Cartas para o Elfo que Me Queimou

Cartas para o Elfo que Me Queimou

Capítulo 1 — Três Luas

— Três luas.

A voz de Íris não tremeu, mas a chama nos olhos dela oscilou como uma vela ao vento. O santuário cheirava a resina e hortelã, e os vitrais do teto derramavam sobre nós um azul pálido que parecia vir do próprio céu. Eu não precisava que repetisse. Em Elarindor, ninguém dizia “três meses”. Dizíamos “três luas”, porque é a lua que mede a vida dos elfos — não os dias.

— A pedra-aurora está se apagando — continuou Íris, a ponta dos dedos pairando sobre meu colar. — Quando você salvou Aeltharion, a Deusa aceitou o pacto e ancorou sua alma na joia. Isso prendeu você à vida e a ele ao mesmo tempo. O preço… você sabe.

Eu sabia. Eu tinha oferecido a essência da minha luz para arrancá-lo da morte numa noite de guerra, quando a floresta ardia e os uivos dos demônios iam além das árvores. A Deusa da Aurora me ouviu, e a pedra brilhou como um segundo sol. Aeltharion respirou. E eu, ali, aceitei o fardo sem perguntar quanto pesava.

— Não há como… — as palavras me faltaram; não por falta de coragem, mas de utilidade. Em Elarindor, há perguntas que não pedem resposta, só silêncio.

Íris respirou fundo, como quem mergulha.

— Há como honrar, Lyariël. Não como adiar. Três luas é o tempo que a Deusa lhe concede para fazer o que precisa ser feito.

Olhei para a janela. Do lado de fora, pinheiros altos alinhavam-se como guardiões. A luz se partia nas pontas e caía em fiapos, como lã. Senti a pulsação morna da pedra-aurora contra minha pele. Havia anos que ela me aquecia o peito; agora parecia fria como a água do degelo.

— Hoje faz três anos — eu disse. — Três anos desde a nossa marcação diante do carvalho branco de Vëlion. Ele disse que toda a eternidade caberia nos meus olhos.

— Reis dizem muitas coisas à sombra de árvores antigas — Íris sussurrou. Não havia ironia, só uma ferida velha que compreendia a minha. — Vai voltar ao palácio?

Assenti.

Eu voltaria. Prepararia o jantar com minhas próprias mãos — não por protocolo ou paradeiro, mas por memória. A corte esquecia, os corredores cochichavam, as tapeçarias testemunhavam sem fé. Mas eu lembrava. E lembranças também alimentam.

Voltei ao Alvalume quando a tarde encoretejou de lilás. O palácio do Alto-Rei era costurado em torres finas, como harpas viradas para o céu. As pontes de galhos vivos estendiam-se sobre pátios onde as fontes cantavam em dialetos de água. Os guardas inclinaram a cabeça. Não era reverência: era costume. A reverência, há muito, morava em outros olhos — e eu aprendera a viver sem ela.

Na cozinha real, fogueiras de pedra dormiam sob panelas de cobre. Cozinheiros ajeitavam raízes prateadas, ervas de outono, pães de folhas trançados. Eu toquei o braço de Nahl, o mais velho.

— Hoje, eu mesma.

Ele abriu a boca, fechou. Havia doçura nele; havia também medo — o medo manso de quem trabalha para reis desde antes de se lembrar. Entregou-me a bancada sem perguntas.

Lavei as mãos em água de flor. O cheiro me levou de volta à primeira noite que dormi aqui, quando ainda estranhava as paredes que respiravam junto com as árvores. Piquei as raízes, mexi o caldo, adoçei com mel de luar. A chama lambeu o fundo do tacho e eu, por um segundo, esqueci a sentença. Era uma coisa que eu ainda podia dominar: o fogo certo, o ponto exato, a harmonia entre amargo e doce. Cozinhar é um feitiço gentil; aproxima o que o mundo afasta.

Enquanto a sopa apurava, separei o vinho de lilases — Aeltharion sempre dizia que nele a lua se dissolvia em perfume. Arrumei a mesa pequena, a da varanda alta que dava para o bosque de vidoeiros. Dois pratos de porcelana fosca, talheres de prata com cabos de paiol, taças de cristal que cantavam quando tocadas. Sobre a toalha, espalhei folhas de carvalho recém-caídas, como pequenas lembranças douradas. Cada gesto era um reparo invisível numa história que insistia em rasgar.

As criadas entravam e saíam com passos de pena. Algumas desviavam os olhos. Outras encaravam com pudor. Todas sabiam. Em palácios, a dor tem sempre o tamanho perfeito para caber num cochicho.

No corredor, um retrato novo: a pintura de uma elfa de cabelos negros como breu, perfil afiado, o queixo um pouco alto. Helënya. A antiga amante, a antiga quase- rainha, a antiga escolha. A palavra “antiga” não a envelhecia; apenas a cercava de ecos. Senti um dardo frio na garganta. Virei o rosto de volta à mesa, como quem recolhe o próprio coração com as mãos.

Três luas.

Eu precisava transformá-las em algo que fizesse sentido. O tempo, quando pouco, aceita ser moldado.

Terminei o ensopado, provei o sal, corrigi o silêncio. Recolhi um cesto de frutas do vale e uma compota de ruibarbo que eu mesma enchi em primavera. Na borda da bandeja, a minha letra: “Para a noite em que fomos eternos por um instante.” Não escrevi o nome dele. Nem o meu. As cartas que eu começava a arquitetar exigiam outro tipo de tinta.

— Íris — chamei em pensamento, invocando o laço simples que nos unia desde crianças. O santuário ficava a duas colinas de distância, mas a amizade cura distâncias que nem magia alcança. “Prepare a caixa de teixo. Depois do jantar, eu passo.”

