O sol de fim de tarde queimava o asfalto rachado da rua estreita, e a brisa quente misturada com cheiro de churrasco e gasolina era o retrato perfeito do bairro onde Kira cresceu. Nada de mansões italianas, nada de jantares chiques com talheres dourados — aqui, era Brasil raiz. Era vida real, com barulho de moto na esquina, cachorro latindo atrás de portão e vizinha fofoqueira gritando da janela.
Kira andava com as mãos no bolso da calça larga, o cabelo bagunçado preso de qualquer jeito, um olhar de quem sabia mais do que deveria e um sorriso torto no rosto. Aos 19 anos, já tinha visto e vivido coisas que muita gente adulta nem imaginava.
E ao lado dela, sempre, como sombra e como luz, estavam Luna Carvalho e Rafael Domingues.
— Se a gente fosse um time de super-heróis, você seria a vilã, Kira — comentou Luna, equilibrando uma lata de refrigerante na cabeça enquanto caminhava. — Aquela que solta uma frase foda e explode o prédio.
Kira riu, um riso rouco e debochado.
— Cala a boca, Luna. Se eu fosse vilã, vocês já tinham morrido faz tempo. — e em seguida, completou: — Mas relaxa, eu só sou uma pessoa de humor refinado e vocabulário… especial.
— Especial o caralho — retrucou Rafael, chutando uma pedra no caminho. — Você xinga mais que pedreiro preso no trânsito.
— E daí? — Kira levantou as sobrancelhas. — Alguém tem que manter a tradição brasileira viva, porra.
Eles riram juntos, o tipo de riso que só amigos de infância conseguem compartilhar, porque carregava anos de cumplicidade, segredos e até alguns pecados que só os três conheciam.
E era aí que entravam os códigos.
— “X” — disse Luna de repente, encarando Rafael com seriedade.
Rafael arqueou uma sobrancelha. — Que foi?
— Nada, só testando. — Ela deu um gole no refrigerante e sorriu maliciosa.
Kira revirou os olhos. — Vocês são uns idiotas, sabia? Mas se não fossem, não seriam meus idiotas.
Eles pararam em frente ao velho campinho do bairro, onde já tinham passado metade da infância chutando bola, brigando e fazendo planos absurdos de dominação mundial. O sol estava descendo, e a sombra comprida dos três se estendia no chão rachado.
— Sabe o que é engraçado? — disse Kira, chutando a pedra que Rafael tinha mandado longe antes. — A gente cresceu nesse fim de mundo, sem nada, mas eu ainda acho melhor que muito condomínio chique.
— Claro, porque aqui você pode xingar à vontade sem que a vizinha te denuncie no grupo do zap — debochou Rafael.
— Verdade — completou Luna. — Se a Kira tivesse nascido rica, já tinha sido expulsa de cinco escolas de madame só por falar "vai tomar no cu" no intervalo.
Kira gargalhou, jogando a cabeça para trás. — Mano, imagina eu de sainha rosa, tomando chá com biscoitinho? Só se fosse pra enfiar o biscoito no cu de alguém.
Eles riram tanto que a risada ecoou pela rua.
E foi nesse riso que veio uma lembrança — como sempre vinha, de repente, invadindo a mente de Kira como um soco. A imagem da mãe sorrindo, a do pai chamando pelo apelido que só ele usava, o dia em que tudo tinha mudado. A primeira vez que ela entendeu o que era perder alguém.
Kira ficou em silêncio por alguns segundos, e os dois perceberam. Sempre percebiam.
Luna passou o braço pelo ombro dela. — Ei… "Fênix".
Kira respirou fundo, fechando os olhos. O código. A palavra que significava recomeço, força, que só eles três sabiam. Funcionava como um lembrete: eles estavam juntos, mesmo quando o mundo parecia querer destruir tudo.
— Valeu — murmurou Kira, abrindo os olhos de novo com aquele sorriso torto que escondia o peso. — Bora, antes que eu fique sentimental e comece a chorar.
— Você? Chorar? — Rafael arregalou os olhos fingindo choque. — O dia que isso acontecer eu tatuo um unicórnio rosa na testa.
— Quero ver prometer e não cumprir, viado — rebateu Kira, dando um soco de leve no braço dele.
E eles seguiram andando, três contra o mundo. Sempre.
Eles entraram na casa da Kira sem nem bater. Aliás, nunca bateram. A casa já era praticamente deles também.
— Já aviso que não tem nada pra comer — gritou Kira, chutando o tênis na sala. — Só se vocês curtirem miojo cru.
