Agente na minha cola

Um mês acabou se passando num piscar, desde o início desse pesadelo.

Não houve explicação para o que iniciou num acidente de carros e se espalhou por uma cidade inteira, talvez, além dela.

Não saberíamos, pois as conexões de rede foram cortadas, propositalmente ou não. Estamos isolados a mercê da sorte. Ou desses monstros.

A fragilidade de uma perda costuma ser perceptível no olhar, pois os olhos refletem uma alma. E os meus refletem sua ausência.

— Eu tô tentando, papai — seu túmulo vazio é o que me sobrou, um memorial para visita-lo. — Ainda não desisti de saber o que fizeram com seu corpo... Eu vou saber, nem que eu cave até o inferno.

Uma lágrima foge sem o meu controle, pingando sob o punho fechado nos meus joelhos.

— Saber o que? — como um ladrão, Suzan se aproxima de mim seguida por uma dupla de meninas, também sobreviventes da cidade.

— Nada suficientemente importante para estragar sua pele — digo, pondo-me de pé sem acidez na voz — O que quer, Suzan? Duvido que cemitérios são charmosos.

Quando ela abriu a boca para responder, um pequeno alvoroço na entrada do edifício prisional começou.

— Outra vez isso... — uma das meninas sussurra.

— Quem não ficaria assim? É filho deles! — Suzan retruca, cruzando os braços.

— Quem são? — questiono vendo semelhança daquele casal com alguém.

— Os pais do Augusto. Eles foram resgatados vivos de um supermercado. Desde aquele dia que o moleque surtou, nunca mais apareceu uma sequer notícia dele — diz a segunda menina. — Levaram ele para a ala de contenção e nunca mais voltou.

— T-tem gente por aí falando que ele tá morto!

— Claro. É sensato — Suzan completa — Se ele virou um daqueles monstros, deve ser morto mesmo...

Dizendo isso, as três se retiram afundando numa conversa trivial que não chega aos meus ouvidos. Augusto foi infectado, mas se ele não estiver morto, está preso em algum lugar.

Na ala de contenção.

Seguindo tal raciocínio, saio do cemitério improvisado e sigo para dentro do edifício.

As costelas quebradas ainda doem bastante, correr não é uma opção muito boa. Opto pelo elevador, que por sorte ainda funciona graças aos geradores de energia.

Antes das portas se fecharem, uma minúscula mão aparece travando o fechamento.

— Oi! — Emma me sorri largamente — Já posso te abraçar?

— Ai, ai, ai! — replico com as mãos na cintura.

— Já sei, já sei! — ela fala abanando as mãos.

O silêncio decai sobre nós enquanto lentamente viajamos andares acima sem mover os pés. Minha mente segue vagando por onde preciso ir até achar respostas que nos recusam a dar.

No entanto, de repente a locomoção pára e as luzes se apagam.

— Merda, tinha que ser — resmunguei inquieta aperto o botão de aviso, pra indicar que tem pessoas no elevador.

Emma abriria a boca para falar, no entanto, duas vozes abafam a sua vindas do lado de fora do elevador um pouco acima de nós.

— ... aqueles dois alvoroçaram novamente na entrada do pátio — um deles fala — Deveriam aceitar que o filho morreu e esquecerem isso!

— Sabe como são pais, nunca aceitam que perderam algo tão precioso. Não é, Martin? — há insinuação maliciosa na sua voz, quase como um deboche.

— Dane-se você e eles... fizeram o mesmo com vários outros. O espécime 21 é um exemplo vivo.

— Tem razão, você não é o único pai a perder uma filha. Mas... é melhor deixarmos esse assunto de lado ou alguém pode ouvir. Não gostaríamos de causar mortes desnecessárias, não é?

Meu sangue gela notando que isso são assuntos confidenciais. Emma me olha confusa prestes a questionar, porém minha mão desce tapando sua boca.

— Está com medo por que os espécimes estão andando por aí? — tal Martin fala rindo — Fique tranquilo, eles não estão na nossa cola.

— O atleta desaparecido já chamou atenção demais. Torça para não descobrirem os corpos fora do cemitério.