Senti a resposta como uma brisa morna na nuca.

— “Aqui.”

“Caixa de teixo”: a que usamos para guardar os nomes das nossas mortas. Foi ali que a mãe de Íris descansou sua última carta, há cem invernos, com instruções para o plantio da primavera seguinte. Eu não escreveria para perder; escreveria para que o que se perdeu soubesse por que se perdeu. A vingança, descobri, não precisa de grito — precisa de memória.

O sol já brincava de se esconder quando conduzi o carrinho até a varanda alta. O bosque rangia em luzes. Eu podia ver o tronco de Vëlion à distância, o carvalho branco onde a Deusa nos marcou. Lembrei do toque de Aeltharion na minha têmpora, do juramento: “Minha única chama.” Lembrei da noite em que ele voltou com cheiro de chuva e corpo de outro lugar. Lembrei de quando pediu meu colar para salvar filhos que não eram meus. Lembrei de tudo, sem chorar. A dor adulta sabe ficar sentada.

Aguardei.

As sombras cresceram como gatos sobre o parapeito. Uma hora. Duas. Três. O vinho de lilases descansou, a sopa perdeu o fôlego, o mel de luar cristalizou na borda da colher. Acendi a lamparina de azeite e esperei mais um pouco, como se a luz pudesse convencer o destino do contrário. A cada passo nos corredores ao longe, o coração se apertava e depois se desfazia, como mar contra pedra.

O criado do relógio passou, mediu o tempo com olhos de caça, abriu a boca para dizer algo e desistiu. Eu lhe agradeci sem palavras. A cortesia é uma espécie de misericórdia que a gente oferece a quem não tem culpa.

Quando a lua trepou inteira por trás das torres, eu levantei. Colhi as folhas sobre a toalha, guardei as taças, cobri a sopa. Não por raiva, mas por cuidado. Há coisas que a gente não deixa o frio levar.

Fui até meus aposentos devagar. No espelho de cobre, minha pele tinha a mesma palidez do luar. A pedra-aurora no meu peito pulsava num compasso curto — uma maré pequena demais para tantos oceanos. Abri o armário, tirei a caixa de madeira de teixo que Íris me trouxera quando eu ainda usava flores no cabelo por vaidade e não por ritual.

Abri-a. O interior cheirava a raiz e tempo. A madeira guardava marcas de outras unhas, outras cartas, outras últimas vontades.

Peguei o primeiro pergaminho. Não tremeram minhas mãos. A pena riscou como quem respira.

Carta 1 — A Noite do Juramento

Aeltharion,

Escrevo sobre a mesa onde você não sentou hoje. Escrevo com o cheiro do vinho que você não bebeu, com a doçura que você não quis.

Em três luas, a pedra que me mantém aqui vai dormir. Isso não é ameaça, não é súplica, não é pedido. É só contagem.

Guardei nesta carta a lembrança do carvalho branco de Vëlion. Você disse “para sempre” e eu acreditei. Não peço que acredite de volta. Peço que lembre. Porque o esquecimento é a única morte que os imortais não suportam.

Parei. Não por falta do que dizer, mas para escolher o que calar. O silêncio também escreve.

Desci o corredor com a carta entre os dedos, fui até a alcova ao lado do salão de mármore. Havia ali um nicho onde as criadas acendiam velas por desejos pequenos — um amor, uma chuva, um pão que cresce. Coloquei a carta sobre a pedra, envolvi-a com um fio de cabelo meu, como manda o rito das confidências que não devem se perder, e soprei a chama.

— Amanhã — prometi, para ninguém e para mim. — Amanhã deixo a primeira com Íris. Depois, a segunda. Depois, a terceira. Três luas; três cartas, por enquanto. Outras virão, se couberem no tempo.

Voltei à varanda. A mesa ainda me esperava com a paciência das coisas que não reclamam. Sentei. Bebi um gole do vinho de lilases — estava mais para lembrança do que para bebida. Sorri, de leve. Acontece, às vezes, da gente rir quando tudo está pronto para doer. É um mecanismo secreto dos vivos.

A primeira brisa de madrugada varreu as folhas do parapeito, levando embora pequenas migalhas do nosso banquete. Fechei os olhos e, pela primeira vez desde o santuário, permiti-me um pedido à Deusa:

— Se me restam três luas, que eu as use com dignidade. E que o castigo dele não seja a minha morte, mas a vida que ele terá de viver: amar e não ser amado.

A lamparina arfou. Ao longe, cascos. Um mensageiro escalou os degraus com pressa contida, o peito subindo e descendo como se tivesse esquecido de respirar. Parou a dois passos, olhos baixos, e estendeu um pergaminho com o selo real.

Eu não toquei.

— Diga-me.

Ele engoliu seco.

— Sua Alteza foi retido no Conselho do Leste. Pede… — procurou palavras, como quem procura um caminho seguro. — Pede perdão e promete honrar a noite em outra ocasião.

Sorri outra vez — agora sem doçura.

— Diga à Sua Alteza que as luas não remarcamos.

O rapaz assentiu, aliviado por ter sobrevivido à tarefa, e foi embora com passos que queriam ser discretos.

A mesa, a sopa, o vinho, a noite, o retrato no corredor: testemunhas. O bosque, o carvalho, a pedra no meu peito: cúmplices.

Fechei a varanda.

Passei a tranca.

E sentei para escrever a segunda carta.

A noite, enfim, aprenderia meu nome.

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Comments

Rute Martins

Rute Martins

Não tem foto e que história tá meio estranha

2025-09-10

0

bete 💗

bete 💗

interessante ❤️❤️❤️❤️❤️

2025-09-10

0

Ver todos

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