Reencarnação Sombria
O sol de fim de tarde queimava o asfalto rachado da rua estreita, e a brisa quente misturada com cheiro de churrasco e gasolina era o retrato perfeito do bairro onde Kira cresceu. Nada de mansões italianas, nada de jantares chiques com talheres dourados — aqui, era Brasil raiz. Era vida real, com barulho de moto na esquina, cachorro latindo atrás de portão e vizinha fofoqueira gritando da janela.
Kira andava com as mãos no bolso da calça larga, o cabelo bagunçado preso de qualquer jeito, um olhar de quem sabia mais do que deveria e um sorriso torto no rosto. Aos 19 anos, já tinha visto e vivido coisas que muita gente adulta nem imaginava.
E ao lado dela, sempre, como sombra e como luz, estavam Luna Carvalho e Rafael Domingues.
— Se a gente fosse um time de super-heróis, você seria a vilã, Kira — comentou Luna, equilibrando uma lata de refrigerante na cabeça enquanto caminhava. — Aquela que solta uma frase foda e explode o prédio.
Kira riu, um riso rouco e debochado.
— Cala a boca, Luna. Se eu fosse vilã, vocês já tinham morrido faz tempo. — e em seguida, completou: — Mas relaxa, eu só sou uma pessoa de humor refinado e vocabulário… especial.
— Especial o caralho — retrucou Rafael, chutando uma pedra no caminho. — Você xinga mais que pedreiro preso no trânsito.
— E daí? — Kira levantou as sobrancelhas. — Alguém tem que manter a tradição brasileira viva, porra.
Eles riram juntos, o tipo de riso que só amigos de infância conseguem compartilhar, porque carregava anos de cumplicidade, segredos e até alguns pecados que só os três conheciam.
E era aí que entravam os códigos.
— “X” — disse Luna de repente, encarando Rafael com seriedade.
Rafael arqueou uma sobrancelha. — Que foi?
— Nada, só testando. — Ela deu um gole no refrigerante e sorriu maliciosa.
Kira revirou os olhos. — Vocês são uns idiotas, sabia? Mas se não fossem, não seriam meus idiotas.
Eles pararam em frente ao velho campinho do bairro, onde já tinham passado metade da infância chutando bola, brigando e fazendo planos absurdos de dominação mundial. O sol estava descendo, e a sombra comprida dos três se estendia no chão rachado.
— Sabe o que é engraçado? — disse Kira, chutando a pedra que Rafael tinha mandado longe antes. — A gente cresceu nesse fim de mundo, sem nada, mas eu ainda acho melhor que muito condomínio chique.
— Claro, porque aqui você pode xingar à vontade sem que a vizinha te denuncie no grupo do zap — debochou Rafael.
— Verdade — completou Luna. — Se a Kira tivesse nascido rica, já tinha sido expulsa de cinco escolas de madame só por falar "vai tomar no cu" no intervalo.
Kira gargalhou, jogando a cabeça para trás. — Mano, imagina eu de sainha rosa, tomando chá com biscoitinho? Só se fosse pra enfiar o biscoito no cu de alguém.
Eles riram tanto que a risada ecoou pela rua.
E foi nesse riso que veio uma lembrança — como sempre vinha, de repente, invadindo a mente de Kira como um soco. A imagem da mãe sorrindo, a do pai chamando pelo apelido que só ele usava, o dia em que tudo tinha mudado. A primeira vez que ela entendeu o que era perder alguém.
Kira ficou em silêncio por alguns segundos, e os dois perceberam. Sempre percebiam.
Luna passou o braço pelo ombro dela. — Ei… "Fênix".
Kira respirou fundo, fechando os olhos. O código. A palavra que significava recomeço, força, que só eles três sabiam. Funcionava como um lembrete: eles estavam juntos, mesmo quando o mundo parecia querer destruir tudo.
— Valeu — murmurou Kira, abrindo os olhos de novo com aquele sorriso torto que escondia o peso. — Bora, antes que eu fique sentimental e comece a chorar.
— Você? Chorar? — Rafael arregalou os olhos fingindo choque. — O dia que isso acontecer eu tatuo um unicórnio rosa na testa.