O que? Não tem nenhum corpo enterrado no campo de areia?

— Cadê esse elevador?! — Martin fala alterado.

Nesse momento o elevador treme, causando um leve abalo que fez Emma cair buscando apoio em mim. Esgueiro-me rapidamente puxando a menina em direção a porta, que de repente se abre uma fresta grande o bastante para alguém olhar dentro.

E foi o que aconteceu.

Pelo fato do elevador não estar na posição correta, porta com porta, á um vão abaixo ao qual podemos nos manter escondidas. O homem ali tenta forçar mais a porta, balançando seu crachá que dá visibilidade ao nome. Esse é o Martin.

— Saí daí antes que isso caía e arranque sua  cabeça — o outro fala — Vamos de escada, já estamos atrasados.

O barulho de passos apressados vai se afastando o bastante para aliviar nossa tensão. Nisso, o elevador volta a ligar tomando sua posição correta, as portas dessa vez se abrem completamente.

— Sanna... — Emma me encara.

— Shhh... você não ouviu nada, tudo bem? — digo sorrindo afagando sua cabeça — Volte para o quarto.

— M-mas e você?!

— Não se preocupe, logo vou deitar também — digo pondo o pé na porta pra que não se feche — Confia em mim, tá bom?

— T-tá... — ela suspira arregalando os olhos — S-Sanna!

Antes de responder, sou puxada para fora do elevador e presa de cara na parede. Emma iria sair, mas foi lenta demais para a velocidade das portas.

Uma mão prende as minhas nas costas, enquanto sinto uma perna atravessar as minhas e afasta-las. Logo, a segunda mão começa a me revistar.

— Tá procurando o que, pervertido?!

— Escutas — me espanto ouvindo sua voz, sendo solta em seguida — Gravou alguma coisa?

— Só na minha cabeça. Vai tirar meu cérebro também, igual fizeram com o corpo do meu pai? — questiono, evitando me virar e encarar seus olhos mentirosos.

— Se for preciso — o agente fala, segurando meu ombro e me virando em sua direção. Fico imóvel ali, entre ele e a parede aguardando uma resposta que nunca chega.

— Se sabia, por que me levou lá? Foi divertido me ver cavando feito uma condenada para achar um túmulo vazio?

— Se sentiria melhor se eu dissesse sim? — fico em silêncio — Naquela hora eu sabia tanto quanto você — ele diz soltando meu ombro, mas sem se afastar.

— Não acredito em você...

— Não espero que acredite.

— Me faça acreditar então — seus olhos se arregalam ligeiramente — Augusto, onde ele está?

— Eu não...

— Sim, você sabe. Me leve até ele, se quer ter minha confiança — afirmo, endireitando minha postura para parecer o mais confiante possível.

— Sua confiança não me serve de nada.

— Deve ter alguma coisa, duvido que uma pessoa como você me levaria ao túmulo de um morto por pena — rebato, vendo sua boca se abrir e fechar como a de um peixe — Sei que fizeram algo com o corpo do meu pai, e com Augusto também. Aquele tal de Martin...

— Martin?! — ele me pressiona na parede outra vez — O que ouviu dele?

— Uma informação por outra, agente — retruquei — Vai ser pior se uma civil estiver andando por aí... Sozinha fuçando nas coisas que não deveria.

— Tem razão... — meu queixo cai.

Eu consegui dobrar ele? Não creio!

— É por isso que não vai andar por aí — ouço um click nos meus pulsos.

Ah, não...

— VOCÊ NÃO PODE ME ALGEMAR ASSIM! — berro tentando me soltar.

— Agora posso — ele se abaixa me erguendo pelas pernas e me jogando no ombro como um saco de batatas — Agressão a agente federal do governo é um crime muito grave.

— Eu assumidamente te odeio!

— Idém.

Invés de optar pelo elevador, o agente segue pelas escadas. Humilhada demais para questionar da minha posição de saco de batatas, apenas balanço pendurada em silêncio.

— O que estava fazendo no elevador? — ele pergunta.

