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Deusa da Noite

O Começo

Era manhã, e o sol derramava-se com uma intensidade quase cruel sobre a floresta, banhando as copas das árvores com um dourado abrasador. Seus raios cortavam as folhas, projetando sombras dançantes no chão coberto de musgo e ervas úmidas. Ali, no coração daquele tapete verde, jazia uma garota, deitada com os olhos fechados, como se o mundo ao seu redor não ousasse perturbar seu repouso. Seus longos cabelos platinados espalhavam-se pela grama, fios brilhantes que capturavam a luz do sol e pareciam pulsar com vida própria, como se fossem feitos de prata líquida. Um suspiro suave escapou de seus lábios, um som quase inaudível, carregado de algo que poderia ser cansaço, alívio ou talvez um peso muito mais profundo. Então, seus olhos se abriram.

Eram olhos de um violeta tão vibrante, tão raro, que pareciam desafiar a própria natureza. Brilhavam contra a luz do sol, como duas ametistas polidas, carregadas de uma intensidade que poderia perfurar a alma de quem os encarasse por tempo demais. Num movimento súbito, quase felino, ela se sentou sobre a grama, os sentidos aguçados, o corpo tenso. Seus olhos se voltaram para trás, atraídos por um ruído quase imperceptível, um farfalhar que não pertencia ao ritmo natural da floresta. Algo ou alguém estava ali. Seus olhos se estreitaram, e com uma velocidade que denunciava anos de prática, sua mão alcançou as flechas embainhadas nas costas. Num único movimento fluido, ela puxou uma delas, encaixou-a no arco com precisão mortal e disparou. Um grito agudo cortou o ar, um som que não era humano, mas animalesco.

A garota se levantou, o movimento tão natural quanto o vento que soprava entre as árvores, e caminhou até os arbustos de onde o som viera. Seus dedos, calejados, mas ainda delicados, afastaram as folhas com firmeza, revelando a origem do ruído: um coelho, agora imóvel, trespassado pela flecha. Ela se abaixou, o rosto impassível, mas com um brilho de curiosidade nos olhos violeta.

— Hm. Era só um coelho... pensei que fosse algo mais, mas me enganei — murmurou, a voz baixa, quase um sussurro, mas carregada de uma frieza que contrastava com a suavidade de suas feições.

Ela pegou o animal pelas pernas, o sangue pingando lentamente na terra, e voltou para o lugar onde estava, deixando os arbustos se fecharem atrás de si. O sol continuava a queimar, alheio ao peso que aquela jovem carregava, alheio à história que seus olhos violeta guardavam.

[...]

Meu nome é Aris, mas podem me chamar como quiser. Ou, se preferirem, podem me chamar de “Deusa da Noite”. É assim que todos me chamam agora, um título sussurrado com medo, reverência ou ódio, dependendo de quem o pronuncia. Não escolhi esse nome, mas ele se encaixa, suponho. Afinal, é na escuridão que eu prospero, onde meus sentidos se aguçam e minhas flechas encontram seus alvos com uma precisão que parece sobrenatural. Em Tristária, a cidade que fede a corrupção e podridão, meu nome é uma lenda. Uma lenda temida, caçada, procurada. Sou a assassina que os poderosos desejam ver morta, a sombra que desliza pelas ruas escuras, deixando corpos e sussurros em seu rastro.

Por que estou sendo procurada? A resposta é simples, mas o peso dela é uma corrente que carrego em cada passo, em cada batida do meu coração. Vingança. Não é uma palavra bonita, não é algo que se pronuncia com leveza. É uma chama que queima dentro de mim, uma ferida que nunca cicatriza, uma promessa que fiz a mim mesma sob o céu ensanguentado de uma noite que jamais esquecerei. Anos atrás, minha vida era diferente. Eu tinha uma família, um lar, risadas que enchiam o ar. Meus pais... eles eram tudo para mim. Minha mãe, com seus olhos gentis e mãos que sabiam tecer histórias tão bem quanto teciam cobertores. Meu pai, com sua risada grave e sua força tranquila, que me fazia sentir que o mundo era um lugar seguro. Até que Oliver apareceu.