— Porra, melhor que ficar sem nada — disse Rafael, largando a mochila no sofá.
Luna foi direto pra cozinha, como se fosse dona do lugar. Abriu o armário e começou a revirar pacotes. — Tem miojo de carne, galinha e… mano, que sabor é esse aqui? "Costela com molho barbecue"? Quem foi o doente que inventou isso?
— Deve ser coisa do Rafa — acusou Kira, já jogando o corpo no sofá e pegando o controle remoto. — Esse desgraçado come qualquer coisa que tenha sal.
— Cala a boca, você é quem come chocolate com miojo — rebateu ele, fingindo indignação.
— E fica bom! — gritou Kira da sala. — Só gente com paladar refinado entende.
Luna voltou da cozinha com três pacotes de miojo. — Pronto, vamos cozinhar essa merda e ver quem morre primeiro.
Minutos depois, estavam os três na mesa, discutindo quem ia comer o último pacote como se fosse questão de vida ou morte.
— Eu mereço — disse Kira, apontando pra si mesma. — Eu sou a alma desse grupo.
— Alma é o caralho — retrucou Rafael. — Eu sou o cérebro.
— Então sobra o quê pra mim? — perguntou Luna.
Os dois olharam pra ela e falaram em uníssono:
— O fígado.
Luna jogou um macarrão na cara deles.
Eles gargalharam tanto que quase engasgaram com o miojo.
Mas a leveza durou pouco.
Quando saíram de casa mais tarde, foram até uma rua próxima comprar refrigerante. Foi aí que encontraram um grupo de caras mais velhos, conhecidos da vizinhança. Daqueles que adoravam provocar os mais novos só pra se sentir fodões.
Um deles, alto e com cara de idiota, deu uma olhada de cima a baixo em Kira e assobiou.
— E aí, princesa, quanto tá cobrando hoje?
Luna ficou vermelha de raiva. Rafael fechou o punho. Mas Kira? Kira riu. Riu alto, riu debochada, riu como se aquilo não fosse nada.
— Porra, valeu pela cantada, mas eu não pego gente com pau pequeno.
O grupo inteiro riu, inclusive os próprios amigos do cara. Ele fechou a cara, sem graça.
— Repete isso, vadia.
Kira deu um passo à frente, encarando direto, sem piscar. — Pau pequeno. Quer que eu desenhe?
O silêncio pesou. Rafael e Luna já estavam em posição, prontos pro que viesse. Eles sabiam: se alguém encostasse na Kira, o caos ia começar.
O cara bufou, empurrando Kira com a mão no ombro.
E antes que terminasse o movimento, Kira já tinha segurado o braço dele, torcido pro lado e empurrado contra a parede. Rápido, direto, sem frescura.
— Escuta aqui, babaca — rosnou ela, bem perto do rosto dele. — Se tentar pagar de macho comigo de novo, eu arranco sua língua e enfio no seu rabo.
Soltou o braço dele com violência. O cara recuou, vermelho de raiva, mas sem coragem de revidar. Os amigos dele deram risada de novo, agora dele.
Kira se virou para Luna e Rafael como se nada tivesse acontecido. — Bora comprar a porra do refri.
E seguiram andando, como se fosse só mais um dia comum.
Quando chegaram no mercadinho da esquina, Kira ainda tava rindo.
— Vocês viram a cara do idiota? — ela se curvava de tanto rir. — Acho que até agora ele tá tentando entender o que aconteceu.
Rafael balançou a cabeça. — Um dia tu ainda vai arrumar encrenca grande, Kira.
— “Um dia”? — ela arqueou a sobrancelha. — Você quis dizer “mais um dia”, né?
Luna riu alto. — Verdade. A Kira respira confusão.
Pegaram duas garrafas de refrigerante e algumas besteiras, mas na hora de pagar, Kira percebeu que não tinha trazido carteira.
— Foda-se, é você que paga, Rafa.
— Por quê eu? — ele bufou.
— Porque eu sou linda. — respondeu sem piscar.
Luna quase cuspiu de rir, enquanto Rafael pagava resmungando.
Na volta, eles resolveram cortar caminho por um terreno baldio. O lugar era meio escuro, cheio de mato, mas eles já estavam acostumados.
— Mano, esse lugar parece cenário de filme de terror — comentou Luna, olhando em volta.
— Relaxa, se aparecer um assassino em série, eu boto ele pra correr — disse Kira, dando um chute numa lata velha. — Ninguém mexe com nós três.