— Virou Maria fi fi agora?

— Não precisa falar agora. Vamos ter bastante tempo para conversar.

— Por que não vamos de elevador? — pergunto — Eu sei que não sou leve assim.

— E correr o risco de você falar demais? Nem pensar.

Ele acha que tem escutas no elevador?

— Então... Se eu falar que ouvi dois cientistas conversando sobre espécimes e roubo de corp...

— Calada! — fala parando de uma vez. Por estar pendurada me balançando, a parada repentina acertou minhas costelas.

—AI! ORDINÁRIO CEFO FILHO DE UMA PU...

— Foi sem querer, eu juro... talvez se ficar calada isso não aconteça de novo.

Maldito desgraçado vagabundo ordinário!

Concentrada demais na dor esqueço até por onde estamos indo. Respiro o mais lento possível para não chatear mais o lugar quebrado, até que então ele para e me joga dos ombros para baixo.

Mas antes de cair, ele me segura no colo.

— Sanna! — reviro os olhos ao ouvir a voz de Jacob.

— O que fez com ela?! — ele fala com raiva, marchando em nossa direção.

— Que dramático — o agente suspira me jogando para os braços do meu ex, que prontamente me segura.

— Desculpa, te machuquei? — Jacob pergunta preocupado.

— É melhor leva-la daqui — o agente fala se virando para ir embora.

— Espera! E isso aqui?! — ergo os pulsos algemados.

— Sem devoluções — meu queixo caí.

Por impulso chuto suas costas o mais forte que posso, o fazendo cambalear e quase cair no chão.

Lentamente ele se endireita se virando para nós. Sua fúria assassina se reflete no olhar que me dá pelo canto de olho.

Devolvo uma língua, e Jacob começa a se retirar embora me levando.

De volta na enfermaria, sou posta na minha maca.

Rose que estava de repouso na maca do Jacob, salta vindo até mim com preocupação em sua face.

— No que ela se meteu dessa vez?!

— Qual é, eu tô bem! — gemo sentindo contrações na cintura subindo até as costelas.

— Céus... Chame a enfermeira! — afobado, Jacob não espera e sai correndo da sala.

— Deixa eu ver isso... — lentamente Rose ergue minha camisa e arfa ao ver minha pele exposta.

— O que foi? Descobriu agora que fiz tatuagem?

— Não, quer dizer, sim! Mas não é isso, está bem feio... — ela vai até o criado mudo de ferro que está entre  a minha cama e a de Emma – que por sinal, segue vazia – e abre uma gaveta tirando um espelho sujo de dentro.

— Credo... — resmungo vendo o lugar em questão ficando roxo. E cada vez mais a dor aumenta. — Droga, ta bem feio mesmo, e doloroso.

— Ah, não! CADÊ O JACOB QUE NÃO CHEGA?! — ela não ficou assim nem quando perdeu sua gravidez... Será que realmente foi...

A porta se abre de repente e a ajuda chega.

Durante os cuidados, pouco me resta de energia, apenas o bastante para ver Emma correndo aos prantos em minha direção.

..........

Um frio suave acerta minha pele, antes de abrir os olhos e notar que não há mais luz aqui além da que vem das janelas de vidro abertas. Sinto um massagear suave na minha cintura e uma pressão quente do meu lado esquerdo. Reconheço seu toque...

— Você costumava gostar disso quando estava nervosa... — sussurrando, Jacob levanta a cabeça para me encarar com seus olhos grogues de sono, levando todo o calor junto — Eu lembro bem que aqui é uma parte sensível...Mas dessa vez, não tem arrepios...

— Porque dessa vez, não tem amor como naquela época — respondi, tirando sua mão de mim.

— Eu ficaria feliz se tivesse qualquer tipo de amor... — a tristeza em sua voz é notória, porém seu sorriso angelical se abre confortante — Eu vou... Buscar mais gelo.

— Ele não tá lá, Jacob — ele para, me olhando com expectativa — Cavamos o túmulo... e cavamos... mas meu pai não estava lá. Levaram o seu corpo — minha voz treme enquanto uma lágrima fugitiva escapa de mim.