Oliver. O nome dele é como veneno na minha língua, uma mancha que não sai, por mais que eu tente. Ele era o líder dos homens que diziam proteger nosso povo, mas proteção era a última coisa que ofereciam. Eles roubavam dinheiro, crianças, mulheres, vidas. Eram abutres vestidos de salvadores, e Oliver era o pior deles. Ele escolhia meninas jovens, frágeis, e as escravizava, arrancando delas tudo o que eram, tudo o que poderiam ser. Eu quase fui uma delas. Quase. Naquela noite, quando o sangue dos meus pais manchou o chão da nossa casa, quando seus gritos ecoaram nos meus ouvidos até se tornarem silêncio, Oliver me olhou nos olhos. Ele sorriu. Um sorriso sujo, cruel, como se minha dor fosse um troféu. Ele me deixou viver, não por piedade, mas por capricho. “Você é interessante”, ele disse, antes de virar as costas e desaparecer na noite, deixando-me sozinha com os corpos dos meus pais e um vazio que nunca mais me abandonou.

Eu tinha catorze anos. Meus olhos, já de um violeta que chamava atenção, viram coisas que nenhuma criança deveria ver. A brutalidade com que Oliver e seus homens mataram meus pais não foi apenas violência foi uma mensagem. Eles queriam mostrar que ninguém estava seguro, que ninguém podia desafiá-los. Mas eu escapei. Não sei como, talvez por pura sorte, talvez porque o destino tinha outros planos para mim. Corri para a floresta, com o coração na garganta, os pés sangrando, o vestido rasgado. E ali, entre as árvores, jurei que não apenas sobreviveria, mas destruiria cada pedaço daquele mundo podre que Oliver representava.

Hoje, sou a Deusa da Noite. Meu arco é minha voz, minhas flechas são minha justiça. Cada homem que cai sob meu disparo é um passo mais perto de Oliver, um passo mais perto de arrancar aquele sorriso cruel de seu rosto. Não é só sobre ele, no entanto. É sobre todos eles: os homens que se escondem atrás de títulos e promessas, que exploram os fracos, que roubam a esperança. Tristária está doente, apodrecendo de dentro para fora, e eu sou o veneno que vai limpar essa infecção. Não me iludo pensando que sou uma heroína. Heróis não têm as mãos manchadas de sangue como as minhas, não carregam a escuridão que eu carrego. Mas também não sou um monstro. Sou algo entre os dois, uma força que ninguém pode parar, uma sombra que ninguém pode segurar.

Enquanto seguro este coelho, com o sangue ainda quente escorrendo entre meus dedos, penso no próximo passo. Oliver está lá fora, em algum lugar, e cada dia que passo nesta floresta, cada flecha que disparo, me aproxima dele. A floresta é meu refúgio, meu campo de treinamento, mas também minha prisão. Aqui, posso ser eu mesma, mas também estou sozinha com minhas memórias, com a dor que nunca me deixa. Ainda assim, não vou parar. Não posso parar. Não até que Oliver e todos os que seguem seus passos sejam nada além de cinzas.

Tristária Cidade do Inferno

A noite finalmente caiu, e com ela veio o manto de sombras que eu tanto amava. O céu de Tristária estava encoberto por nuvens esparsas, mas a lua cheia conseguia vazar sua luz prateada, iluminando as ruas de forma irregular, como se escolhesse o que revelar e o que esconder. Coloquei o capuz sobre a cabeça, os fios platinados dos meus cabelos escondidos sob o tecido escuro. Era hora de partir. Meus pés conheciam o caminho para a cidade como se fosse uma extensão do meu próprio corpo, cada trilha na floresta, cada pedra solta, cada galho baixo. Eu era uma sombra entre as árvores, movendo-me com a graça de um predador, silenciosa, letal. Meu coração batia firme, mas não acelerado eu havia aprendido a controlar o medo há muito tempo. Ele não tinha mais espaço em mim.

Quando cheguei às bordas de Tristária, a transição da floresta para a cidade foi como atravessar um portal para outro mundo. O ar puro deu lugar a um fedor de esgoto, podridão e desespero. As ruas eram um labirinto de sujeira, pavimentadas com lama e restos do que um dia poderiam ter sido sonhos. Para minha sorte, meu rosto não era conhecido aqui. A Deusa da Noite era uma lenda, um espectro que assombrava os pesadelos dos poderosos, mas ninguém sabia quem eu era. Todas as vezes que me viram, eu usava a máscara uma peça de couro preto, moldada para cobrir metade do meu rosto, deixando apenas meus olhos violeta expostos, brilhando como faróis na escuridão. Nem mesmo Oliver, aquele verme, sabia quem eu era, apesar de ter me deixado viver naquela noite fatídica. Ele achava que eu era apenas uma garotinha assustada, uma vítima que ele podia descartar. Ele estava errado.

