espera e já estava sentada no sofá de frente para Stella Figueiredo, sua psicóloga há 3 anos. Isabella era diagnosticada desde criança com transtorno do espectro autista suporte 1. Quando foi adotada por Leila e Leonardo eles já sabiam do diagnóstico e ofereceram a Isabella todo o suporte necessário para que desenvolvesse todas as suas potencialidades. Inclusive ela estudou em uma escola referência em educação inclusiva a vida inteira.
Quem não convivia com Isabella, jamais imaginaria que tivesse autismo, pois morava sozinha, trabalhava e era totalmente independente. Tanto ela quanto a família, sabiam que isso só foi possível porque ela teve um acompanhamento de alto nível.
Mas algumas características do autismo ainda perseveravam, como a necessidade de se estabelecer rotinas, a dificuldade de mudar esses padrões e a aversão a toques físicos de pessoas que não fazem parte do seu cotidiano. A ansiedade também se fazia presente em sua vida, em parte devido a essa dificuldade de lidar com alterações na rotina. O episódio no elevador na sexta-feira foi um exemplo disso.
Stella: Então, Isabella. Faz tempo que você não aparece. Algo em especial te traz aqui hoje? - Perguntou olhando para Isabella por cima dos óculos.
Isabella: Ah, Stella... Eu achava que estava tudo bem. Mas as crises voltaram. Ontem eu até fui rude com uma pessoa que tentou me ajudar.
Stella: Hum... me conte o que aconteceu.
Isabella: Eu havia terminado o expediente da manhã e peguei o elevador para descer e ir almoçar, mas haviam apertado o elevador em 2 andares... aí tudo desandou. Entraram 2 pessoas em cada parada e eu comecei a me sentir sufocada, com falta de ar. Eu gosto de descer e subir sozinha no elevador. Quando chegamos ao térreo eu saí empurrando todo mundo e corri para respirar do lado de fora do edifício. Foi quando uma senhora se aproximou e tocou meu ombro perguntando se eu estava bem. Eu gritei com ela, dizendo para não me tocar. Estou me sentindo um derrotada por isso!
Stella: Bom, Isabella. Você sabe que sua condição pode lhe causar certos desconfortos em situações que para outras pessoas pareceria comum. Ontem foi o único episódio?
Isabella: Não, na semana passada eu tive um parecido no banheiro da academia e outro no mês passado no shopping.
Stella: Eu acho que essas crises não estão acontecendo somente por causa de fuga dos padrões da rotina, até porque havíamos melhorado muito em relação a isso. Isabella, você está tomando seu remédio?
Isabella arregalou os olhos, sabia que essa pergunta poderia surgir, mas contava com a sorte para não ter que menção às medicações e acabar admitindo que parou por conta própria o tratamento com os ansiolíticos.
Isabella: Não...
Stella: Há quanto tempo você está sem tomar sua medicação e como foi que você parou? Fez o desmame sob orientação médica ou fez por conta própria?
Isabella: Eu parei por conta própria há pouco mais de um mês. Não fiz o desmame. - Admitiu envergonhada.
Stella: Aí está um bom motivo para as crises terem retornado. Quero que você volte com a Dra. Kátia Fernandes para que ela faça uma nova avaliação. Se ela passar remédios, você terá que tomar.
Isabella: Mas eu sinto que tomar remédios tiram de mim o controle da minha vida! Eu já tomei tantos a vida inteira!
Stella: Você já parou para pensar que é totalmente o contrário? Você quer ter mais controle sobre suas reações e incômodos, por isso decide tomar os remédios.
Isabella: Nunca olhei por este lado.
Stella: Então passe a olhar. Tome, leve este relatório para a Dra. Kátia. Vamos deixar a sessão da semana que vem marcada? Eu quero acompanhar você semanalmente até vermos o efeito dos medicamentos em você.
Isabella: Tudo bem.
Stella: Prontinho, já agendei aqui. Espero você na semana que vem.
Isabella: Combinado.
Isabella saiu de lá e já registrou no celular que segunda-feira precisaria entrar em contato com o hospital São Leopoldo para marcar consulta com a Dra. Kátia. Ela até achou bom, pois poderia dar uma passada na ala pediátrica para fazer umas últimas observações para o projeto da obra que começaria lá.