— Vamos acha-lo — o olho espantada — Elder era como um pai para mim, não posso deixar que a única pessoa que ele amava mais que waffles sofra. Ainda mais quando eu também amo essa pessoa...

Meu coração erra uma batida por um momento, como o de uma adolescente apaixonada. Fico por segundos ali, hipnotizada por sua sinceridade tão carregada de emoção, tão profunda quanto no dia que nos apaixonamos.

— Não precisa fazer isso — respondi saindo do transe, quebrando contato visual. Ouço apenas sua suave risada antes de um toque delicado e quente acertar minha testa.

Um beijo.

— Pense que estou fazendo por mim também. Ao menos poderei ter a chance de falar o meu lado da história — ele diz, finalmente se indo da sala, sem aguardar a resposta.

Suspiro olhando o teto escuro.

Se não tivesse feito aquilo... Talvez estivéssemos noivos ainda nesse fim de mundo.

— Que nem tá longe de chegar...

Mexo-me, vendo que o roxo da costela já não está tão inchado, mas o jeans está apertando. Olho ao redor, vendo que as camas dos lados estão ocupadas por Emma e Rose. Ambas não despertaram.

Devido as algemas ainda é difícil retirar as calças, mas sem plateia é melhor. Com esforço, retiro as calças, logo me movendo para tirar a camisa.

— Ai que droga — resmungo puxando o tecido por entre os braços, mas como vai sair se as merdas das algemas não deixam?

— Ótimo... Não podia ficar pior.

— Na verdade, pode — subitamente abaixo a camisa rápido demais, somente pra encontrar o agente.

— Tá me perseguindo agora, encosto ruim?

— Na verdade... — ele balança a chave entre os dedos. De repente arrumo minha postura esticando minhas mãos em sua direção — Qual a palavrinha mágica?

— Vai pro inferno.

— Errou — diz se virando de costas.

— Por favor, por favor! — digo me jogando em suas costas, mas recuando o mais rápido de posso ao sentir uma dor estridente nos ossos.

— Já que pediu com jeitinho — a vontade de soca-lo é grande, mas a de aproveitar a liberdade é maior.

Outra vez tento retirar a camisa, mas só ao mexer dos braços meus dentes batem uns nos outros, de dor.

— Fica parada — meu corpo congela na hora.

Seus dedos ágeis nem encostam na minha pele, ao levantar minha camisa retirando primeiro o espaçamento que fica no pescoço.

Sem reação encaro suas feições tão próximas a mim, que poderiam encostar no meu rosto. Depois de retirada uma parte, ele simplesmente desliza o pano pelos meus braços sem precisar ergue-los, evitando assim maior dor.

— Que tal um obrigado? — seu hálito quente acerta meu ouvido, causando um impulso imediato de me recolher um pouco.

— Tô assim por sua causa — falo virando de lado para encara-lo, e por estar perto demais quase bato meu nariz no seu.

Seus olhos, no entanto, vidram nos meus sem qualquer emoção. Apenas inertes atravessando minha alma.

— Faça da sua boca um túmulo vazio, igual ao do seu pai — suas palavras insensíveis nem sequer me abalam, pois, seu hálito quente e tom de voz baixo me leva a outro tipo de atenção.

Se não fosse tão babaca... seria muito mais atraente.

— Quase me deu vontade de te beijar — falo, o espantando brevemente — Se você não fosse um desgraçado, talvez eu cairia aos seus pés só por falar desse jeito comigo. Urr, que tensão sexual.

Pegando minha camisa de volta, recuo para a cama me deitando com mais liberdade agora.

— Estúpida — ele fala se afastando.

— Infeliz ordinário — retruco puxando o lençol com o pé, para me cobrir — E um tarado por sinal!- ele para, seus ombros tremendo — Aposto que tava me stalkeando esse tempo todo!

— Você é louca... — resmunga saindo o mais rápido possível dali.

Se isso for verdade mesmo... Agora como eu vou investigar essas pessoas até achar o corpo do meu pai com esse maluco nas minhas costas?

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!