As ruas de Tristária eram um retrato da decadência. Pessoas feridas jaziam no chão, seus gemidos abafados pela indiferença de quem passava. Crianças com roupas rasgadas, os rostos sujos de terra e lágrimas, estendiam as mãos trêmulas pedindo esmolas, seus olhos grandes demais para corpos tão frágeis. Mulheres grávidas arrastavam-se com dificuldade, seus ventres pesados parecendo mais uma maldição do que uma bênção. E então havia os corpos. Corpos mortos, abandonados como lixo, inchados, apodrecendo há semanas, o cheiro misturando-se ao ar úmido da noite. Eu já tinha visto isso tudo antes, tantas vezes que deveria estar cega para a miséria. Mas não estava. Cada cena cortava um pouco mais fundo, reacendendo a chama da minha raiva, do meu propósito. Oliver e seus homens fizeram isso. Eles transformaram Tristária nesse inferno.

Desviei o olhar, tentando me concentrar no meu objetivo informações. Eu precisava de pistas sobre onde Oliver estava, sobre seus próximos movimentos. Mas então, do canto do olho, vi algo que me fez parar. Um garoto, talvez da minha idade, uns 20 anos, encostado contra uma parede quebrada. Ele estava sujo, o cabelo castanho desgrenhado caindo sobre os olhos, o corpo magro coberto por farrapos. Havia sangue seco em sua camisa, e ele segurava o braço como se doesse. Seus olhos, porém, eram o que me prenderam. Havia algo neles, uma centelha que eu conhecia muito bem. Era a mesma que eu via no espelho todas as manhãs.

Eu deveria ter continuado. Deveria ter ignorado, seguido meu caminho, focado na missão. Mas meu coração esse traidor teimoso ainda era fraco demais. Xinguei-me mentalmente por isso, por ainda sentir pena, por ainda me importar. Com um suspiro, me abaixei na frente dele, estendendo a mão.

— Precisa de ajuda? — perguntei, minha voz mais suave do que eu gostaria.

O garoto levantou a cabeça, e seus olhos encontraram os meus. Por um instante, achei que ele aceitaria, mas então ele deu um tapa na minha mão, o movimento rápido e defensivo.

— Não toque em mim — ele cuspiu, a voz rouca, carregada de desconfiança.

Fiquei em silêncio, surpresa, mas não ofendida. "Que garoto ignorante", pensei, estreitando os olhos. Mas então vi de novo aquele brilho em seu olhar. Não era apenas raiva ou medo. Era algo mais profundo, algo que eu conhecia intimamente: sede. Sede por sangue, por vingança, por justiça. Era o mesmo fogo que queimava em mim, o mesmo vazio que me impulsionava. Ele não era apenas um garoto ferido. Ele era como eu.

Levantei-me lentamente, limpando as mãos na capa como se pudesse apagar o gesto de fraqueza.

— Ok, pode ficar aí no chão. Não é problema meu se você acabar morrendo — falei, minha voz agora fria, cortante como a lâmina que eu carregava.

Estava prestes a virar e seguir meu caminho quando ele falou, a voz mais baixa, quase hesitante.

— Ei.

Virei o rosto, olhando-o por cima do ombro, o capuz sombreando metade do meu rosto. Ele me encarava, os olhos ainda desconfiados, mas com algo novo: talvez arrependimento.

— Me desculpe pela forma rude — ele disse. — Pode me ajudar?

Suspirei, irritada comigo mesma por não conseguir simplesmente ignorá-lo. Caminhei até ele com passos lentos, estendi a mão novamente e o ajudei a se levantar. Ele era mais alto do que eu imaginava, mas magro, quase frágil. Ainda assim, havia uma força em sua postura, uma determinação que não combinava com os trapos que vestia.

— Qual é o seu nome? — ele perguntou, limpando o rosto com a manga suja.

— É melhor que não saiba — respondi, mantendo a voz firme, sem espaço para intimidade.

