Tristária Cidade do Inferno

A noite finalmente caiu, e com ela veio o manto de sombras que eu tanto amava. O céu de Tristária estava encoberto por nuvens esparsas, mas a lua cheia conseguia vazar sua luz prateada, iluminando as ruas de forma irregular, como se escolhesse o que revelar e o que esconder. Coloquei o capuz sobre a cabeça, os fios platinados dos meus cabelos escondidos sob o tecido escuro. Era hora de partir. Meus pés conheciam o caminho para a cidade como se fosse uma extensão do meu próprio corpo, cada trilha na floresta, cada pedra solta, cada galho baixo. Eu era uma sombra entre as árvores, movendo-me com a graça de um predador, silenciosa, letal. Meu coração batia firme, mas não acelerado eu havia aprendido a controlar o medo há muito tempo. Ele não tinha mais espaço em mim.

Quando cheguei às bordas de Tristária, a transição da floresta para a cidade foi como atravessar um portal para outro mundo. O ar puro deu lugar a um fedor de esgoto, podridão e desespero. As ruas eram um labirinto de sujeira, pavimentadas com lama e restos do que um dia poderiam ter sido sonhos. Para minha sorte, meu rosto não era conhecido aqui. A Deusa da Noite era uma lenda, um espectro que assombrava os pesadelos dos poderosos, mas ninguém sabia quem eu era. Todas as vezes que me viram, eu usava a máscara uma peça de couro preto, moldada para cobrir metade do meu rosto, deixando apenas meus olhos violeta expostos, brilhando como faróis na escuridão. Nem mesmo Oliver, aquele verme, sabia quem eu era, apesar de ter me deixado viver naquela noite fatídica. Ele achava que eu era apenas uma garotinha assustada, uma vítima que ele podia descartar. Ele estava errado.

As ruas de Tristária eram um retrato da decadência. Pessoas feridas jaziam no chão, seus gemidos abafados pela indiferença de quem passava. Crianças com roupas rasgadas, os rostos sujos de terra e lágrimas, estendiam as mãos trêmulas pedindo esmolas, seus olhos grandes demais para corpos tão frágeis. Mulheres grávidas arrastavam-se com dificuldade, seus ventres pesados parecendo mais uma maldição do que uma bênção. E então havia os corpos. Corpos mortos, abandonados como lixo, inchados, apodrecendo há semanas, o cheiro misturando-se ao ar úmido da noite. Eu já tinha visto isso tudo antes, tantas vezes que deveria estar cega para a miséria. Mas não estava. Cada cena cortava um pouco mais fundo, reacendendo a chama da minha raiva, do meu propósito. Oliver e seus homens fizeram isso. Eles transformaram Tristária nesse inferno.

Desviei o olhar, tentando me concentrar no meu objetivo informações. Eu precisava de pistas sobre onde Oliver estava, sobre seus próximos movimentos. Mas então, do canto do olho, vi algo que me fez parar. Um garoto, talvez da minha idade, uns 20 anos, encostado contra uma parede quebrada. Ele estava sujo, o cabelo castanho desgrenhado caindo sobre os olhos, o corpo magro coberto por farrapos. Havia sangue seco em sua camisa, e ele segurava o braço como se doesse. Seus olhos, porém, eram o que me prenderam. Havia algo neles, uma centelha que eu conhecia muito bem. Era a mesma que eu via no espelho todas as manhãs.

Eu deveria ter continuado. Deveria ter ignorado, seguido meu caminho, focado na missão. Mas meu coração esse traidor teimoso ainda era fraco demais. Xinguei-me mentalmente por isso, por ainda sentir pena, por ainda me importar. Com um suspiro, me abaixei na frente dele, estendendo a mão.

— Precisa de ajuda? — perguntei, minha voz mais suave do que eu gostaria.

O garoto levantou a cabeça, e seus olhos encontraram os meus. Por um instante, achei que ele aceitaria, mas então ele deu um tapa na minha mão, o movimento rápido e defensivo.

— Não toque em mim — ele cuspiu, a voz rouca, carregada de desconfiança.

Fiquei em silêncio, surpresa, mas não ofendida. "Que garoto ignorante", pensei, estreitando os olhos. Mas então vi de novo aquele brilho em seu olhar. Não era apenas raiva ou medo. Era algo mais profundo, algo que eu conhecia intimamente: sede. Sede por sangue, por vingança, por justiça. Era o mesmo fogo que queimava em mim, o mesmo vazio que me impulsionava. Ele não era apenas um garoto ferido. Ele era como eu.

Levantei-me lentamente, limpando as mãos na capa como se pudesse apagar o gesto de fraqueza.

— Ok, pode ficar aí no chão. Não é problema meu se você acabar morrendo — falei, minha voz agora fria, cortante como a lâmina que eu carregava.

Estava prestes a virar e seguir meu caminho quando ele falou, a voz mais baixa, quase hesitante.

