Eu não sabia por que deixei aquele homem vivo. Louis. O nome dele ecoava na minha cabeça como um erro que eu não conseguia corrigir. Cada fibra do meu ser gritava que ele era perigoso, que sabia demais, que sua presença era uma ameaça. Eu deveria ter acabado com ele naquele beco, com a faca na garganta dele, ou na floresta, quando ele estava desacordado. Um golpe limpo, e pronto um problema a menos. Mas meu coração, esse traidor, esse pedaço fraco de mim que eu tanto desprezava, dizia para não fazer isso. “Não o mate”, ele sussurrava, como se fosse uma ordem que eu não podia ignorar. E isso era uma merda. Para mim, compaixão era fraqueza, um luxo que eu não podia me permitir. Eu precisava endurecer meu coração, transformá-lo em pedra, em gelo, em algo que não sentisse nada. Amor, piedade, confiança essas coisas eram correntes, e eu não podia me dar ao luxo de ser acorrentada. Não agora, não quando o mundo ao meu redor era feito de traições, decepções e, acima de tudo, mortes.
Os dias passaram, e, contra todo o meu bom senso, Louis ainda estava aqui. Eu comecei a treiná-lo, não por bondade, mas por necessidade. Ele não seria um peso morto, não enquanto estivesse ao meu lado. Se ele queria viver, que aprendesse a se virar. Mas, para ser honesta, ele era um desastre. Caçar? Ele tropeçava em cada galho, fazia barulho o suficiente para espantar qualquer animal num raio de quilômetros. Lutar? Sua postura era horrível, e ele segurava uma faca como se fosse uma colher. Eu o xingava mentalmente a cada tentativa frustrada, mas continuava ensinando, porque, no fundo, eu sabia que ele precisava disso. Ou talvez eu precisasse. “Por que estou fazendo isso?”, pensava, enquanto o observava tentar, e falhar, em acertar um alvo com o arco.
Acabei abrigando-o na minha casa — se é que se pode chamar assim. Era uma cabana abandonada no meio da floresta, um lugar que encontrei anos atrás, quando fugi de Tristária. Não tinha muito: uma lareira improvisada, uma mesa torta, um colchão de palha que rangia a cada movimento. Mas eu a mantinha limpa, arrumada, como se a ordem pudesse compensar o caos dentro de mim. Aqui, eu caçava para sobreviver, cuidava de mim mesma, vivia sozinha. Sempre sozinha. Louis não estava aqui porque eu gostava dele, ou porque sentia algo por ele. Não. Ele era... útil. Ou pelo menos era o que eu dizia a mim mesma. Eu tinha planos. Talvez ele pudesse ser uma distração, uma isca, algo descartável para me ajudar a chegar até Oliver. “Ele não significa nada”, repetia para mim mesma, mas, às vezes, quando ele falava ou me olhava com aqueles olhos curiosos, eu sentia algo que não queria nomear.
Era uma noite fria, e estávamos sentados do lado de fora da cabana, o crepitar da fogueira preenchendo o silêncio. As chamas dançavam, lançando sombras no rosto de Louis, que parecia não saber o que fazer com as mãos. Ele me encarava, mas toda vez que nossos olhos se encontravam, ele desviava o olhar, como se tivesse medo de me enfrentar. Era irritante.
— Vai ficar me encarando feito um idiota sem dizer nada? — perguntei, minha voz cortante, quebrando o silêncio.
Louis limpou a garganta, claramente desconfortável. — Então... eu tenho uma pergunta — ele disse, hesitante.
— Diga — respondi, sem tirar os olhos da fogueira.
— Por que se tornou a Deusa da Noite? — ele perguntou, e havia uma curiosidade genuína em sua voz.
Franzi a testa, confusa. — Em que sentido?
Ele deu de ombros, como se estivesse tentando parecer casual. — Bom, você sabe... por que mata pessoas?
