Por um gesto de despedida

O Apocalipse ainda nem chegou, mas os humanos são ansiosos, adiantaram o processo.

Isolados por uma muralha de concreto, ficamos "ilhados" dentro das grades de um presídio abandonado. Não vemos o mundo lá fora, e o mundo não nos vê. Assim que estacionamos a visão do fim é explícita no rosto de todos.

Tristeza, desesperança, medo.

— Deixa comigo — ao fazer menção de levantar-me, o agente que me sustenta ergue-me descendo com cuidado da carroceria — Vamos levá-los à enfermaria.

— E o meu pai? — nervosa, tento esticar-me por cima do seu ombro, para olhá-lo uma última vez. Mas o agente começa a se afastar.

— Não há nada que possamos fazer por ele.

— Não foi isso que eu quis dizer! Me solta, tenho que preparar um enterro descente para o meu pai!

— Todos que perderam alguém aqui querem voltar na cidade e dar um enterro descente às famílias. Não é a única, não seja egoísta! — a sua voz se altera, inflamando mais os meus sentimentos.

— Dane-se CADA UM DELES, EU SÓ QUERO O MEU PAI! — num movimento de fúria, avancalho o meu cotovelo no seu queixo fazendo-o com que me solte, para encobrir a dor.

Não pensando nas consequências, bato de costas no chão, sentindo os ossos estalarem mais.

A prepotência do destino é tão grande, que as surpresas negativas não param de chegar.

Num grasnar alto e sibilo rouco, as atenções se voltam para o segundo carro, de onde os meus colegas saltam aterrorizados. Num movimento súbito, Augusto salta do carro cuspindo sangue no chão de terra. Vejo as suas veias saltarem pelo rosto e os seus músculos se contraírem. Ver de tão perto é surreal demais para descrever.

Augusto está infectado.

A menina que resgatei corre na minha direção ao ver-me, chamando atenção do Augusto. O agente especial nota, e saca a sua arma apontando para o doente.

— Não atira nele, é meu amigo! — me joguei do chão, agarrando a sua perna causando-lhe desequilíbrio.

Os civis apavorados começam a gritar descontrolados.

A pequena menina salta me abraçando e nisso rolo por cima do seu corpo impedindo que Augusto nos alcance.

Os outros agentes rapidamente tratam de conter o rapaz. Ferdinand e Jacob ajudam-nos a ficar de pé e sair de perto da confusão.

— Por que parece... Que os problemas te perseguem? — loira e minúscula, mas tão esperta.

Antes de ouvir a sua resposta, uma vertigem me acerta em cheio, minha cabeça gira e o desfalque acomete a minha mente. Os olhos se forçam a ficar abertos, mas sem sucesso, sucumbindo a escuridão eminente.

(....)

O teto branco, cheiro de soro e paredes de concreto dão a entender um hospital em decadência, mas é apenas uma enfermaria improvisada.

Percebo ao bater as pálpebras, o lado esquerdo da cama fios claros espalham-se nos lençóis, seguido por uma respiração lenta e infantil.

Do outro lado, um calor deitado sobre a mão e um cheiro de amaciante se fazem presente, recorrendo um calor familiar. Jacob.

Sentindo minha movimentação, ele é o primeiro a despertar.

— Desculpa, eu babei na sua mão — que romântico — Como está se sentindo? Conseguiu descansar alguma coisa?

— Fui atropelada e ainda deram ré pra garantir — gemendo em resposta, tento me sentar sem acordar a loira — Nem sei o nome dela...

— É Emma —Jacob diz, se endireitando na cadeira — Nós conversamos um pouco enquanto você dormia...

— Emma... Certo. E por quantas horas eu apaguei?

— Por exatas... — ele olha o relógio na parede acima da porta — Cinquenta e duas horas.

— O QUÊ?! DOIS DIAS E QUATRO HORAS?! — numa exaltação de voz sinto as minhas costelas reclamarem.

— Vai devagar! — ele repreende, pegando um antibiótico que estava sobre a mesa ao lado — É pra dor.

A seco, engulo.

— Mas, o e o meu pai? — o seu olhar se espanta — Ele... Ele já...

— Sim, o velório foi ontem à tarde.

Um silêncio. Jacob pega Emma no colo e a coloca sobre uma maca vazia do outro lado da sala, cobrindo-a com um lençol fino.