Rafael olhou pras duas e sorriu de canto. — “X”.
Luna riu. — É, “X”.
Kira ergueu o punho fechado, e os três bateram um no outro, no jeito secreto que só eles sabiam. O código que significava “a gente tá junto, não importa o que aconteça”.
Mais tarde, já de madrugada, os três estavam deitados no terraço da casa de Kira, olhando pro céu.
— Se liga naquela estrela ali — disse Luna, apontando. — Parece um “X”.
— Ou um pau torto — retrucou Kira, séria.
Rafael gargalhou. — Só você mesmo pra transformar constelação em piroca.
— Ué, tô falando a verdade. — Ela deu de ombros. — Mas pensa, se eu morrer algum dia, vou virar uma estrela dessa. Só pra continuar enchendo o saco de vocês.
O silêncio caiu por alguns segundos. O tipo de silêncio que não era pesado, mas que deixava uma pontada no coração.
Rafael virou a cabeça e olhou pra ela. — Nem brinca com isso, Kira.
Ela sorriu de canto, sem responder.
Luna, tentando quebrar o clima, falou: — Quando a gente morrer, vai ser os três juntos. Igual sempre foi.
— Fênix — disse Kira baixinho.
— Fênix — repetiram os dois.
Eles ficaram em silêncio outra vez, ouvindo apenas o som da cidade distante, cada um perdido nos próprios pensamentos.
O vento da noite batia frio no terraço. Luna já bocejava alto, abraçada no próprio casaco.
— Eu vou cair dura aqui mesmo — murmurou. — Não sinto mais nem meu dedo mindinho.
— Relaxa, se congelar, eu boto fogo em você e a gente se aquece — respondeu Kira, séria, como se fosse a solução mais lógica do mundo.
— Você é doente — Luna deu risada, levantando-se com esforço. — Vou deitar, já deu minha cota de palhaçada por hoje.
Rafael se levantou logo atrás dela. — Bora. Amanhã a gente tem aula cedo e, adivinha, quem vai ser a primeira a reclamar?
— A Kira, óbvio — respondeu Luna, sem pensar duas vezes.
Kira levantou devagar, esticando o corpo como um gato preguiçoso. — Primeiro: eu não reclamo. Eu protesto. Segundo: foda-se, vou faltar.
— Você fala isso todo dia e acaba indo — retrucou Rafael. — Porque se faltar, perde a chance de esfregar na cara dos professores que é mais inteligente que eles.
— Tá, ponto pro nerd — ela levantou as mãos em rendição. — Mas amanhã eu só vou se tiver chocolate no recreio.
Desceram as escadas em silêncio, já acostumados com o chiado da casa à noite. Cada piso rangia como se fosse reclamar do peso deles.
No corredor, Luna abriu a porta do quarto de hóspedes. — Boa noite, delinquentes.
— Boa noite, fígado — respondeu Kira, e levou um chinelo voando como resposta.
Rafael riu baixo e foi pro quarto dele, ainda resmungando. — Essa casa devia ter isolamento acústico, não dá pra viver com você, Kira.
Ela mostrou o dedo do meio, bocejando. — Vai sonhar comigo, Domingues.
Sozinha no quarto, Kira jogou o corpo na cama sem nem se trocar. Ficou olhando pro teto, lembrando das risadas, da briga com o babaca na rua e da constelação que parecia um pau torto.
Um sorriso escapou antes que o sono a vencesse.
E ali, no silêncio da madrugada, parecia que nada poderia separar os três.
Como se fossem eternos.
O despertador tocou às seis da manhã.
Kira abriu os olhos e a primeira coisa que pensou foi: “Quero morrer.”
Levantou arrastando os pés, xingando cada objeto no caminho.
— Filho da puta... desgraça... por que caralhos a escola não pega fogo logo? — reclamava, chutando a mochila.
No espelho, prendeu o cabelo de qualquer jeito. Camiseta larga, calça jeans rasgada, tênis preto e nada de maquiagem. Naturalmente gostosa, naturalmente sem paciência.
Desceu pra cozinha e encontrou Luna sentada, já pronta, mordendo uma maçã.
— Sério que você acorda cedo pra comer fruta? — Kira a encarou com nojo. — Isso é coisa de gente feliz.
— Bom dia pra você também, sol da minha vida. — Luna revirou os olhos. — Acorda cedo porque ao contrário de você, eu não gosto de passar fome.
— Se não passar fome, como vai valorizar o miojo? — Kira abriu o armário e puxou uma barra de chocolate, mordendo sem dó.
