— Três luas.
A voz de Íris não tremeu, mas a chama nos olhos dela oscilou como uma vela ao vento. O santuário cheirava a resina e hortelã, e os vitrais do teto derramavam sobre nós um azul pálido que parecia vir do próprio céu. Eu não precisava que repetisse. Em Elarindor, ninguém dizia “três meses”. Dizíamos “três luas”, porque é a lua que mede a vida dos elfos — não os dias.
— A pedra-aurora está se apagando — continuou Íris, a ponta dos dedos pairando sobre meu colar. — Quando você salvou Aeltharion, a Deusa aceitou o pacto e ancorou sua alma na joia. Isso prendeu você à vida e a ele ao mesmo tempo. O preço… você sabe.
Eu sabia. Eu tinha oferecido a essência da minha luz para arrancá-lo da morte numa noite de guerra, quando a floresta ardia e os uivos dos demônios iam além das árvores. A Deusa da Aurora me ouviu, e a pedra brilhou como um segundo sol. Aeltharion respirou. E eu, ali, aceitei o fardo sem perguntar quanto pesava.
— Não há como… — as palavras me faltaram; não por falta de coragem, mas de utilidade. Em Elarindor, há perguntas que não pedem resposta, só silêncio.
Íris respirou fundo, como quem mergulha.
— Há como honrar, Lyariël. Não como adiar. Três luas é o tempo que a Deusa lhe concede para fazer o que precisa ser feito.
Olhei para a janela. Do lado de fora, pinheiros altos alinhavam-se como guardiões. A luz se partia nas pontas e caía em fiapos, como lã. Senti a pulsação morna da pedra-aurora contra minha pele. Havia anos que ela me aquecia o peito; agora parecia fria como a água do degelo.
— Hoje faz três anos — eu disse. — Três anos desde a nossa marcação diante do carvalho branco de Vëlion. Ele disse que toda a eternidade caberia nos meus olhos.
— Reis dizem muitas coisas à sombra de árvores antigas — Íris sussurrou. Não havia ironia, só uma ferida velha que compreendia a minha. — Vai voltar ao palácio?
Assenti.
Eu voltaria. Prepararia o jantar com minhas próprias mãos — não por protocolo ou paradeiro, mas por memória. A corte esquecia, os corredores cochichavam, as tapeçarias testemunhavam sem fé. Mas eu lembrava. E lembranças também alimentam.
Voltei ao Alvalume quando a tarde encoretejou de lilás. O palácio do Alto-Rei era costurado em torres finas, como harpas viradas para o céu. As pontes de galhos vivos estendiam-se sobre pátios onde as fontes cantavam em dialetos de água. Os guardas inclinaram a cabeça. Não era reverência: era costume. A reverência, há muito, morava em outros olhos — e eu aprendera a viver sem ela.
Na cozinha real, fogueiras de pedra dormiam sob panelas de cobre. Cozinheiros ajeitavam raízes prateadas, ervas de outono, pães de folhas trançados. Eu toquei o braço de Nahl, o mais velho.
— Hoje, eu mesma.
Ele abriu a boca, fechou. Havia doçura nele; havia também medo — o medo manso de quem trabalha para reis desde antes de se lembrar. Entregou-me a bancada sem perguntas.
Lavei as mãos em água de flor. O cheiro me levou de volta à primeira noite que dormi aqui, quando ainda estranhava as paredes que respiravam junto com as árvores. Piquei as raízes, mexi o caldo, adoçei com mel de luar. A chama lambeu o fundo do tacho e eu, por um segundo, esqueci a sentença. Era uma coisa que eu ainda podia dominar: o fogo certo, o ponto exato, a harmonia entre amargo e doce. Cozinhar é um feitiço gentil; aproxima o que o mundo afasta.
Enquanto a sopa apurava, separei o vinho de lilases — Aeltharion sempre dizia que nele a lua se dissolvia em perfume. Arrumei a mesa pequena, a da varanda alta que dava para o bosque de vidoeiros. Dois pratos de porcelana fosca, talheres de prata com cabos de paiol, taças de cristal que cantavam quando tocadas. Sobre a toalha, espalhei folhas de carvalho recém-caídas, como pequenas lembranças douradas. Cada gesto era um reparo invisível numa história que insistia em rasgar.
As criadas entravam e saíam com passos de pena. Algumas desviavam os olhos. Outras encaravam com pudor. Todas sabiam. Em palácios, a dor tem sempre o tamanho perfeito para caber num cochicho.
