Do veículo militar observo, os soldados retirarem os corpos sem vida do ônibus.
Meu corpo dói, lateja em lugares que eu não sabia serem capazes. Meus músculos pedem por descanso, mas meus olhos seguem vidrados naqueles corpos. Nos colegas que lutaram bravamente até ali.
Mesmo os observando estirados no asfalto, ainda havia uma vontade, uma pequena fagulha de vê-los levantar e suspirarem porque a ajuda chegou rápido, que estávamos resgatados e seguros.
Mas isso não aconteceu, e ver os soldados dizerem:
"Eles estão sem vida, senhor" ao meu pai, é um castigo. O seu olhar vai de sério a apaziguador em segundos, observando o desalento no semblante da sua unigênita.
— Eu sinto muito que isso tenha acontecido — o homem imponente afaga os meus cabelos, parecia sentir culpa pelo infortúnio.
— É... Eu também.
Os soldados descarregavam os corpos para um único carro, talvez na intenção de levar os corpos para as famílias ainda vivas. Já nos outros, sobrava espaço para os resgatados vivos, que oscilavam entre agradecer ou gracejar dor.
— Atenção, código resgate. Mande reforços para a Estação de Fuga a Leste, estamos com sobreviventes que estiveram no raio da explosão — meu pai nem sequer aguarda resposta antes de desligar o aparelho.
O seu olhar militar se suavizou novamente para mim.
— Por que estamos saindo da cidade? — o espanto oscilou previamente — A rota leste... É pelos túneis de trânsito... Levam para fora da cidade.
— Esqueci que te ensinei bem. Bem demais — a sua risada é orgulhosa — A cidade está infestada... Por algo que escapou do caminhão que explodiu em frente a sua escola. Algo que se espalhou rápido. Infectou animais em larga escala.
— O pessoal da escola também foi infectado. Eu vi... Meus colegas estavam comendo uns aos outros.
— O padrão parece o mesmo. Tudo que tiver um sistema neural idêntico ou próximo ao sistema de um animal, é capaz de ser infectado.
— Eu estava no pátio principal quando isso aconteceu, pai. Eu vi tudo começando.
O terror estava espalhou de forma inexplicável. Os alunos fugiam de algo veloz demais para olhos desfocados verem. Os gritos instalaram mais instinto de sobrevivência, porém a cereja do bolo foi redefinida em pavor saindo da traseira aberta do caminhão embargado na rua. Tinha quatro patas, sangue escorria da sua pele apodrecida e os seus dentes despejavam altas doses de saliva ao chão, e os seus olhos ludibriados pela loucura...
Cães. Ao menos, deveriam ser cães. Mas seus olhos já não eram de animais domésticos. Eram de caçadores sanguinários.
Jamais haveria de esquecer aquela cena, ainda mais descobrindo que tal ser seria antes atrativo para amor e pureza que somente animais podem carregar.
— Vi quando saíram da carroceria... Sedentos por sangue.
— Aqueles animais estavam infectados... — seu sussurro não cotidiano soprou, como um segredo que só eu deveria ouvir.
A dúvida não seria sanada, não naquele momento. O que os infectou? O que estava nos matando?
Os carros saíram em disparada deixando para trás o cenário de morte, antes de uma explosão repentina ocorrer. Não haveria nada mais que cinzas e fumaça do ônibus escolar.
— Não sei o que ele fez para você... — o olhar recai sobre Jacob — Mas esse rapaz é bom, deveria repensar...
— Tem razão pai, você não sabe o que ele fez — retruquei, impedindo suas palavras seguintes.
— Quando estiver pronta, estarei aqui para ouvir. Com certeza não foi tão mau quanto a sua mãe... — o seu rosto se retorce num sorriso amargurado, novamente cheio de sabedoria carregado pela idade.
Inesperadamente, o veículo freia com brutalidade fazendo com que nós fossemos jogados para mais dentro da carroceria. No ato, um impacto eminente ocorreu, desencadeando mais dor nas feridas já causadas; o pai presenciou de mãos atadas a sua filha expelir sangue pelos lábios já avermelhados.
— SANNA! Onde tiraram as suas habilitações, seus imbecis?! — esbraveja, amaldiçoando o condutor, tentando atravessar com cuidado por cima de Jacob, para alcançar-me.
No entanto, o famoso destino tende a pregar mais peças.