Nesse momento, Rafael entrou, uniformizado, cabelo bagunçado de propósito. Jogou a mochila no sofá. — Vocês duas não cansam de gritar logo cedo?
— Vai tomar no cu, Rafa — responderam as duas juntas.
Ele ergueu as mãos em rendição. — Tá bom, já entendi que o humor matinal tá ótimo.
Na escola, a cena foi ainda melhor.
Kira entrou com os dois atrás, marchando como se fosse dona do corredor. Todos sabiam: mexeu com um, mexeu com os três.
Um grupinho de meninas começou a cochichar quando ela passou. Aquelas típicas que viviam postando foto com legenda “good vibes”, mas não perdiam a chance de soltar veneno.
— Olha lá, a maluca chegou. Aposto que já tá planejando explodir a escola.
Kira parou, se virou devagar e sorriu. — Relaxa, se eu explodir, vocês vão ser as primeiras a voar pelos ares.
As meninas se calaram na hora. Rafael e Luna riram, batendo continência atrás dela.
Na sala de aula, o professor de matemática entrou carrancudo.
— Abram os cadernos, vamos revisar funções.
Kira deitou na carteira, apoiando a cabeça nos braços. — Função? Minha função é dormir.
O professor suspirou. — Kira, já te falei que sua inteligência é desperdiçada com essa sua boca suja.
— E eu já te falei que você devia se aposentar antes que morra de estresse.
A sala inteira caiu na risada. Rafael bateu na mesa, gargalhando. Luna só balançava a cabeça, tentando não rir mas falhando miseravelmente.
O professor suspirou outra vez e escreveu no quadro, desistindo da briga.
No intervalo, os três estavam sentados no pátio, compartilhando um pacote de biscoito.
— Sabia que o professor te odeia, né? — disse Rafael, empurrando o biscoito pra ela.
— Se ele não me odiar, eu tô fazendo alguma coisa errada — respondeu Kira, enfiando três de uma vez na boca. — Mas relaxa, no fim do ano ele ainda vai ter que me dar parabéns quando eu passar sem estudar.
Luna riu. — Você é insuportável.
— Obrigada, amor. — Kira piscou.
No meio da tarde, uma cena inusitada aconteceu. Um dos valentões da escola, sempre implicando com todo mundo, decidiu jogar a mochila de um aluno menor no chão. O garoto ficou sem reação.
Kira, que estava passando, parou imediatamente.
— Ô, arrombado. — A voz dela ecoou.
O valentão virou, surpreso. — O que foi, maluca?
Ela caminhou até ele, devagar, com aquele sorriso perigoso. — Tá sem pau, é? Precisa descontar nos outros pra se sentir macho?
A roda se formou em segundos. Rafael e Luna já sabiam: ia dar merda.
O garoto tentou empurrar Kira, mas ela segurou o braço dele e girou rápido, derrubando-o no chão com um golpe simples de jiu-jitsu.
— Vai brincar com gente do teu tamanho, otário. — Ela cuspiu no chão, ao lado dele. — Ou quer que eu quebre sua cara de vez?
Silêncio total. O valentão não levantou. Os colegas recuaram.
Kira olhou para Rafael e Luna, e disse com naturalidade: — Bora, Falcão.
Eles entenderam na hora: hora de sair antes que a diretora aparecesse.
— Falcão! — repetiu Rafael, já rindo enquanto puxava Luna pelo braço.
Os três saíram correndo pelo corredor, deixando pra trás a cara de choque dos colegas e o valentão ainda no chão. Era sempre assim: um caos atrás do outro.
Mas a paz durou pouco. Logo a inspetora apareceu, bufando e gritando:
— Kira! Rafael! Luna! Diretoria, agora!
Eles se entreolharam. Kira ergueu os braços, como quem se entregava. — Caralho, parece que sou criminosa procurada no FBI.
— Você é pior, Kira — disse Luna, tentando não rir. — Se o FBI te pegasse, te devolvia rapidinho.
Na sala da diretora, os três ficaram sentados lado a lado. A diretora, uma mulher baixa e com cara de poucos amigos, olhava para eles como se fosse capaz de enxergar a alma.
— Vocês não têm jeito. Toda semana estão aqui.
— Não é culpa minha se a escola é um zoológico e eu sei domar os animais — respondeu Kira, sem piscar.
A diretora esfregou a testa. — Kira… um dia você vai acabar expulsa.