Ele franziu a testa, confuso, mas não insistiu. — Meu nome é Louis — ele disse, como se isso fosse me fazer mudar de ideia.

Assenti, sem dizer mais nada. Antes que a conversa pudesse continuar, o som de cascos de cavalos ecoou pelas ruas, um trovão baixo que fez meu coração disparar por instinto. Virei a cabeça na direção do barulho, e lá estavam eles: homens do governo, as armaduras reluzindo sob a luz da lua, as espadas penduradas nas cinturas. Eram os cães de Oliver, seus capangas, os mesmos que espalhavam terror em nome da “ordem”. Meu sangue ferveu, mas eu sabia que não era hora de lutar. Não agora, não aqui.

Virei-me e comecei a andar rápido, o capuz baixo, os olhos fixos à frente. Louis, sem entender, olhou para os cavaleiros e depois para mim, antes de começar a me seguir.

— Ei, espere. Onde você vai? — ele perguntou, a voz carregada de curiosidade.

— Embora — respondi secamente, acelerando o passo.

Ele olhou para trás, para os cavaleiros que se aproximavam, e depois para mim. — Está fugindo deles?

Num movimento rápido, puxei a faca da minha cintura e a encostei em sua garganta, o metal frio brilhando contra a pele dele. Meus olhos violeta o encararam, e eu deixei a ameaça pairar no ar.

— Fique longe. Eu não te conheço. Se continuar me seguindo, eu vou te matar — sibilei, cada palavra afiada como a lâmina.

Louis levantou as mãos em rendição, um leve sorriso nos lábios, como se achasse a situação divertida. — Nunca vi olhos como esses... — ele murmurou, quase para si mesmo.

Instintivamente, coloquei a mão livre sobre um dos olhos, cobrindo-o, como se pudesse esconder o que me tornava tão diferente. Virei-me para frente, pronta para desaparecer nas sombras, mas Louis não desistiu.

— Me deixe ir com você — ele insistiu, dando um passo na minha direção.

— Nem pensar — retruquei, sem parar.

— Por quê? — ele perguntou, a voz agora mais firme, quase desafiadora.

— Não te conheço. Não vou confiar em alguém só porque estendi a mão para ele — respondi, minha voz cortante como o vento frio que soprava pelas ruas.

— Eu não tenho para onde ir — ele disse, e havia uma vulnerabilidade em sua voz que quase me fez hesitar. Quase.

— Isso já não é problema meu — retruquei, acelerando o passo.

— Eu posso ajudar você, Deusa da Noite — ele disse, e aquelas palavras me fizeram congelar.

Virei o rosto lentamente, meus olhos estreitados, o coração batendo mais rápido agora. — Como sabe quem eu sou? — perguntei, a voz baixa, perigosa.

Louis apontou para minha cintura, onde a máscara preta pendia, mal escondida sob a capa. — Você não escondeu ela muito bem — ele disse, com um leve tom de provocação. — Ouvi boatos que a Deusa da Noite foi vista com essa máscara.

— Desgraçado — murmurei, avançando com rapidez, a faca novamente apontada para ele. Meus olhos ardiam de raiva, mas antes que eu pudesse decidir o que fazer, outro som cortou o ar. Passos. Mais cavaleiros se aproximando, suas vozes ecoando pelas ruas estreitas.

Estalei a língua, frustrada, e agarrei Louis pela camisa, puxando-o comigo enquanto corria para uma viela escura. — Ai, devagar... eu estou machucado — ele reclamou, tropeçando enquanto tentava acompanhar meu ritmo.

Eu não respondi. Minha mente estava focada em escapar, em manter minha identidade oculta, em sobreviver mais uma noite. Mas enquanto corria, com Louis sendo arrastado atrás de mim, uma parte de mim aquela parte fraca, teimosa se perguntava quem ele era. E por que, contra todo o meu bom senso, eu não conseguia simplesmente abandoná-lo.

 Por Que Aris Não Matou Louis?