No corredor, um retrato novo: a pintura de uma elfa de cabelos negros como breu, perfil afiado, o queixo um pouco alto. Helënya. A antiga amante, a antiga quase- rainha, a antiga escolha. A palavra “antiga” não a envelhecia; apenas a cercava de ecos. Senti um dardo frio na garganta. Virei o rosto de volta à mesa, como quem recolhe o próprio coração com as mãos.
Três luas.
Eu precisava transformá-las em algo que fizesse sentido. O tempo, quando pouco, aceita ser moldado.
Terminei o ensopado, provei o sal, corrigi o silêncio. Recolhi um cesto de frutas do vale e uma compota de ruibarbo que eu mesma enchi em primavera. Na borda da bandeja, a minha letra: “Para a noite em que fomos eternos por um instante.” Não escrevi o nome dele. Nem o meu. As cartas que eu começava a arquitetar exigiam outro tipo de tinta.
— Íris — chamei em pensamento, invocando o laço simples que nos unia desde crianças. O santuário ficava a duas colinas de distância, mas a amizade cura distâncias que nem magia alcança. “Prepare a caixa de teixo. Depois do jantar, eu passo.”
Senti a resposta como uma brisa morna na nuca.
— “Aqui.”
“Caixa de teixo”: a que usamos para guardar os nomes das nossas mortas. Foi ali que a mãe de Íris descansou sua última carta, há cem invernos, com instruções para o plantio da primavera seguinte. Eu não escreveria para perder; escreveria para que o que se perdeu soubesse por que se perdeu. A vingança, descobri, não precisa de grito — precisa de memória.
O sol já brincava de se esconder quando conduzi o carrinho até a varanda alta. O bosque rangia em luzes. Eu podia ver o tronco de Vëlion à distância, o carvalho branco onde a Deusa nos marcou. Lembrei do toque de Aeltharion na minha têmpora, do juramento: “Minha única chama.” Lembrei da noite em que ele voltou com cheiro de chuva e corpo de outro lugar. Lembrei de quando pediu meu colar para salvar filhos que não eram meus. Lembrei de tudo, sem chorar. A dor adulta sabe ficar sentada.
Aguardei.
As sombras cresceram como gatos sobre o parapeito. Uma hora. Duas. Três. O vinho de lilases descansou, a sopa perdeu o fôlego, o mel de luar cristalizou na borda da colher. Acendi a lamparina de azeite e esperei mais um pouco, como se a luz pudesse convencer o destino do contrário. A cada passo nos corredores ao longe, o coração se apertava e depois se desfazia, como mar contra pedra.
O criado do relógio passou, mediu o tempo com olhos de caça, abriu a boca para dizer algo e desistiu. Eu lhe agradeci sem palavras. A cortesia é uma espécie de misericórdia que a gente oferece a quem não tem culpa.
Quando a lua trepou inteira por trás das torres, eu levantei. Colhi as folhas sobre a toalha, guardei as taças, cobri a sopa. Não por raiva, mas por cuidado. Há coisas que a gente não deixa o frio levar.
Fui até meus aposentos devagar. No espelho de cobre, minha pele tinha a mesma palidez do luar. A pedra-aurora no meu peito pulsava num compasso curto — uma maré pequena demais para tantos oceanos. Abri o armário, tirei a caixa de madeira de teixo que Íris me trouxera quando eu ainda usava flores no cabelo por vaidade e não por ritual.
Abri-a. O interior cheirava a raiz e tempo. A madeira guardava marcas de outras unhas, outras cartas, outras últimas vontades.
Peguei o primeiro pergaminho. Não tremeram minhas mãos. A pena riscou como quem respira.
Carta 1 — A Noite do Juramento
Aeltharion,
Escrevo sobre a mesa onde você não sentou hoje. Escrevo com o cheiro do vinho que você não bebeu, com a doçura que você não quis.
Em três luas, a pedra que me mantém aqui vai dormir. Isso não é ameaça, não é súplica, não é pedido. É só contagem.
Guardei nesta carta a lembrança do carvalho branco de Vëlion. Você disse “para sempre” e eu acreditei. Não peço que acredite de volta. Peço que lembre. Porque o esquecimento é a única morte que os imortais não suportam.
Parei. Não por falta do que dizer, mas para escolher o que calar. O silêncio também escreve.
Desci o corredor com a carta entre os dedos, fui até a alcova ao lado do salão de mármore. Havia ali um nicho onde as criadas acendiam velas por desejos pequenos — um amor, uma chuva, um pão que cresce. Coloquei a carta sobre a pedra, envolvi-a com um fio de cabelo meu, como manda o rito das confidências que não devem se perder, e soprei a chama.
