17

Ele me observou e eu fiz que “sim” com a cabeça, pedindo que continuasse.

– Eu participei de vários desses grupos na época. Isso foi uma atitudeimportante. Eu ajudei pessoas. Era um propósito maior chegar até aquelas crianças e dizer: “Olha, se um padre tocar nas suas partes íntimas, é errado. Não deixe. Grite e denuncie”. Mas aí a minha mãe… Quando eu comecei a desenhar hentais, ela agia como se eu estivesse agredindo aquelas crianças. Diz pra mim, Nahia. Eu sou um homem adulto e independente, se eu quero desenhar duas pessoas fazendo sexo e se vendo esse desenho para outro adulto independente que gosta de olhar essas imagens, qual é o propósito maior? Qual é a agressão social que está sendo cometida? Você quis ficar com uma mulher. Isso muda quem você é perante a sociedade?

– Não.

– Mas muda quem você é pra você.

Meus olhos fizeram a pergunta por mim.

– Você levava a sua vida e se sentia insatisfeita com ela. Era uma vidamedíocre, como você chamou. Você quis fazer algo novo. Algo diferente. Algo que tornasse sua vida única, mas não pros outros. Algo que tornasse sua vida única pra você.

– É estranho você dizer que eu queria tornar minha vida única, Kio. Eu sótenho uma vida, é claro que ela é única!

– É? Ou todos os seus dias eram exatamente iguais a ponto de você saber oque ia acontecer no seu mês inteiro antes mesmo dele começar?

Engoli em seco.

– Não tem nada de errado em buscar unicidade para sua vida, Nahia. Absolutamente nada de errado. É como eu disse: algumas pulam de paraquedas, outras compram conversíveis.

– Mas não é um propósito estúpido? Ou vulgar? Quero dizer, tentar tornarminha existência especial por meio do sexo?

Ele riu alto e satisfatoriamente.

– Essa é a minha filosofia, Nahia. Isso é o que é patético. Quero dizer, e se forestúpido? E se for vulgar? Quem liga? Você está se sentindo melhor agora do que se sentia antes de começar a experimentar novidades?

– Estou.

– Então pronto – deu de ombros. – Quem liga se o que te fez sentir melhor foipular de milhares de quilômetros de altura em queda livre, colecionar sapatos ou construir réplicas de catedrais com palitos de fósforo? Você está fazendo da sua vida algo único de um jeito que te agrada. Não é um propósito maior, Nahia.

Você não deve nada a ninguém.

Encarei as paredes por alguns segundos. Tudo que ele estava falando fazia perfeito sentido.

– Ah, maldição, Kio! Você devia escrever autoajuda.

– Autoajuda? O que é isso? Alguma posição sexual? – brincou, e eu nãoconsegui segurar a risada. – Está mais tranquila? – ele me perguntou, fazendo um cafuné rápido nos meus cabelos.

– Estou. Queria me sentir assim o tempo todo – confessei. – Principalmenteno lançamento, depois de amanhã.

– É o evento que você está preparando? O que seu chefe queria que vocêabandonasse?

– Exatamente – concluí em tom fúnebre. – Vou ter que ficar lá em pé sozinhadiante de toda aquela gente que sabe que eu gritei com o chefe e que fiquei com uma mulher.

– E eles vão estar todos te invejando – ele levantou o copo em um convite e eume juntei a ele em seu brinde. – Posso ir com você. Se você quiser, é claro. E se você tiver direito a levar um acompanhante.

Virei-me no sofá para ficar de frente para ele.

– Você faria isso?

– Claro – ele sorriu. – Ia adorar conhecer esse cara que você acha incrível. Tenho certeza que em uma olhada consigo arranjar uns oito defeitos pra ele. Pelo menos.

Fiz uma careta de reprovação.

– Pelo menos! – ele repetiu. – Mas não acho que eu deveria ir com você.

O ar ficou preso na minha garganta. Já estava pensando o que vestiria e o que ofereceria a ele depois do evento para convidá-lo para subir.

– Você não precisa se esconder atrás de um homem. Atrás de ninguém! E nemdeve. Você organizou todo esse evento, lutou pela sua posição quando tentaram roubá-la de você, e se as pessoas sabem algum detalhe de sua vida íntima é porque você quis contar. Se elas te julgarem por isso, o problema é delas. Você não tem nada com o que se envergonhar. Pelo contrário, tem muito do que se orgulhar. Eu acho que você deveria ir sozinha.

– Pra provar pra eles que eu não tenho medo?

– Provar pra eles? – ele expirou, incomodado. – Nahia, você não estavaprestando atenção? Eles que se fodam. Você deve ir sozinha para provar para si mesma que não tem medo.

***

Fechei os olhos com a cabeça enfiada no travesseiro, querendo que Amadeo viesse logo. Queria gritar com ele. Você também iria querer se tivesse tido o dia que eu tive.

Mas ele não apareceu.

Não havia ninguém. Eu estava no escuro e sozinha. Não que eu estivesse triste ou com medo: estava furiosa. Gritei para o vazio chamando o nome dele. Eu sabia que ele estava ali. Conseguia sentir seu cheiro, mesmo que não conseguisse vê-lo.

– Você precisa aprender a ficar sozinha.

Parecia que ele tinha sussurrado no meu ouvido e, ao mesmo tempo, eu sentia como se ele estivesse muito longe.