As ruas de Tristária eram um labirinto de sombras, e eu conhecia cada canto, cada beco onde a luz da lua não ousava tocar. Puxei Louis pela camisa, meu coração batendo rápido, mas não por medo era a adrenalina, a raiva, a desconfiança que aquele garoto idiota havia despertado em mim. Ele tropeçava atrás de mim, gemendo sobre seus ferimentos, mas eu não tinha tempo para piedade. Os cavaleiros estavam próximos, o som dos cascos ecoando como trovões. Encostei-o contra a parede de um beco escuro, o cheiro de mofo e lixo impregnando o ar. Minha mão pressionou seu peito, mantendo-o imóvel, enquanto eu espiava pela esquina, os olhos estreitados, o corpo tenso. Os cavaleiros passaram, suas vozes rudes cortando a noite, mas, por sorte, não nos viram. As sombras eram minhas aliadas, sempre foram.

Virei-me para Louis, inclinando a cabeça ligeiramente, meus olhos violeta perfurando os dele. Havia algo nele que me irritava profundamente talvez fosse a ousadia, a maneira como ele parecia não ter medo de mim, ou pior, como ele parecia enxergar através de mim.

— Como soube quem eu era? — perguntei, minha voz baixa, mas carregada de ameaça.

Ele me olhou com uma calma que só aumentava minha raiva. — Já falei, foi por causa da máscara — ele respondeu, apontando para a minha cintura, onde a máscara preta pendia, traidora, visível o suficiente para alguém atento.

— Impossível! — Minha voz se exaltou, um erro que eu raramente cometia. Perder o controle não era algo que eu podia me permitir. Num movimento rápido, minha mão agarrou a garganta dele, os dedos apertando com força suficiente para fazê-lo sentir o peso da minha raiva. — Não minta para mim.

Ele levantou as mãos em rendição, os olhos arregalados, mas ainda com aquele brilho irritante de desafio. — Por favor, confia em mim — ele disse, a voz rouca sob a pressão dos meus dedos.

— Eu não confio em ninguém — sibilei, aproximando meu rosto do dele, deixando que ele visse a frieza nos meus olhos. — Eu vou matar você.

Era o que precisava ser feito. Ele sabia demais, mesmo que fosse apenas a máscara. Eu não podia arriscar. Minha mão já alcançava a faca na cintura, o metal frio contra meus dedos, mas então ele falou, e suas palavras acertaram como uma flecha no meu peito.

— Será que consegue? — ele disse, a voz baixa, quase um sussurro. — Pelo que parece, você não é tão fria como os outros dizem, não é?

O sangue ferveu nas minhas veias. Quem ele pensava que era? Estava me subestimando? Achava que eu hesitaria? “Desgraçado”, pensei, a raiva engolindo qualquer traço de hesitação. Com um movimento rápido, meu punho voou contra o rosto dele, o impacto ecoando no beco. Ele caiu, apagado, o corpo desmoronando no chão como um saco de grãos. Fiquei olhando para ele, o peito subindo e descendo com respirações pesadas. Minha mão ainda formigava pelo soco, e uma parte de mim, aquela parte fraca que eu tanto desprezava se perguntou se eu tinha ido longe demais.

— Filho da puta — sussurrei, mais para mim mesma do que para ele, antes de arrastá-lo para fora daquele beco, para longe dos olhos de Tristária. Ele não podia ficar ali, e eu... eu ainda não sabia o que fazer com ele.

[...]

Tudo ficou escuro depois daquele soco. Não me lembro de nada nem do impacto, nem de como caí, nem de como cheguei onde estou agora. Só sei que, quando abri os olhos, o mundo era diferente. O fedor de Tristária tinha sumido, substituído pelo cheiro fresco de terra úmida e folhas. Eu estava deitado na grama, o som suave de um rio correndo ao meu lado. A água era tão clara que refletia as estrelas, como se o céu tivesse se derramado no chão. Minha cabeça latejava, e meu rosto doía como se um cavalo tivesse pisado em mim. Toquei a bochecha e senti o inchaço. “Que diabos aconteceu?”, pensei, tentando juntar as peças.

— Onde estou? — murmurei, sentando-me na grama, os olhos varrendo a floresta ao meu redor. As árvores eram altas, suas copas bloqueando a maior parte da luz do sol, mas havia uma quietude ali, um tipo de paz que eu não sentia há anos.

Então ouvi passos. Leves, calculados, mas inconfundíveis. Era ela. A Deusa da Noite. Eu ainda não sabia seu nome, mas não podia negar que, mesmo com toda a sua fúria, ela era... diferente. Linda, de uma forma que parecia quase irreal. Seus cabelos platinados brilhavam, e aqueles olhos violeta... nunca vi nada como eles. Eram hipnotizantes, mas também perigosos, como se pudessem me engolir inteiro. Nas mãos dela, um esquilo morto, pendurado pelas patas, o sangue pingando lentamente.

