Deusa da Noite
Era manhã, e o sol derramava-se com uma intensidade quase cruel sobre a floresta, banhando as copas das árvores com um dourado abrasador. Seus raios cortavam as folhas, projetando sombras dançantes no chão coberto de musgo e ervas úmidas. Ali, no coração daquele tapete verde, jazia uma garota, deitada com os olhos fechados, como se o mundo ao seu redor não ousasse perturbar seu repouso. Seus longos cabelos platinados espalhavam-se pela grama, fios brilhantes que capturavam a luz do sol e pareciam pulsar com vida própria, como se fossem feitos de prata líquida. Um suspiro suave escapou de seus lábios, um som quase inaudível, carregado de algo que poderia ser cansaço, alívio ou talvez um peso muito mais profundo. Então, seus olhos se abriram.
Eram olhos de um violeta tão vibrante, tão raro, que pareciam desafiar a própria natureza. Brilhavam contra a luz do sol, como duas ametistas polidas, carregadas de uma intensidade que poderia perfurar a alma de quem os encarasse por tempo demais. Num movimento súbito, quase felino, ela se sentou sobre a grama, os sentidos aguçados, o corpo tenso. Seus olhos se voltaram para trás, atraídos por um ruído quase imperceptível, um farfalhar que não pertencia ao ritmo natural da floresta. Algo ou alguém estava ali. Seus olhos se estreitaram, e com uma velocidade que denunciava anos de prática, sua mão alcançou as flechas embainhadas nas costas. Num único movimento fluido, ela puxou uma delas, encaixou-a no arco com precisão mortal e disparou. Um grito agudo cortou o ar, um som que não era humano, mas animalesco.
A garota se levantou, o movimento tão natural quanto o vento que soprava entre as árvores, e caminhou até os arbustos de onde o som viera. Seus dedos, calejados, mas ainda delicados, afastaram as folhas com firmeza, revelando a origem do ruído: um coelho, agora imóvel, trespassado pela flecha. Ela se abaixou, o rosto impassível, mas com um brilho de curiosidade nos olhos violeta.
— Hm. Era só um coelho... pensei que fosse algo mais, mas me enganei — murmurou, a voz baixa, quase um sussurro, mas carregada de uma frieza que contrastava com a suavidade de suas feições.
Ela pegou o animal pelas pernas, o sangue pingando lentamente na terra, e voltou para o lugar onde estava, deixando os arbustos se fecharem atrás de si. O sol continuava a queimar, alheio ao peso que aquela jovem carregava, alheio à história que seus olhos violeta guardavam.
[...]
Meu nome é Aris, mas podem me chamar como quiser. Ou, se preferirem, podem me chamar de “Deusa da Noite”. É assim que todos me chamam agora, um título sussurrado com medo, reverência ou ódio, dependendo de quem o pronuncia. Não escolhi esse nome, mas ele se encaixa, suponho. Afinal, é na escuridão que eu prospero, onde meus sentidos se aguçam e minhas flechas encontram seus alvos com uma precisão que parece sobrenatural. Em Tristária, a cidade que fede a corrupção e podridão, meu nome é uma lenda. Uma lenda temida, caçada, procurada. Sou a assassina que os poderosos desejam ver morta, a sombra que desliza pelas ruas escuras, deixando corpos e sussurros em seu rastro.
Por que estou sendo procurada? A resposta é simples, mas o peso dela é uma corrente que carrego em cada passo, em cada batida do meu coração. Vingança. Não é uma palavra bonita, não é algo que se pronuncia com leveza. É uma chama que queima dentro de mim, uma ferida que nunca cicatriza, uma promessa que fiz a mim mesma sob o céu ensanguentado de uma noite que jamais esquecerei. Anos atrás, minha vida era diferente. Eu tinha uma família, um lar, risadas que enchiam o ar. Meus pais... eles eram tudo para mim. Minha mãe, com seus olhos gentis e mãos que sabiam tecer histórias tão bem quanto teciam cobertores. Meu pai, com sua risada grave e sua força tranquila, que me fazia sentir que o mundo era um lugar seguro. Até que Oliver apareceu.
Oliver. O nome dele é como veneno na minha língua, uma mancha que não sai, por mais que eu tente. Ele era o líder dos homens que diziam proteger nosso povo, mas proteção era a última coisa que ofereciam. Eles roubavam dinheiro, crianças, mulheres, vidas. Eram abutres vestidos de salvadores, e Oliver era o pior deles. Ele escolhia meninas jovens, frágeis, e as escravizava, arrancando delas tudo o que eram, tudo o que poderiam ser. Eu quase fui uma delas. Quase. Naquela noite, quando o sangue dos meus pais manchou o chão da nossa casa, quando seus gritos ecoaram nos meus ouvidos até se tornarem silêncio, Oliver me olhou nos olhos. Ele sorriu. Um sorriso sujo, cruel, como se minha dor fosse um troféu. Ele me deixou viver, não por piedade, mas por capricho. “Você é interessante”, ele disse, antes de virar as costas e desaparecer na noite, deixando-me sozinha com os corpos dos meus pais e um vazio que nunca mais me abandonou.
Eu tinha catorze anos. Meus olhos, já de um violeta que chamava atenção, viram coisas que nenhuma criança deveria ver. A brutalidade com que Oliver e seus homens mataram meus pais não foi apenas violência foi uma mensagem. Eles queriam mostrar que ninguém estava seguro, que ninguém podia desafiá-los. Mas eu escapei. Não sei como, talvez por pura sorte, talvez porque o destino tinha outros planos para mim. Corri para a floresta, com o coração na garganta, os pés sangrando, o vestido rasgado. E ali, entre as árvores, jurei que não apenas sobreviveria, mas destruiria cada pedaço daquele mundo podre que Oliver representava.
Hoje, sou a Deusa da Noite. Meu arco é minha voz, minhas flechas são minha justiça. Cada homem que cai sob meu disparo é um passo mais perto de Oliver, um passo mais perto de arrancar aquele sorriso cruel de seu rosto. Não é só sobre ele, no entanto. É sobre todos eles: os homens que se escondem atrás de títulos e promessas, que exploram os fracos, que roubam a esperança. Tristária está doente, apodrecendo de dentro para fora, e eu sou o veneno que vai limpar essa infecção. Não me iludo pensando que sou uma heroína. Heróis não têm as mãos manchadas de sangue como as minhas, não carregam a escuridão que eu carrego. Mas também não sou um monstro. Sou algo entre os dois, uma força que ninguém pode parar, uma sombra que ninguém pode segurar.
Enquanto seguro este coelho, com o sangue ainda quente escorrendo entre meus dedos, penso no próximo passo. Oliver está lá fora, em algum lugar, e cada dia que passo nesta floresta, cada flecha que disparo, me aproxima dele. A floresta é meu refúgio, meu campo de treinamento, mas também minha prisão. Aqui, posso ser eu mesma, mas também estou sozinha com minhas memórias, com a dor que nunca me deixa. Ainda assim, não vou parar. Não posso parar. Não até que Oliver e todos os que seguem seus passos sejam nada além de cinzas.
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Atualizado até capítulo 39
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