— Amanhã — prometi, para ninguém e para mim. — Amanhã deixo a primeira com Íris. Depois, a segunda. Depois, a terceira. Três luas; três cartas, por enquanto. Outras virão, se couberem no tempo.
Voltei à varanda. A mesa ainda me esperava com a paciência das coisas que não reclamam. Sentei. Bebi um gole do vinho de lilases — estava mais para lembrança do que para bebida. Sorri, de leve. Acontece, às vezes, da gente rir quando tudo está pronto para doer. É um mecanismo secreto dos vivos.
A primeira brisa de madrugada varreu as folhas do parapeito, levando embora pequenas migalhas do nosso banquete. Fechei os olhos e, pela primeira vez desde o santuário, permiti-me um pedido à Deusa:
— Se me restam três luas, que eu as use com dignidade. E que o castigo dele não seja a minha morte, mas a vida que ele terá de viver: amar e não ser amado.
A lamparina arfou. Ao longe, cascos. Um mensageiro escalou os degraus com pressa contida, o peito subindo e descendo como se tivesse esquecido de respirar. Parou a dois passos, olhos baixos, e estendeu um pergaminho com o selo real.
Eu não toquei.
— Diga-me.
Ele engoliu seco.
— Sua Alteza foi retido no Conselho do Leste. Pede… — procurou palavras, como quem procura um caminho seguro. — Pede perdão e promete honrar a noite em outra ocasião.
Sorri outra vez — agora sem doçura.
— Diga à Sua Alteza que as luas não remarcamos.
O rapaz assentiu, aliviado por ter sobrevivido à tarefa, e foi embora com passos que queriam ser discretos.
A mesa, a sopa, o vinho, a noite, o retrato no corredor: testemunhas. O bosque, o carvalho, a pedra no meu peito: cúmplices.
Fechei a varanda.
Passei a tranca.
E sentei para escrever a segunda carta.
A noite, enfim, aprenderia meu nome.
A manhã chegou sem pedir licença, jogando um cinza de inverno sobre as pedras do Alvalume. Levei de volta à cozinha o que restara do jantar — a sopa intocada, o pão que não subiu para a boca de ninguém, o vinho de lilases que agora parecia apenas perfume esquecido. Nahl tentou dizer algo como “sinto muito”, mas sua voz morreu na garganta. Pus a mão em seu ombro, pequena bênção para quem não tem culpa.
— Distribua aos guardas — pedi. — O que foi feito com amor não deve apodrecer.
Atravessei o pátio interno. O espelho do lago devolvia uma lua pálida que ainda se demorava, teimosa, entre as torres. A pedra-aurora no meu peito latejou uma vez, breve, e depois sossegou, como se poupasse forças. Três luas. Decidi que cada uma teria uma utilidade. A primeira, organizar o que eu deixaria para trás. A segunda, aprender a despedir sem implorar. A terceira, escrever como quem depõe uma verdade diante de um tribunal invisível.
Saí antes que os corredores acordassem em cochichos. O caminho até o santuário de Íris parecia mais longo quando se carrega um quando no corpo. A trilha de carvalho negro rangia sob os pés, o cheiro de resina e manhã me trazia lembranças de uma época em que caminhar era apenas caminhar.
Íris me esperava do lado de fora, enrolada num manto de lã e silêncio. Seus olhos leram meu rosto antes que eu dissesse qualquer coisa. Abri a caixa de teixo. Dentro, a carta da noite anterior, atada pelo fio do meu cabelo.
— Trouxe a primeira — falei. — E venho pedir que as amarre ao tempo como quem amarra um barco antes da tormenta.
Íris me conduziu para dentro. O santuário sempre cheirava a coisas antigas: raízes secas, ferro frio, cera. Sobre a mesa de pedra, ela dispôs pequenas tigelas: sal escuro, pétalas de aerelis, pó de prata. Colocou minha carta ao centro e traçou um círculo com o sal.
— Não pretendo feri-lo, Íris — avisei, antes que ela me perguntasse. — Não é maldição. É memória.
— Memória também fere — respondeu, sem dureza. — Mas fere no lugar certo.
Ela soprou as pétalas sobre o pergaminho. Um vento leve nasceu do nada e foi morrer na parede, onde os vitrais faziam sombras de lua. Sua voz, baixa, cantou o vínculo das cartas que se entregam depois. Era um feitiço velho, herdado das mães que não quiseram desaparecer sem dizer uma última coisa.