— E um dia a senhora vai se aposentar. A vida é assim. — Ela sorriu. — Mas até lá, a gente se atura, né?
Rafael engasgou de tanto segurar a risada. Luna socou de leve a perna dele para não piorar.
A diretora suspirou fundo, como se precisasse reunir forças. — Vocês três estão de castigo. Nada de intervalo fora da sala essa semana.
Kira fingiu estar chocada. — Nossa, que punição terrível. Vou até chorar.
— Pode sair! — gritou a diretora, já vermelha.
Eles saíram praticamente correndo, tentando não gargalhar alto no corredor.
— Você vai morrer de tanto sarcasmo, Kira — disse Luna, ainda rindo.
— Pelo menos vou morrer debochando. — Ela jogou o cabelo pro lado, teatral.
Naquela tarde, de volta pra casa, eles se jogaram no sofá da sala.
— Mano, sério, eu não sei como você aguenta brigar com todo mundo sem perder a paciência — disse Rafael. — Eu já teria explodido.
— Eu explodo por dentro, Rafa. — Kira apontou pro peito. — Só que meu “explodir” é saber quando falar e quando calar.
— Você calar? — Luna gargalhou. — Esse dia eu quero ver.
Kira pegou uma almofada e jogou nela. — Cala a boca, fígado.
Rafael ergueu o refrigerante que tinham comprado no dia anterior. — Brindemos ao fato de que a gente nunca perde a graça, mesmo ferrados na diretoria.
— X — disse Kira, erguendo a mão.
Os três bateram o punho no código secreto.
O resto da semana parecia prometer paz… mas Kira respirava, logo arrumava encrenca.
Na quarta-feira, estavam em sala durante a aula de biologia. O professor, um sujeito metódico, explicava sobre reprodução humana com seriedade.
— Então, como vocês sabem, o espermatozoide…
— Parece um girino com inveja da vida — interrompeu Kira.
A sala explodiu em risadas. O professor fechou os olhos, tentando manter a calma.
— Kira, por favor, contenha seus comentários.
— Tô só descrevendo, professor. E detalhe: nadam desesperados que nem eu indo atrás do último pedaço de chocolate.
Mais risadas. Luna se afundou na carteira de tanto rir, enquanto Rafael batia na mesa.
— Monteiro… quer dizer, Kira — o professor corrigiu rapidamente. — Se não respeitar a aula, vou precisar tomar providências.
— Ah, professor, relaxa. A vida é curta demais pra fingir que espermatozoide não parece girino.
O professor desistiu e voltou a escrever no quadro, ignorando as gargalhadas.
No dia seguinte, na aula de história, a confusão foi ainda melhor.
A professora fazia uma pergunta sobre a Revolução Francesa.
— Quem pode me dizer o que aconteceu em 1789?
Kira levantou a mão devagar, com cara de santa. — Fácil. 1789 foi o ano em que o Rafa perdeu a virgindade com a mão direita.
A sala veio abaixo. Rafael ficou vermelho.
— Vai tomar no seu cu, Kira! — ele gritou, jogando uma bolinha de papel nela.
— Pelo menos eu tenho duas mãos pra variar, otário! — respondeu ela, jogando de volta.
A professora bateu na mesa, furiosa. — Chega! Vocês três, fora da sala!
Eles se levantaram rindo, sem protestar.
No corredor, Luna ainda tentava recuperar o ar. — Mano, vocês são doentes.
— A gente é histórico — corrigiu Kira, orgulhosa.
Na sexta-feira, aconteceu o ápice. Durante uma apresentação de literatura, Kira já estava entediada. Alguém recitava um poema cheio de drama. Ela cochichou com os dois:
— Se eu ouvir mais uma rima ruim, eu peido.
Luna arregalou os olhos. — Você não tem coragem.
— Duvida? — Kira ergueu a sobrancelha.
E no meio do silêncio, no auditório cheio, soltou um peido tão estrondoso que ecoou como microfone mal regulado.
A plateia ficou muda. O apresentador travou.
E Kira, com a maior cara de pau do mundo, virou pra trás e sussurrou alto:
— Rafael, seu porco!
O auditório explodiu em gargalhadas. Rafael ficou indignado. — Eu não! Filha da…!
Mas já era tarde. A culpa tava colada nele.
Quando saíram correndo do auditório, Luna gargalhava tanto que quase caiu no chão. — Mano… você vai pro inferno, Kira.
— Ah, mas eu vou rindo — respondeu ela, limpando as lágrimas de tanto rir.