Ela entrou em seu carro e rumou para a casa dos pais onde passaria o dia. Chegando lá, foi recebida pela mãe que só faltou sufocá-la de tanto abraço e beijo.
Leila: Filha! Faz tanto tempo que você não aparece!
Isabella: Mamãe, nós nos vimos semana passada no aniversário da Giulia.
Leila: Ah, foi... Mas para mim sempre vai ser muito tempo uma semana!
Leonardo: Bom dia, filha. Como está? Parece murchinha.
Isabella: Ah... as crises voltaram. Ontem mesmo eu tive uma. - Disse desanimada se jogando no sofá.
Leila e Leonardo se olharam ao ouvir a revelação da filha. Um dos motivos pelos quais eles sempre foram relutantes dela sair de casa e ir morar sozinha era ter que passar pelas crises sem apoio deles.
Leonardo: Isa, você não quer vir passar um tempo conosco?
Leila: É isso filha, seu quarto continua aqui nós podemos... - foi interrompida.
Isabella: Não! Vocês sabem que morar sozinha é uma conquista muito grande pra mim! Voltar pra cá seria um retrocesso!
Leonardo: Mas não precisa voltar de vez, filha. Estamos sugerindo que você passe uma temporada aqui apenas. Eu e sua mãe podemos te dar suporte igual fazíamos quando você era adolescente.
Leila: Sim, Isa. Você vai continuar com sua liberdade. Nós só estaríamos mais perto para te ajudar quando precisasse.
Isabella ficou olhando para os pais e pensando na proposta. Ela realmente sentia falta de um acolhimento familiar nos momentos de crise, talvez não fosse uma má ideia passar um tempo com os pais.
Isabella: Semana que vem vou agendar uma consulta com a Dra. Kátia, aí dependendo do que ela falar, nós voltamos a conversar sobre isso. Tudo bem?
Leila: Claro, filha! Agora vamos, tem um almoço especial esperando por você!
Leonardo: Isso mesmo! Eu fiz aquela picanha invertida que você adora!
Isabella: Misericórdia! Hoje eu vou me esbaldar! Ai, minha academia. - E saiu em direção à área externa da casa abraçada aos pais.
O almoço foi bem agradável, Leila e Leonardo não voltaram a tocar no assunto de Isabella passar uma temporada com eles. Eles sabiam que pressionar não ajudaria.
Quando já estava chegando perto das 18h, Isabella se despediu. Estava leve por ter passado aquele dia com os pais, pessoas a quem tinha muita gratidão por terem a escolhido no meio de tantas outras crianças daquele abrigo.
Ela se lembrava como se ainda fosse hoje quando eles apareceram lá pela primeira vez e ela os levou para conhecer seu quarto, suas bonecas e a biblioteca. Os pais construíram uma biblioteca para ela na casa depois da adoção e até hoje o cômodo guardava a maior parte do seu acervo particular. Se havia uma coisa que era a paixão de Isabella, eram os livros.
Antes de ir embora, ela passou na biblioteca para dar uma olhadinha. Ficou admirando os exemplares dos livros infantis, os primeiros que ganhou e que deram início à coleção. Tudo perfeitamente organizado por gênero e data de aquisição. Organização fazia parte dos seus comportamentos repetitivos e ela conseguia colocar tudo isso para fora na sua biblioteca pessoal.
Em seu apartamento, tinha um escritório em que duas paredes eram dedicadas aos livros. Uma parte deles eram de arquitetura, que vivia sendo atualizada. O restante tinha livros de antropologia, sociologia, ciência política, história e geografia. Ela também dedicava uma extensa parte para seus romances clichês, dos quais não abria mão.
Depois de matar a saudade dos seus livros, despediu-se dos pais e foi para casa. Sábado era dia de comer pizza e assistir a algum dorama. E era nos doramas e nos romances dos livros que ela se perdia e se realizava pessoalmente. Isabella já havia se apaixonado várias vezes na vida, mas na primeira vez que tomou coragem para contar, foi ridicularizada. Isso a traumatizou e, desde então nunca mais deu espaço para o amor entrar em sua vida.
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Atualizado até capítulo 117
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