— Ei.

Virei o rosto, olhando-o por cima do ombro, o capuz sombreando metade do meu rosto. Ele me encarava, os olhos ainda desconfiados, mas com algo novo: talvez arrependimento.

— Me desculpe pela forma rude — ele disse. — Pode me ajudar?

Suspirei, irritada comigo mesma por não conseguir simplesmente ignorá-lo. Caminhei até ele com passos lentos, estendi a mão novamente e o ajudei a se levantar. Ele era mais alto do que eu imaginava, mas magro, quase frágil. Ainda assim, havia uma força em sua postura, uma determinação que não combinava com os trapos que vestia.

— Qual é o seu nome? — ele perguntou, limpando o rosto com a manga suja.

— É melhor que não saiba — respondi, mantendo a voz firme, sem espaço para intimidade.

Ele franziu a testa, confuso, mas não insistiu. — Meu nome é Louis — ele disse, como se isso fosse me fazer mudar de ideia.

Assenti, sem dizer mais nada. Antes que a conversa pudesse continuar, o som de cascos de cavalos ecoou pelas ruas, um trovão baixo que fez meu coração disparar por instinto. Virei a cabeça na direção do barulho, e lá estavam eles: homens do governo, as armaduras reluzindo sob a luz da lua, as espadas penduradas nas cinturas. Eram os cães de Oliver, seus capangas, os mesmos que espalhavam terror em nome da “ordem”. Meu sangue ferveu, mas eu sabia que não era hora de lutar. Não agora, não aqui.

Virei-me e comecei a andar rápido, o capuz baixo, os olhos fixos à frente. Louis, sem entender, olhou para os cavaleiros e depois para mim, antes de começar a me seguir.

— Ei, espere. Onde você vai? — ele perguntou, a voz carregada de curiosidade.

— Embora — respondi secamente, acelerando o passo.

Ele olhou para trás, para os cavaleiros que se aproximavam, e depois para mim. — Está fugindo deles?

Num movimento rápido, puxei a faca da minha cintura e a encostei em sua garganta, o metal frio brilhando contra a pele dele. Meus olhos violeta o encararam, e eu deixei a ameaça pairar no ar.

— Fique longe. Eu não te conheço. Se continuar me seguindo, eu vou te matar — sibilei, cada palavra afiada como a lâmina.

Louis levantou as mãos em rendição, um leve sorriso nos lábios, como se achasse a situação divertida. — Nunca vi olhos como esses... — ele murmurou, quase para si mesmo.

Instintivamente, coloquei a mão livre sobre um dos olhos, cobrindo-o, como se pudesse esconder o que me tornava tão diferente. Virei-me para frente, pronta para desaparecer nas sombras, mas Louis não desistiu.

— Me deixe ir com você — ele insistiu, dando um passo na minha direção.

— Nem pensar — retruquei, sem parar.

— Por quê? — ele perguntou, a voz agora mais firme, quase desafiadora.

— Não te conheço. Não vou confiar em alguém só porque estendi a mão para ele — respondi, minha voz cortante como o vento frio que soprava pelas ruas.

— Eu não tenho para onde ir — ele disse, e havia uma vulnerabilidade em sua voz que quase me fez hesitar. Quase.

— Isso já não é problema meu — retruquei, acelerando o passo.

— Eu posso ajudar você, Deusa da Noite — ele disse, e aquelas palavras me fizeram congelar.

Virei o rosto lentamente, meus olhos estreitados, o coração batendo mais rápido agora. — Como sabe quem eu sou? — perguntei, a voz baixa, perigosa.

Louis apontou para minha cintura, onde a máscara preta pendia, mal escondida sob a capa. — Você não escondeu ela muito bem — ele disse, com um leve tom de provocação. — Ouvi boatos que a Deusa da Noite foi vista com essa máscara.

— Desgraçado — murmurei, avançando com rapidez, a faca novamente apontada para ele. Meus olhos ardiam de raiva, mas antes que eu pudesse decidir o que fazer, outro som cortou o ar. Passos. Mais cavaleiros se aproximando, suas vozes ecoando pelas ruas estreitas.

Estalei a língua, frustrada, e agarrei Louis pela camisa, puxando-o comigo enquanto corria para uma viela escura. — Ai, devagar... eu estou machucado — ele reclamou, tropeçando enquanto tentava acompanhar meu ritmo.

Eu não respondi. Minha mente estava focada em escapar, em manter minha identidade oculta, em sobreviver mais uma noite. Mas enquanto corria, com Louis sendo arrastado atrás de mim, uma parte de mim aquela parte fraca, teimosa se perguntava quem ele era. E por que, contra todo o meu bom senso, eu não conseguia simplesmente abandoná-lo.

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Comments

Bipana Telaija Gurung

Bipana Telaija Gurung

Estou nervosa para ver o que acontecerá a seguir!

2025-10-15

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