— Quero ver prometer e não cumprir, viado — rebateu Kira, dando um soco de leve no braço dele.
E eles seguiram andando, três contra o mundo. Sempre.
Eles entraram na casa da Kira sem nem bater. Aliás, nunca bateram. A casa já era praticamente deles também.
— Já aviso que não tem nada pra comer — gritou Kira, chutando o tênis na sala. — Só se vocês curtirem miojo cru.
— Porra, melhor que ficar sem nada — disse Rafael, largando a mochila no sofá.
Luna foi direto pra cozinha, como se fosse dona do lugar. Abriu o armário e começou a revirar pacotes. — Tem miojo de carne, galinha e… mano, que sabor é esse aqui? "Costela com molho barbecue"? Quem foi o doente que inventou isso?
— Deve ser coisa do Rafa — acusou Kira, já jogando o corpo no sofá e pegando o controle remoto. — Esse desgraçado come qualquer coisa que tenha sal.
— Cala a boca, você é quem come chocolate com miojo — rebateu ele, fingindo indignação.
— E fica bom! — gritou Kira da sala. — Só gente com paladar refinado entende.
Luna voltou da cozinha com três pacotes de miojo. — Pronto, vamos cozinhar essa merda e ver quem morre primeiro.
Minutos depois, estavam os três na mesa, discutindo quem ia comer o último pacote como se fosse questão de vida ou morte.
— Eu mereço — disse Kira, apontando pra si mesma. — Eu sou a alma desse grupo.
— Alma é o caralho — retrucou Rafael. — Eu sou o cérebro.
— Então sobra o quê pra mim? — perguntou Luna.
Os dois olharam pra ela e falaram em uníssono:
— O fígado.
Luna jogou um macarrão na cara deles.
Eles gargalharam tanto que quase engasgaram com o miojo.
Mas a leveza durou pouco.
Quando saíram de casa mais tarde, foram até uma rua próxima comprar refrigerante. Foi aí que encontraram um grupo de caras mais velhos, conhecidos da vizinhança. Daqueles que adoravam provocar os mais novos só pra se sentir fodões.
Um deles, alto e com cara de idiota, deu uma olhada de cima a baixo em Kira e assobiou.
— E aí, princesa, quanto tá cobrando hoje?
Luna ficou vermelha de raiva. Rafael fechou o punho. Mas Kira? Kira riu. Riu alto, riu debochada, riu como se aquilo não fosse nada.
— Porra, valeu pela cantada, mas eu não pego gente com pau pequeno.
O grupo inteiro riu, inclusive os próprios amigos do cara. Ele fechou a cara, sem graça.
— Repete isso, vadia.
Kira deu um passo à frente, encarando direto, sem piscar. — Pau pequeno. Quer que eu desenhe?
O silêncio pesou. Rafael e Luna já estavam em posição, prontos pro que viesse. Eles sabiam: se alguém encostasse na Kira, o caos ia começar.
O cara bufou, empurrando Kira com a mão no ombro.
E antes que terminasse o movimento, Kira já tinha segurado o braço dele, torcido pro lado e empurrado contra a parede. Rápido, direto, sem frescura.
— Escuta aqui, babaca — rosnou ela, bem perto do rosto dele. — Se tentar pagar de macho comigo de novo, eu arranco sua língua e enfio no seu rabo.
Soltou o braço dele com violência. O cara recuou, vermelho de raiva, mas sem coragem de revidar. Os amigos dele deram risada de novo, agora dele.
Kira se virou para Luna e Rafael como se nada tivesse acontecido. — Bora comprar a porra do refri.
E seguiram andando, como se fosse só mais um dia comum.
Quando chegaram no mercadinho da esquina, Kira ainda tava rindo.
— Vocês viram a cara do idiota? — ela se curvava de tanto rir. — Acho que até agora ele tá tentando entender o que aconteceu.
Rafael balançou a cabeça. — Um dia tu ainda vai arrumar encrenca grande, Kira.
— “Um dia”? — ela arqueou a sobrancelha. — Você quis dizer “mais um dia”, né?
Luna riu alto. — Verdade. A Kira respira confusão.
Pegaram duas garrafas de refrigerante e algumas besteiras, mas na hora de pagar, Kira percebeu que não tinha trazido carteira.