— Eu preciso ir vê‐lo — afirmei num sussurro, buscando me levantar antes de um baque vindo da entrada causar assombro momentâneo.

— Você! — congelei como criança ouvindo a bronca de um pai. Mas que pai?

— Não ouse respirar mais um centímetro — despido da sua forma militar, mal causava intimidação, apesar dos 15 metros de altura — Para cama, já!

Como um cão adestrado, Jacob obedece, deitando na maca ao meu lado, demonstrando o seu descontentamento na cara.

— Só porque é o "marcha soldado cabeça de papel", não quer dizer que tem autoridade aqui — eu disse já ficando de pé.

— Eu sou um agente do FBI.

— Sério? Dane-se — cagando e andando, me afasto do leito doentio, equilibrando-me como um cervo recém-nascido.

— Eu te salvei.

— Muito obrigada!?

— Sanna, seu pai não queria...

— Calado, Jacob! — por pouco a voz não sai num grito.

— Qual é, o cara já tá morto! — meus pés congelam no lugar — Metade da cidade tá morta com mais gente sofrendo pela perda de um irmão ou filho. E mesmo assim essas pessoas estão tentando se MANTEREM VIVAS! E você aí, querendo ter complicações para acabar com os recursos do único hospital sem monstros!

— Algo mais? Um discurso de culpa a mais, Jacob? — e de pura teimosia, o latejar das costelas não impedia os meus passos.

A poucas pessoas dormindo nas macas, presumindo que a maioria está vazia desde o fechamento desse edifício prisional.

Ou... alguns pacientes já não vivem.

Os segundos parecem horas, antes de alcançar a porta, que por azar do destino está a mais de dois passos de distância da última maca. Olho para o militar.

— Não.

— Por favor?

— Não, não, não! — nega freneticamente.

— Então se eu pegar uma bactéria ao arrastar-me pelo chão, perder uma perna ou um rim, ter infecção e morrer, espero que a sua consciência não pese por não ajudar uma pobre órfã a dizer um último adeus a seu pai — ele me olha boquiaberto — Que nem é pai de sangue... e TAMBÉM...

— TÁ! — ele berra inconformado — Chega de drama, eu ajudo!

Num sorriso cínico comemoro, ouvindo Jacob rir como quem dizia: Não acredito que o trouxa caiu.

— Depois disso, você só sai desse hospital quando sarar até a unha quebrada!

— Mas, unha não sa... — ele cerra os olhos — Parei, parei!

A sorte finalmente me favoreceu, onde não havia sequer um fantasma pelos corredores, para ver tão cena constrangedora.

— Você pesa.

— E você fede.

Nas costas de um brucutu para fora do prédio.

A frieza da noite é reconfortante o bastante para retirar todo o cheiro de antisséptico da alma. Aliviada, observo o céu estrelado que seja imutável, mesmo com toda a desgraça acontecendo nesta terra.

O vento sopra suavemente a sua melodia noturna, vendo tal alma aflita ser carregado até o túmulo do homem que por coração bondoso, salvo-a de um destino cruel.

Com delicadeza, ele baixa-me no solo arenoso do antigo campo de terra, antes usado para esportes dos presos, mas agora, usado como cemitério. O túmulo ainda está mexido, onde sua terra distingue-se da outra. Numa lápide de madeira, o nome Elder Brando Xavier destaca-se pintado de tinta branca mal feita.

— Prometo arrumar lápide para você, papai... — aguardo, esperando que meu sussurro tenha resposta numa breve ilusão fantasiosa.

Nada acontece.

— Ei... — o agente se espanta, ao ver lágrimas caindo do meu rosto. Vergonhoso chorar assim na frente de alguém.

— Conte pra alguém, e eu falo do seu cheiro de banheiro e meia velha — ameaço virando de costas.

— Que culpa eu tenho de dividir o mesmo quarto?! — apesar da revolta presente, não é notável aspereza.

Como refletindo a dor de um coração, o céu a trovejar, suas nuvens densas ameaçando compartilhar uma dor grande demais para um coração.

— Vem, vamos entrar...

— Eu preciso vê-lo...

— Que?

— Eu preciso ver o meu pai! — a dor maior presente era do coração, que sabia que havia perdido a última chance de olhá-lo uma última vez.