Ela parou na minha frente, me encarando com aquela expressão que era metade desdém, metade impaciência. — Ainda bem que acordou. Vai precisar caçar — ela disse, a voz cortante como uma lâmina.

— O quê? — retruquei, ainda atordoado, tentando processar o que estava acontecendo.

— Você não entendeu? — Ela ergueu uma sobrancelha, o tom carregado de sarcasmo. — Tá achando que vai sobreviver aqui se não caçar alguma coisa? Olha só pra você, está uma tripa seca.

— Ah, muito obrigado. Adorei o jeito doce como me trata — respondi, incapaz de segurar o comentário. Minha cabeça ainda doía, mas minha língua sempre foi mais rápida que meu bom senso.

Ela me lançou um olhar que poderia cortar pedra. — Eu não sou sua amiga. É bom saber que eu só te tratarei assim.

— Entendi — murmurei, esfregando o rosto dolorido. Mas havia algo que eu precisava saber, algo que não saía da minha cabeça desde o beco. — Mas eu ainda estou com dúvida em uma coisa.

Ela apenas me encarou, os olhos violeta faiscando com desconfiança. Não disse nada, então continuei.

— Por que não me matou? — perguntei, mantendo o tom leve, mas meus olhos fixos nos dela, procurando qualquer sinal de fraqueza.

— Não é da sua conta — ela respondeu, seca, desviando o olhar por um instante.

— Não? — Insisti, sentindo que estava pisando em terreno perigoso, mas incapaz de parar. — Não vai dizer que foi porque teve piedade?

Seus olhos voltaram para mim, e o ar ao meu redor pareceu ficar mais pesado. — Olha aqui, garoto... — ela disse, o tom tão sombrio que fez um arrepio subir pela minha espinha. — Não testa a minha paciência. Não te matei naquela noite, mas posso te matar agora se preferir. Você quer?

Ela não estava brincando. Havia uma promessa de morte naquele tom, uma frieza que me fez engolir em seco. Levantei as mãos, tentando acalmá-la.

— Não quero, não, senhorita — disse, forçando um tom leve, mas meu coração batia rápido. “Essa mulher é um vulcão”, pensei, mantendo o sorriso no rosto para não mostrar o quanto ela me intimidava.

— Ótimo — ela retrucou, virando-se para se afastar, o esquilo ainda balançando em sua mão.

— Aonde você vai? — perguntei, me levantando rápido, sentindo a tontura voltar por um momento.

— Preparar meu esquilo — ela respondeu, sem nem olhar para trás.

— E quanto a mim? — insisti, começando a segui-la, mesmo sabendo que isso provavelmente a irritaria ainda mais.

— Por isso mesmo eu falei que você precisava caçar. Vá pegar o seu — ela disse, o tom impaciente, como se eu fosse uma criança teimosa.

— Sério? Eu não sei caçar — admiti, esfregando a nuca. Era verdade. Sobreviver nas ruas de Tristária era uma coisa, mas caçar na floresta? Isso era um território completamente novo.

— Pra tudo tem uma primeira vez — ela retrucou, sem nenhuma compaixão na voz.

Suspirei, mas continuei atrás dela. Havia algo nela que me puxava, como se eu precisasse entender quem ela era, o que a movia. — Você pode pelo menos me dizer o seu nome? — perguntei, tentando soar casual.

Ela parou por um instante, e eu achei que não responderia. Mas então, quase como se estivesse cedendo contra a própria vontade, ela disse: — Aris.

— Certo, Aris... é um nome bonito — comentei, sorrindo, apesar da dor no rosto.

— Cala a boca, sua voz me irrita — ela disparou, acelerando o passo.

“Que mulher”, pensei, balançando a cabeça enquanto a seguia. “O que ela tem de bonita, tem de brava.” Mas, mesmo com a dor latejando no meu rosto e a certeza de que ela poderia me matar a qualquer momento, eu não conseguia parar de segui-la. Havia algo em Aris que me fazia querer saber mais, mesmo que isso significasse arriscar minha própria vida.

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