Mais tarde, os três estavam no terraço de novo, recuperando o fôlego da semana.
— Se a gente sobreviver até a formatura, já vai ser milagre — disse Rafael, olhando pro céu.
— Não é sobrevivência, Rafa. É resistência. — Kira piscou. — Somos a resistência contra o tédio e a babaquice.
Luna sorriu, deitando ao lado deles. — Fênix.
— Fênix — repetiram os dois.
O silêncio caiu de novo, mas dessa vez era confortável. Não importava quantas broncas levassem, quantos problemas arrumassem. No fim, eram eles três contra o mundo.
O fim de semana chegou, e como sempre, eles inventaram de se encontrar na casa da Kira. Os pais dela já não estavam mais vivos, e o apartamento ficava só pra ela. O lugar tinha cara de Kira: paredes cheias de pôsteres de filmes e bandas, um saco de pancada num canto, livros e armas falsas de treinamento largadas pela sala, e a cozinha lotada de miojo, lasanha congelada e chocolate.
Luna entrou primeiro. — Isso aqui parece mais a toca de um criminoso procurado do que uma casa normal.
— Obrigada — respondeu Kira, abrindo uma lata de refrigerante. — É o maior elogio que já recebi hoje.
Rafael largou a mochila no sofá. — Hoje. Como se você não tivesse recebido vários elogios… tipo quando o inspetor te chamou de “a pior praga que já passou naquela escola”.
— Inveja mata, Rafael. — Kira abriu um sorriso diabólico. — E eu sou imortal.
Madrugada caótica
Depois de umas horas de videogame, pizza e música alta, já passava das duas da manhã.
— Mano, tô de ressaca sem nem ter bebido — reclamou Luna, jogada no sofá.
— É porque você é fraca — provocou Kira. — Até o ventilador tem mais resistência que você.
Rafael, rindo, mexia no celular. — Bora sair, fazer alguma coisa.
— Tipo o quê? — perguntou Luna, ainda largada.
— Vamos pichar o muro da escola. — Kira sugeriu, séria.
Os dois a encararam.
— Você tá zoando. — Rafael arqueou a sobrancelha.
— Tô nada. — Kira pegou uma lata de spray da gaveta. — Eu escrevo “Vai tomar no cu, direção escolar” em letras gigantes.
Luna quase engasgou rindo. — Você vai presa!
— Ah, e daí? Presídio é igual escola, só que sem prova de matemática.
No fim, não foram pichar nada. Mas a ideia ficou rendendo piada pela madrugada inteira.
O desafio da varanda
Às três da manhã, os três estavam no terraço de novo, olhando a cidade iluminada.
— Aposto que você não tem coragem de gritar uma putaria agora — desafiou Rafael.
Kira ergueu a sobrancelha. — Você me conhece?
E sem pensar duas vezes, gritou:
— CHUPA MEU CU, BRASIL!
As luzes de alguns apartamentos se acenderam. Um cachorro latiu. Um cara gritou de volta:
— VAI TOMAR NO SEU, SUA LOUCA!
Os três caíram no chão de tanto rir.
— Eu amo esse país — disse Kira, limpando as lágrimas. — Só aqui que a gente recebe resposta em tempo real.
A invasão da cozinha
Quando voltaram pro apartamento, a fome bateu de novo. Kira abriu a geladeira.
— Miojo ou lasanha?
— Lasanha — respondeu Luna.
— Miojo — disse Rafael.
— Democracia é uma merda — decretou Kira. — Vamos fazer os dois.
Enquanto cozinhavam, Kira resolveu inventar moda. Pegou uma panela, colocou na cabeça e começou a marchar pela cozinha.
— Soldados, estamos em guerra contra a fome!
— Você é retardada — Rafael riu.
— Sou uma visionária. — Ela ergueu uma colher como espada. — E minha primeira ordem é: cala a boca, recruta pau pequeno.
Rafael quase deixou o molho cair de tanto rir. Luna se apoiava no balcão, chorando de tanto gargalhar.
Conversas sérias (do jeito deles)
Depois de comer, ficaram no chão da sala, deitados em cobertores improvisados. A risada foi cedendo, dando lugar a um silêncio confortável.
— Falando sério agora… — disse Luna, encarando o teto. — Vocês já pensaram no que vai ser da gente depois da escola?
— Vou dominar o mundo — respondeu Kira, sem hesitar.
— Sério, Kira.
Ela suspirou. — Não sei. Faculdade? Qualquer curso que eu passe só pra provar que sou melhor que todo mundo. Talvez polícia, talvez exército… ou talvez nada.