— Agora, diga o gatilho — pediu.
Fechei os olhos. A primeira carta deveria encontrá-lo no momento certo, para que o golpe fosse não no corpo, mas na certeza.
— Esta se abrirá para ele quando entrar na varanda alta nesta mesma noite — disse. — Que leia onde não sentou.
Íris assentiu. Tocou minha mão, fria.
— E as outras?
— A segunda, quando ele cruzar meu escritório. A terceira… — o ar no santuário pesou; a verdade quer nascer no tempo dela — …quando ele pedir minha pedra-aurora.
A amiga não ergueu as sobrancelhas, mas vi o susto na íris escura.
— Já pediu?
— Não com palavras. Com o mundo que se organiza para isso.
Silêncio. Ela conhecia os corredores tanto quanto eu. Sabia dos retratos novos, das risadas que o vento trazia de volta de outros pátios, dos conselhos que terminavam tarde demais. Sabia que Helënya tinha um rosto antigo e um perfume perigosamente recente.
— Lyariël — ela começou, escolhendo pedras para levantar uma ponte —, se ele pedir…
— Não darei por capricho — cortei, e meu tom não era duro, era firme. — Mas se duas chamas inocentes estiverem nascendo da sombra de um erro, saberei o que pesa mais na balança da Deusa.
Íris não me abraçou. Às vezes, não se abraça o que precisa aprender a ficar em pé.
— Traga-me as outras cartas quando estiverem prontas — disse. — Eu as amarro ao que vier.
Voltei com a caixa de teixo sob o braço, o peito um pouco mais leve por ter um plano que coubesse numa mão. O palácio respirava manhã quando cruzei o portão de galhos vivos. As criadas carregavam cestos, os guardas trocavam turnos, e a política escorria pelos corredores como água fria. Senti, à direita, um cheiro doce demais, como fruta no ponto exato de ser colhida.
Helënya.
Ela saiu de uma arcada iambrada, a pele como leite em taça de cristal, os cabelos negros presos com tiras de prata. Sorriu sem mostrar os dentes — polidez de quem mede o outro com régua de marfim.
— Lyariël — cantou, como se meu nome fosse um adorno que ela tivesse o direito de balançar. — Senti sua falta no Conselho do Leste.
— Eu estava ocupada tentando lembrar a casa de que lado fica o coração — respondi, com um aceno curto. Não quis briga. Brigas alimentam o rumor, e rumor engorda os monstros que queremos matar de fome.
Os olhos dela desceram até meu colar. A pedra-aurora tinha um brilho menos vivo naquele dia, mas ainda assim parecia uma estrela pequena encostada à pele.
— É linda — disse, e a palavra “linda” saiu como quem diz “minha”. — Já ouviu falar nos encantamentos que protegem crianças? Alguns juram que um fragmento de luz antiga presa a uma joia garante entrada segura para almas recém-chegadas.
Não respondi. Mas não precisei: uma nota quase inaudível no ar, um ritmo que não era dela, bateu de leve na membrana do meu ouvido. Dois toques pequenos, tímidos. Duas pulsações.
A floresta inteira ficou mais quieta dentro de mim.
— Aeltharion se preocupa com herdeiros — Helënya continuou, deslizando as mãos sobre o próprio ventre sem vergonha de metáfora. — O reino ama presságios. E eu… eu amo cumprir o que o reino pede.
O corredor pareceu estreito.
— Herdeiros amados por qual reino? — perguntei, olhando-a finalmente nos olhos.
Ela sorriu de novo. E ali havia algo que não era crueldade; era vaidade antiga. O tipo de vaidade que acha que o amor do mundo vale mais que o amor de uma mulher.
— Pelo mesmo que o seu colar já salvou uma vez.
Passou por mim roçando o manto no meu, aspirou o perfume da pedra como quem memoriza um mapa, e foi embora com passos que sabiam aonde iriam chegar.
Fiquei parada por um instante, tocando o colar. Aeltharion ainda não falara comigo. E, no entanto, o futuro já havia me apresentado seus dentes.
Entrei no meu escritório. O lugar cheirava a folhas vivas, aquelas que continuavam pulsando mesmo depois de destacadas da árvore — pergaminhos verdes a que só uma mão treinada conseguia ensinar letras. Nas prateleiras, guardava sementes e histórias; nos frascos, pequenas lembranças do bosque: poeira de lua, resina que cura, lágrimas de musgo.