— Subtenente, não podemos passar! A estrada está engarrafada por todos os lados, devemos dar a volta! — o motorista brada, causando rugas no militar mais velho.
— Não se mexa, querida, eu já volto — fala saindo do carro.
O cadete motorista não estava mentindo, não haveria por onde passar e eles teriam de ir pelo túnel mais longo, o que demoraria mais tempo para chegar a um local adequado para cuidar dos feridos, incluindo eu.
— Que droga... O que estão esperando?! Deem a volta! — ele grita com a sua voz de sargento aos soldados, que sem pestanejar obedecem à ordem.
No entanto, entre os carros entulhados, ocorre uma movimentação estranha.
— Senhor, o que é aquilo? — da cabine de motorista o cadete aponta.
O Subtenente junta-se a mais dois soldados antes de ir verificar, não dando sequer cinco passos antes que uma pessoa gravemente ferida aparecesse.
— Soco... Socorro... — era um homem aparentemente de meia-idade, coberto de sangue e mordidas que estavam notoriamente apodrecendo — Me ajudem...
Os homens iriam se aproximar, porém se detiveram ao observarem os olhos do homem dilatando de forma avulsa. O rosnar que saia da sua boca se igualava ao rosnar dos animais infectados.
— Senhor, se mantenha afastado, chamaremos ajuda — o militar no comando diz, mantendo firmeza ao falar.
— So... Socor... ro... me aju-judem... grrr... — homem desobedecia à ordem, fazendo com que os cadetes apontassem as miras para ele.
— Não atirem, é uma pessoa! — o subtenente falou.
— Mas senhor, ele não parece mais uma pessoa! — indagou um cadete.
— Ele está doente devemos, leva-lo à base para os cuidados — afirma, mostrando uma fita de algemas descartável — Senhor, fique parado, irei colocar isso em você e leva-lo até a base para devidos cuidados.
O homem rosnava loucamente demonstrando hostilidade, mas por ser um militar treinado o conteve facilmente.
— Pare de resistir, senhor, é pro seu bem! AH!
De repente o militar grita, recebendo uma forte mordida na canela. Um cadete não se conteve e acabou atirando, matando uma criança infectada que aparecerá por entre os carros que havia o mordido.
— Desculpe, senhor! Não tive escolha! — rapidamente se desculpou, temendo pelo repreensão, mas o seu olhar foi atraído para uma nova movimentação por entre os veículos.
Igualmente todos os militares seguiram a sua visão, tendo uma surpresa. Aquele homem contido não era o único infectado, haviam centenas de infestados ali, incontáveis até para eles.
— Recuem, recuem! — o Subtenente manda jogando o homem infectado no chão — Voltem para os carros, agora! Atirem se necessário!
Sobre a mira das armas, aqueles seres infectados não recuam. Observo com espanto as pessoas se aproximando velozmente, igual aos animais carniceiros.
Me obrigo a ficar de pé, saltando pra fora da carroceria.
— Eu mandei não se mexer, Sanna — meu pai diz vislumbrando minha figura manca, e corre até mim, baixando a sua mão sobre os meus cabelos desgrenhados — Tão teimosa, criatura.
— É natural — respondo, reclinando-me sobre o seu toque, vendo a ferida sangrando no seu tornozelo — Pai, está ferido! Como se feriu?!
A demonstração de afeto foi interrompida quando tiros foram disparados. Os doentes estavam se aproximando cada vez mais.
— ARGH! GRRR!
— Papai?! — diante de mim, ele cai no chão retorcendo-se de dor, cuspindo sangue fresco que pinta o chão.
Sem reação imediata, atento-me a arma engatilhada que tomo de sua mão. Hesito em disparar, mas ao ver o vermelho-carmesim saindo de seus lábios, a visão dos cães infernais retorna. Disparo precisamente em qualquer coisa que possa acertar, sem saber onde estou acertando.
— Pai, vamos! Temos que entrar! — dependurando-se nos meus ombros, ambos nos apoiamos em direção ao veículo.
Nisso, um cadete buscou dar cobertura passando a frente e atirando nos infectados.
— Vem, papai... Você vai ficar bem...
— Sanna... Filha... Fuja...! ARRGH!!
Destilando mais sangue, ele se dobra sobre os joelhos no chão. Sua tosse se alastra e seu corpo começa a tremer. Recuando para trás, eu tento me desvencilhar do seu alcance, mas não rápido o bastante para fugir do seu bote.