Rafael olhou pros dois. — Eu só quero que a gente continue junto.
Um silêncio se instalou. Kira quebrou com uma risadinha.
— Que gay, Rafael.
— Vai se foder, Kira. — Ele riu também, mas os olhos dele diziam que era verdade.
Kira puxou os dois pra perto e abraçou. — Foda-se o futuro. A gente é X, a gente é Fênix, a gente é Falcão. Não importa onde for, a gente vai ser sempre um trio.
Luna sorriu, fechando os olhos. — Sempre.
Enquanto a madrugada virava manhã, os três acabaram dormindo ali, juntos no chão da sala. O sol nasceu iluminando o apartamento bagunçado, embalando a promessa silenciosa que sempre os uniria: caos, amizade e lealdade.
Não sabiam ainda, mas aquela rotina estava prestes a acabar.
E nenhum deles imaginava o que o destino cruel reservava.
O despertador tocou às seis da manhã. Kira abriu os olhos e a primeira coisa que pensou foi:
— Vai se foder, segunda-feira.
A cama dela parecia ter cola, mas a lembrança de que Luna e Rafael estariam esperando no portão da escola foi suficiente pra fazê-la levantar. Tomou banho rápido, vestiu a calça preta rasgada, camiseta larga azul escura e o tênis destruído de tanto uso.
Na cozinha, pegou um chocolate da geladeira e enfiou no bolso. Café ela não tomava nem fodendo.
Na escola
Quando chegou, Luna já estava sentada no banco perto do portão, com os fones enfiados no ouvido e uma cara de tédio. Rafael, claro, estava dormindo em pé, encostado no muro.
— Olha que coisa linda. — Kira cutucou o braço de Luna. — Nosso amigo parece um mendigo prestes a ser despejado.
Luna riu e tirou os fones. — Não fala alto, senão ele acorda.
Kira não resistiu:
— RAFAEL, O MUNDO TÁ ACABANDO!
O garoto quase caiu pro lado, assustado. — Caralho, Kira!
— De nada, dorminhoco. — Ela piscou, satisfeita.
Entraram juntos. O colégio parecia mais sufocante a cada ano. Professores cansados, alunos fofoqueiros, e aquela sensação de que nada daquilo faria diferença na vida.
Primeira aula: Matemática
O professor já tinha implicância com Kira desde o primeiro ano.
— Senhorita Kira, por que nunca traz seu material?
— Porque tenho memória melhor que qualquer caderno. — Ela sorriu cínica.
— Então resolva a equação no quadro.
Ela foi até lá, rabiscou os números, girou o giz na mão e respondeu a questão com facilidade absurda. Voltou pro lugar sem sequer olhar pro professor.
— Tá vendo? — cochichou pra Rafael e Luna. — Eu humilho ele usando metade do cérebro.
Luna segurou o riso. Rafael balançou a cabeça. — Um dia você ainda vai ser expulsa.
— Esse dia vai ser histórico. — Kira abriu o chocolate escondido. — E eu vou comemorar comendo.
Intervalo
No pátio, enquanto todos falavam de festas, provas e namoros, os três estavam sentados num canto, como sempre.
— Vocês já repararam que a galera aqui parece um rebanho? — disse Kira, mordendo o chocolate. — Todo mundo seguindo a mesma merda, como se fosse obrigação.
— É a vida, né. — Luna deu de ombros.
— Não, é burrice. — Kira olhou pros colegas. — Eu olho pra eles e penso: “Caralho, será que sou a única lúcida nesse lugar?”
— Sim. — Rafael respondeu de boca cheia. — Você é a única lúcida e a mais louca ao mesmo tempo.
— Obrigada, querido. — Kira fez uma reverência falsa.
Tretas inevitáveis
À tarde, no treino de educação física, o professor pediu pra turma jogar vôlei. Kira odiava vôlei.
— Eu não vou jogar essa merda. — cruzou os braços.
— Kira, é obrigação. — disse o professor.
— Obrigar é crime. — respondeu, seca.
No fim, entrou no jogo. Mas, em vez de jogar sério, ela começou a narrar a partida como se fosse narrador de futebol:
— Lá vai o Rafael, erra de novo! Esse time tá mais perdido que cachorro em dia de mudança!
A turma inteira caiu na risada, menos o professor, que ficou vermelho.
— KIRA! — ele berrou. — Diretoria, agora!
Ela saiu caminhando de cabeça erguida. — Mais uma medalha pro meu currículo.