Com uma explosão mista e súbita de emoções, meu corpo se move sozinho. A unhas encravam na terra buscando algo. Atordoado, o agente salta sobre mim tentando conter-me e tirar-me dali. A sua força era recusa, pois deveria temer machucar mais, e disso me aproveitei.

— Saí daqui! — empurro para o chão — Você não pode entender o que tô sentindo, e dane-se também se entender, eu não me importo! Só me deixa aqui... Só me deixa... Eu preciso me despedir dele... Ele não vai mais voltar, é um crime o que estou fazendo? Ele não vai mais voltar...

Entre lágrimas borradas, derrubo-me na lama que se formava pela chuva, cavando novamente. Como atendendo os meus pedidos, o agente saí em fúria. O choro abafado pelas gotas pesadas do céu, permitia humilhar-me e cavar, ficando cada vez mais imunda.

Eu já não esperava nada, até que...

— Afasta! — jogo-me para trás a tempo, antes de uma pá baixar sobre o solo. Travada observo o belo uniforme sujo pela lama.

Assim segue, até que sete palmos atinge algo sólido. Afasto-me mais, puxando a beirada que posso do caixão enquanto ele o empurra para fora.

O coração já errava as batidas antes, ao ver a pá forçar a abertura do caixão, então...

O agente consegue abrir.

Numa singela despedida eu pretendia aproximar-me, mas sua expressão de confusão é horror apartou qualquer sentimento assim.

— O... O que...? Cadê o meu pai?

— Merda... — o agente arregala os olhos como se uma resposta aparecesse na sua mente. — Eu preciso guardar isso.

— Não, não! CADÊ O MEU PAI?! — ignorando a minha existência, ele desliza o caixão para o túmulo jogando a tampa em seguida, e enterrando-o de novo — Não! Cadê o meu pai?!

— VOCÊ VIU ELE AÍ?! — seu grito me pega desprevenido — Só... Fica calada e vamos embora.

Vendo fazer tudo com tanta pressa, dá a entender algo de errado acontecendo. Sem dizer uma única palavra, ele me ajuda a subir nas suas costas e me leva para dentro. Contudo não para o hospital, e sim para o que parece ser banheiro.

— Eca... É aqui que você dorme? — sem responder, ele baixa-me sobre o piso menos sujo dali.

— Se lava, vou pegar uma roupa — a tanta preocupação na sua voz que sequer questiono isso.

Retiro as minhas roupas sujas e me sento num banquinho velho que estava ali. Sem forças, deixo a água cair e levar o que puder de sujeira, tentando manter os olhos abertos.

Percebendo mais tarde, que não tive sucesso.

Desperto novamente sobre a maca de hospital, no entanto, dessa vez é o agente ao meu lado. Visando o outro lado atrás de Jacob, há uma cortina impedindo a minha visão, que rodeia toda a lateral da minha cama deixando somente uma brecha para o agente.

— Que possessivo — eu falo, fazendo ele despertar — Que fofinho, estava preocupado?

— Nem ferrando...— diz, bocejando — Fiquei apenas... Para garantir que você vai esquecer aquela cena de ontem.

— Ah, tá. Vai apagar minha memória?

— Não.

— Então, nem ferrando — o homem pisca várias vezes parecendo desperto agora — O meu pai deveria estar lá, fizeram algo com o corpo dele, e eu vou descobrir o que, nem que seja passando por cima de você e todos esses agentes de merda!

— Não diria isso se soubesse o que está em jogo aqui — ele fala, agarrando a braçadeira da minha maca com força exagerada.

— E eu com isso?

— Desiste, cara — do outro lado, Jacob fala puxando a cortina — Ela é teimosa feito mula...

— Eu sei... Como o pai

— Você conhecia meu pai? — questiono, porém ele se afasta e vira de costas fazendo menção de sair — Ei, ô agente!

— O que foi? — pergunta, olhando-me por cima do ombro.

— Obrigado.

E assim, ele sai batendo a porta.

— Foi uma noite e tanto, presumo, já que chegou até de roupa diferente — Jacob ri com escárnio.

— Espera... — parando para pensar, eu estava tomando banho, então... — QUEM VESTIU MINHAS ROUPAS?!

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