Como um animal, meu pai salta de pé, se jogando para cima de mim, como um animal sedento por sangue.
Detenho sua mordida com a arma entre seus dentes, mas claramente há diferença de força para uma mera garota e um soldado formado. Meu corpo já lascado pelo acidente anterior repele qualquer força que deveria ter nos meus músculos.
— Pai... para! Por favor, sou eu, sua filha!
Não havia resquícios do homem que um dia ele forá. Só havia um monstro. Um monstro que eu não mataria.
— Pai, por favor... Por favor... — implorei, com lágrimas ameaçando cair dos meus olhos — Sou eu, a Sanna... Sua filha, não lembra de mim? Pai, por favor... Papai...
Nada.
Apenas rosnar e ranger de dentes atrás de mastigar algo. A cada novo impulso, mais perto os seus caninos chegavam do meu pescoço, e menos força restava-me.
— Eu te perdoo, eu te perdoo... — foi a última coisa que consegui sussurrar antes da arma ser arrancada de mim.
Fecho os olhos sentindo a pressão dos seus dentes na minha pele do meu rosto, mas a dor não chega.
— Fu... fuja-arr...
— Pai!
Uma mera esperança atravessou os meus olhos enquanto levanto o seu rosto bem a tempo de ver uma bala atravessando a sua testa, e o seu corpo mole cair em cima de mim.
Meu coração palpitou. O tempo parou as duas badaladas que senti do seu peito pressionando o meu, antes de parar.
Para sempre.
— Não... Não, não...
Desespero seria pouco para descrever aquela dor.
As minhas mãos tremem ao levantar, manchadas com o seu sangue.
Papai, papai... Papai!
Busco o revólver do seu coldre e miro para a direção do disparo.
Mal engatilho a arma antes de alguém torcer o meu pulso e me desarmar. Com fúria misturada ao luto, tento atacar as cegas, sendo imobilizada em seguida.
— Não resista, Sanna! — o cadete solta o seu fuzil e corre até o corpo do meu pai, o jogando sobre as costas — Vamos sair daqui!
— O meu pai... Me solta! Você matou ele! — as lágrimas não são mais contidas, a vergonha de chorar em público não existe mais.
O agente que me segura, guardou a sua arma para poder me segurar com as duas mãos.
Me debato aos berros, a visão embaçando e o ar faltando. A dor no meu corpo não existe mais, pois a minha alma dilacerada se rasga de dentro para fora.
— Quieta, ou mais deles virão!
A voz do agente mal atravessa meus ouvidos, antes da sua mão tapar a minha boca, me arrastando de volta para o carro a força.
— Sanna! — a menininha grita do veículo, em pleno desespero a beira de lágrimas — Volta, Sanna, volta! Você tem que voltar, não me deixa! Por favor... Por favor!
Foi aí então que os meus joelhos despencaram. O agente me segurou, puxando-me com mais facilidade.
Minha respiração não é mais natural, o ar parece não preencher os meus pulmões. O chão, já não existe em baixo dos meus pés. Minha voz? Se perdeu num grito silencioso que não pode sair.
Nem sequer relutei ou observei o caminho, notando apenas no último instante que fui levada para um carro diferente. Carro dos agentes especiais.
Nele estava disposto o corpo coberto por um lençol cinza, responsável pelo derramamento das minhas lágrimas.
Desabo ao lado do corpo. Queria arrastar o lençol e ver seu rosto, mas meu estômago revira com o som do tiro ressoando na minha cabeça.
— Ninguém está olhando. Chore o quanto quiser, não poderá chorar outra vez.
Talvez para confirmar as suas palavras, as lágrimas começaram a sair sem parar. A negação doendo mais que a realidade. Outros agentes começaram a entrar, mas nenhum deles olhou na minha direção. Realmente pareciam não estar vendo.
Não sei por quanto tempo me desmanchei, mas senti um lenço ser depositado no meu colo. Lenço que não serviu de nada.
De corpo bambo, segui estática na posição, uma nova lágrima escorrendo a cada novo minuto. Já não havia água no meu corpo.
Logo senti um peso, uma mão, puxar a minha cabeça. Não resisti, até recair na perna de alguém. Do agente. E lá, sem esperar, mais choro me escapou.
Naquele dia eu chorei tanto quanto jamais choraria na vida. Chorei no consolo de um desconhecido.
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