– Foi culpa sua! Você enfiou na minha cabeça essa coisa de dizer em alto ebom som que eu tinha ficado com uma mulher. A reação em cadeia destruiu meu dia! Eu posso perder o emprego, Amadeo! Isso é sério.

– Eu não gritei com seu chefe. Eu não disse nada para Colin. Foi você quemfez essas coisas e está de parabéns por isso. Você precisa aprender a ficar sozinha – ele repetiu.

– Preciso aprender a… – eu estava indignada. – Estive sozinha a vida inteira, Amadeo! Sei ficar sozinha muito bem, obrigada – rosnei.

– Não, você não sabe. Você não esteve sozinha a vida inteira: você esteve seescondendo a vida inteira. É diferente. O seu amigo Kioujin está certo. Você precisa aprender a ficar sozinha por opção, e ficar bem com isso.

– Olha, não gosto mais de você – constatei. – Vai embora, certo? Chega desseseminário de autoajuda. Vou voltar a viver minha vida…

– … do jeito medíocre que sempre viveu? – ele concluiu para mim.

Eu girei no escuro tentando encontrá-lo, sem sucesso.

– Medíocre por que eu não transava todos os dias?

– Medíocre porque você não fazia o que queria fazer. Não exigia uma melhorposição na editora, não era honesta com seus próprios sentimentos e desejos.

Mas não se engane… Você ainda tem um longo caminho para percorrer.

– E seu jeito de me mostrar isso foi me induzindo a gritar com o meu chefe?

– Não me responsabilize pelas suas ações, Nahia. Mas foi um divisor de águasnecessário, não?

– O que diabos você é, por sinal? Sei que não é um fragmento do meusubconsciente. Então, o que você é?

– Isso importa?

– Responda a pergunta, Amadeo.

– Eu sou muitas coisas e já fui muitas coisas, Nahia. Perderíamos um tempoprecioso se eu tivesse que parar pra contar a história desde o começo.

Inspirei fundo. Expirei fundo.

Lembrei de Kio. Ele tinha dito coisas importantes que tinham feito muito sentido. Mas ali, sozinha, no escuro… Eu me sentia perdida, de novo.

– Certo. Vamos supor que eu perdi completamente a sanidade e vou continuarouvindo seus conselhos. E agora?

– Agora, você vai dormir. Amanhã, você vai para o trabalho e vai seguir osconselhos do seu vizinho. Ele sabe das coisas, aquele rapaz.

– E amanhã à noite? Qual a próxima coisa absurda que você vai querer que eu faça?

– Eu não quero que você faça nada, Nahia. Eu apenas dou sugestões. Cabe avocê segui-las ou não.

– Está bem, Amadeo… E qual é a sugestão?

Eu podia senti-lo sorrindo no escuro.

– Você precisa aprender a ficar sozinha, não precisa?

Confesso que parte de mim ficou decepcionada. Estava chateada pelo modo como as coisas se conduziram ao longo do meu dia. Mas, no geral, Amadeo sempre tinha ideias maravilhosas. E masturbação de novo… pareceu… repetitivo.

Expirei em um claro sinal de desistência.

– Certo – a decepção em minha voz era audível.

– Ora, não fique tão frustrada, querida. Masturbação pode ser interessante.Principalmente na vida moderna, há tantos artifícios tecnológicos que podem ser usados…

– Artifícios tecnológicos? O que isso quer dizer?

Silêncio.

– Amadeo? Ei! Amadeo! – eu estava gritando para o vazio mais uma vez. Adiferença é que agora eu sabia que ele não estava mais lá. O cheiro tinha ido embora.

Eu estava sozinha e, aparentemente, era algo com o qual eu teria que me acostumar.

A sétima noite

“Porque quando eu chegar, vou trazer o fogo. Vou te fazer gozar… a vida.”

Let it Rock, Kevin Rudolf

É difícil não gostar de Suzane. Ela é a pessoa mais agradável, solícita e simpática do departamento. Acho que é por isso que acabamos desenvolvendo um bom nível de amizade. Ela é uma das poucas pessoas – se não a única – por aqui que sempre reconheceu meu trabalho.

– Você devia tirar férias de vez em quando, Nana! – ela exclamou, empolgadae bronzeada. – Você vive por essa editora e ninguém te dá valor.

Estreitei os olhos para ela em um olhar brincalhão.

– Ah! Não me olhe assim! Você sabe que é verdade. É um santo remédio.Você esquece tudo do trabalho. Até as senhas! – ela riu. – Tive que solicitar todas de novo. É um inferno esse novo procedimento. Era tão mais fácil antes.

– Você recebe tudo no celular, Suz! Qual a dificuldade? – ri.

– Seja como for, você devia experimentar umas férias de vez em quando.

Dei de ombros.

– Acho que vou tirar umas férias compulsivas daqui a um dia ou dois, entãonão há com o que se preocupar.

Ela se sentou ao meu lado.

– Férias compulsivas?

– Eu gritei com o sr. Danin e disse que, ou eu recebia um aumento, ou eu iaembora.

O queixo dela caiu e continuou caindo.

– Nahia Valar! Aleluia!

Repassei a minha lista de checagem para ver se não tinha esquecido nada.

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Comments

Amanda

Amanda

As vezes é preciso rodar a baiana

2023-08-24

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