O esconderijo secreto
Depois da aula, os três não foram embora. Subiram no telhado da escola, lugar que só eles conheciam. Ficaram deitados, olhando o céu.
— Esse ano vai ser o último, né? — disse Luna. — Depois disso, cada um vai pra um canto.
Kira ficou em silêncio. O vento batia forte.
— A gente tem os códigos — disse Rafael, sério. — X. Fênix. Falcão. Ninguém vai separar a gente.
Kira sorriu de lado. — Vocês sabem que eu nunca deixaria isso acontecer, né?
Luna encostou a cabeça no ombro dela. — Eu sei.
E ali, por alguns minutos, o barulho do mundo lá embaixo desapareceu. Só restava o trio, unido por algo que ninguém conseguiria quebrar.
A vingança da diretoria
Na diretoria, Kira sentou-se como se estivesse numa sala de cinema.
— Vai me expulsar ou só vai ficar me olhando? — perguntou pro diretor, que já estava vermelho de raiva.
— Kira, você tem noção de quantas advertências já coleciona?
— Mais que figurinhas da Copa. — respondeu, cruzando as pernas.
O homem suspirou fundo. — O que eu faço com você?
— Me dá férias vitalícias. — ela sorriu.
Ele passou a mão na testa, derrotado.
— Só sai daqui. Mas da próxima vez, não tem conversa.
Kira se levantou, fez uma continência falsa e saiu andando. Do lado de fora, Rafael e Luna esperavam.
— E aí? — perguntou Rafael.
— Ganhei. — respondeu Kira, como se fosse óbvio.
A guerra do lanche
No dia seguinte, no intervalo, uma briga começou na cantina porque alguém furou a fila. Kira, claro, não podia perder a oportunidade.
— Ô, fila do caralho! — gritou. — Aqui é Brasil, respeita a ordem ou enfia o coxinha no cu!
Os alunos começaram a rir. O inspetor apareceu, mas quando viu que era Kira, só revirou os olhos.
— Essa menina ainda vai ser meu fim — murmurou ele.
Luna puxou a amiga pelo braço. — Vamos antes que você seja linchada.
— Linchada nada. — Kira ergueu o salgado como troféu. — Eu domino esse colégio.
A prova surpresa
Na aula de História, a professora anunciou:
— Surpresa! Prova de 10 questões.
A turma inteira reclamou. Kira levantou a mão.
— Professora, surpresa é ganhar presente, não sofrer tortura.
— Kira, cala a boca e faz a prova.
Ela suspirou, pegou a folha e respondeu tudo em menos de 10 minutos. Depois, deitou na mesa e começou a desenhar.
Quando a professora recolheu, olhou a prova dela com surpresa. — Kira… você acertou todas.
— Ué, achou que eu era só bonita? — Kira piscou.
A turma inteira explodiu em risada. A professora bufou.
Saída da escola
Na saída, os três caminharam pela rua, mochila nas costas.
— Mano, você não tem filtro nenhum. — disse Luna.
— Filtro é pra água, não pra boca. — respondeu Kira.
Rafael riu. — Um dia você ainda vai bater boca com a polícia.
— Que venham. — Kira abriu os braços. — Eu sou Kira, filha do caos, herdeira da zoeira, rainha da porra toda.
Eles gargalharam alto, chamando atenção de quem passava na rua. Mas não se importaram.
Noite no quarto da Kira
Mais tarde, estavam no quarto dela, jogados no chão, assistindo filme de terror.
— Isso não dá medo. — disse Kira, mastigando chocolate. — Quero ver espírito sair da tela e puxar meu pé.
De repente, uma cena assustadora passou. Luna deu um pulo.
— Caralho, quase caguei!
Kira gargalhou. — Se cagar, você vai limpar sozinha.
Rafael, sério, comentou: — Eu acho que se aparecesse um espírito de verdade, a Kira xingava ele até ir embora.
— Lógico. — ela ergueu o queixo. — “Volta pro inferno, seu filho da puta, aqui já tem caos suficiente!”
Eles riram tanto que tiveram que pausar o filme.
Quando a madrugada chegou, os três estavam deitados no chão, cobertos por um edredom velho. O riso foi dando lugar ao silêncio.
Kira olhou pros dois e pensou, sem falar em voz alta: Vocês são minha vida. Se um dia eu perder isso aqui, eu juro que o mundo vai pagar.
Adormeceu com esse pensamento, sem saber que, em breve, a promessa silenciosa seria testada de forma cruel.
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