Eu não o olhei. Meus olhos permaneceram fixos nas chamas, mas minha mente voltou àquela noite, ao sangue, aos gritos dos meus pais. — Tenho planos para esse mundo — respondi, minha voz fria, controlada. — E tenho uma vingança a ser cumprida.
— Vingança?... — ele repetiu, a palavra pairando no ar como uma pergunta que ele não ousava completar.
Assenti, mantendo a expressão neutra. — Mas isso não é da sua conta, então não se envolva.
“Você não faz ideia do pôr que está aqui”, pensei, mas não disse. Em vez disso, respondi: — Você tem razão, vai ajudar. Mas não dessa forma.
— Você não vai mesmo confiar em mim? — ele perguntou, a voz tingida de frustração.
— Eu já disse que não confio em ninguém — retruquei, minha paciência começando a se esgotar.
Louis suspirou, balançando a cabeça. — Você é muito complicada de entender.
Pela primeira vez, virei o rosto para ele, meus olhos violeta encontrando os dele. — Ainda bem que sou — disse, um leve tom de desafio na voz.
Ele riu, um som baixo, quase nervoso. — Não, isso é ruim. Não é bom viver com ódio no coração sempre.
Suas palavras me acertaram como uma flecha, mas eu não deixei que ele visse. “Quem ele pensa que é para me dizer como devo viver?”, pensei, apertando os punhos. — Todos nós temos um lado sombrio — respondi, minha voz afiada. — Não banque o bom moço. Eu vi isso nos seus olhos quando te encontrei pela primeira vez.
Ele ficou em silêncio por um momento, como se estivesse pesando minhas palavras. — É verdade — admitiu, finalmente. — Eu estava com raiva. Mas eu já aceitei.
— Por que estava com raiva? — perguntei, mais por curiosidade do que por interesse genuíno.
Ele me olhou, um sorriso irônico surgindo em seu rosto. — E eu devo confiar em você?
Estreitei os olhos, sentindo a raiva borbulhar novamente. Ele riu, levantando as mãos em rendição. — Desculpe, só estava te imitando.
— Da próxima vez, eu corto sua língua — ameacei, minha voz tão fria que até eu me surpreendi.
— Tá, tá, já entendi — ele disse, ainda sorrindo, como se minha ameaça fosse uma piada. Ele fez uma pausa antes de continuar. — Mas, voltando ao assunto... eu estava cansado de viver na rua.
— A quanto tempo você vivia lá? — perguntei, sem saber por que estava deixando a conversa continuar.
— Desde criança — ele respondeu, a voz mais baixa agora, quase melancólica. — Eles tomaram tudo de mim. Minha família, meus amigos, tudo.
Eu não esperava por isso. Por um momento, minhas defesas fraquejaram, e senti algo que não queria sentir: empatia. — De mim também — murmurei, quase sem querer.
— É mesmo? — ele perguntou, os olhos arregalados, como se tivesse encontrado uma conexão que não esperava.
Assenti, relutante, desejando não ter dito nada. — E é por isso que eu vou matar todos eles — continuei, minha voz endurecendo novamente. — Até que não haja um para contar a história.
Louis me encarou, e por um instante, vi algo em seus olhos: não era medo, mas uma mistura de respeito e... preocupação? — Às vezes, você me assusta — ele disse, quase em um sussurro.
Pela primeira vez, um sorriso de canto curvou meus lábios. — Só às vezes? — perguntei, o tom quase provocador.
Ele riu, um som genuíno que parecia deslocado naquela noite fria. — Não, pra ser sincero, é sempre.
Eu não respondi, mas algo dentro de mim se mexeu, algo que eu não queria reconhecer. “Ele é descartável”, repeti para mim mesma, tentando apagar o calor que suas palavras traziam. Mas, enquanto o observava rir, com a luz da fogueira dançando em seu rosto, uma pequena parte de mim, aquela que eu tentava tão desesperadamente silenciar se perguntou se, talvez, eu estivesse errada sobre ele.
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Atualizado até capítulo 39
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