— Foda-se, é você que paga, Rafa.
— Por quê eu? — ele bufou.
— Porque eu sou linda. — respondeu sem piscar.
Luna quase cuspiu de rir, enquanto Rafael pagava resmungando.
Na volta, eles resolveram cortar caminho por um terreno baldio. O lugar era meio escuro, cheio de mato, mas eles já estavam acostumados.
— Mano, esse lugar parece cenário de filme de terror — comentou Luna, olhando em volta.
— Relaxa, se aparecer um assassino em série, eu boto ele pra correr — disse Kira, dando um chute numa lata velha. — Ninguém mexe com nós três.
Rafael olhou pras duas e sorriu de canto. — “X”.
Luna riu. — É, “X”.
Kira ergueu o punho fechado, e os três bateram um no outro, no jeito secreto que só eles sabiam. O código que significava “a gente tá junto, não importa o que aconteça”.
Mais tarde, já de madrugada, os três estavam deitados no terraço da casa de Kira, olhando pro céu.
— Se liga naquela estrela ali — disse Luna, apontando. — Parece um “X”.
— Ou um pau torto — retrucou Kira, séria.
Rafael gargalhou. — Só você mesmo pra transformar constelação em piroca.
— Ué, tô falando a verdade. — Ela deu de ombros. — Mas pensa, se eu morrer algum dia, vou virar uma estrela dessa. Só pra continuar enchendo o saco de vocês.
O silêncio caiu por alguns segundos. O tipo de silêncio que não era pesado, mas que deixava uma pontada no coração.
Rafael virou a cabeça e olhou pra ela. — Nem brinca com isso, Kira.
Ela sorriu de canto, sem responder.
Luna, tentando quebrar o clima, falou: — Quando a gente morrer, vai ser os três juntos. Igual sempre foi.
— Fênix — disse Kira baixinho.
— Fênix — repetiram os dois.
Eles ficaram em silêncio outra vez, ouvindo apenas o som da cidade distante, cada um perdido nos próprios pensamentos.
O vento da noite batia frio no terraço. Luna já bocejava alto, abraçada no próprio casaco.
— Eu vou cair dura aqui mesmo — murmurou. — Não sinto mais nem meu dedo mindinho.
— Relaxa, se congelar, eu boto fogo em você e a gente se aquece — respondeu Kira, séria, como se fosse a solução mais lógica do mundo.
— Você é doente — Luna deu risada, levantando-se com esforço. — Vou deitar, já deu minha cota de palhaçada por hoje.
Rafael se levantou logo atrás dela. — Bora. Amanhã a gente tem aula cedo e, adivinha, quem vai ser a primeira a reclamar?
— A Kira, óbvio — respondeu Luna, sem pensar duas vezes.
Kira levantou devagar, esticando o corpo como um gato preguiçoso. — Primeiro: eu não reclamo. Eu protesto. Segundo: foda-se, vou faltar.
— Você fala isso todo dia e acaba indo — retrucou Rafael. — Porque se faltar, perde a chance de esfregar na cara dos professores que é mais inteligente que eles.
— Tá, ponto pro nerd — ela levantou as mãos em rendição. — Mas amanhã eu só vou se tiver chocolate no recreio.
Desceram as escadas em silêncio, já acostumados com o chiado da casa à noite. Cada piso rangia como se fosse reclamar do peso deles.
No corredor, Luna abriu a porta do quarto de hóspedes. — Boa noite, delinquentes.
— Boa noite, fígado — respondeu Kira, e levou um chinelo voando como resposta.
Rafael riu baixo e foi pro quarto dele, ainda resmungando. — Essa casa devia ter isolamento acústico, não dá pra viver com você, Kira.
Ela mostrou o dedo do meio, bocejando. — Vai sonhar comigo, Domingues.
Sozinha no quarto, Kira jogou o corpo na cama sem nem se trocar. Ficou olhando pro teto, lembrando das risadas, da briga com o babaca na rua e da constelação que parecia um pau torto.
Um sorriso escapou antes que o sono a vencesse.
E ali, no silêncio da madrugada, parecia que nada poderia separar os três.
Como se fossem eternos.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 82
Comments