Sentei. A mesa reconheceu o peso dos meus braços e esquentou sob minha pele. Puxei outro pergaminho. A pena mergulhou no tinteiro escuro como alguém que mergulha de olhos abertos.
Carta 2 — O Banquete do Vazio
Aeltharion,
Hoje o palácio amanheceu com cheiro de fruta madura. A varanda onde não sentou ontem está limpa, como se a noite tivesse sido apenas ensaio. Não vou fingir surpresa: não há nada mais previsível que um rei ocupado.
Passou por mim o passado com rosto de agora e perfume de depois. Falou de herdeiros e de presságios e do tipo exato de joia que protege o que ainda não aprendeu a respirar.
Não escrevo para implorar que fique. Escrevo para avisar que vi. E que, se houver duas chamas pedindo passagem, não serei eu a apagar a vela.
Mas a conta da luz que salvou você uma vez não será paga com o resto da minha vida. Se pedir a pedra, não peça como rei. Peça como homem. E olhe nos meus olhos.
Assinei com o nome que minha mãe sussurrava quando meu pai voltava da caça: Lyariël. O nome que a Deusa conhece sem precisar de títulos. Fechei a carta, amarrei com um fio do meu cabelo, depositei na caixa de teixo.
O dia avançou. O palácio trabalhou sua coreografia invisível. Eu recitei litanias antigas enquanto revisava os pátios de ervas; ajustei bordas de camas; corrigi o excesso de sal de um caldo que ia para o alojamento das aprendizes. Não fiz isso porque me cabia. Fiz porque a repetição organiza o desamparo.
Quando a tarde desceu como pássaro cansado, o rumor dos cascos anunciou uma presença que já não cabia no rumor. Aeltharion cruzou o pátio com quatro guardas a uma distância respeitosa. Trazia o corpo vestido de noite apesar da tarde, os ombros largos como se coubessem nele todas as desculpas do mundo. Parou diante de mim com a cautela de quem toca um metal que pode queimar.
— Lyariël.
Meu nome em sua boca ainda tinha gosto de casa. Tive que engolir antes de responder.
— As luas não remarcamos.
Ele fechou os olhos um instante, como quem recebe uma flecha e escolhe não tirá-la.
— Fui retido. O Leste está inquieto, a fronteira respira mal, os anciãos me puxam por todos os lados. Eu quis… — procurou uma palavra que nos salvasse. Não achou. — Eu falhei.
— Sim.
Não acrescentei adjetivos. A verdade nua é por si só humilhante.
Seus olhos baixaram até a pedra-aurora. O gesto foi mínimo, instintivo. Eu vi. Ele se recompôs, apressado, como quem se repreende por ter deixado o desejo sair antes do pedido.
— Mais tarde, na varanda? — tentou, estendendo uma mão que não tocou a minha, mas quis.
— Chegou tarde ontem — disse. — Chega cedo hoje para quê?
Um músculo brincou no canto de sua boca. A tristeza ocupou nele o mesmo lugar da beleza. Lembrou-se de algo; talvez do carvalho branco de Vëlion, do juramento. Talvez de nada. Os reis também esquecem enquanto lembram.
— Eu te amo — soltou, por fim. A frase caiu entre nós como moeda em água profunda.
— Você ama o que lembra — corrigi, sem raiva. — O resto do que sou está do lado que você não olha.
Ele quis dizer meu nome outra vez, mas os passos apressados de um arauto cortaram o fio. O rapaz sussurrou algo ao seu ouvido. Vi a sombra de uma urgência. Vi também, sem querer, a cor da urgência: um negro lustroso, perfume de resina doce, presságio de vida nova.
— Preciso ir — disse Aeltharion, e a sinceridade do “preciso” me doeu mais que todas as desculpas. — Voltarei antes da lua.
Assenti.
Ele fez menção de aproximar-se, de tocar minha têmpora, como no rito antigo. Dei um passo atrás. Não por orgulho. Por higiene da alma.
— Vai — autorizei.
Ele foi. E eu voltei ao meu escritório, onde a caixa de teixo me aguardava como um altar pequeno. Sentei, respirei, toquei a pedra-aurora com a ponta do dedo. Um calor mínimo me respondeu, o suficiente para lembrar que eu ainda estava aqui.
Peguei o terceiro pergaminho, não para escrevê-lo agora — ainda não —, mas para acariciar sua superfície de folha viva. A carta que se abriria quando ele pedisse o que me restava. Seria a mais simples e a mais afiada.
Na varanda, a noite começou a encostar. A lua trepava lenta. Em algum lugar fora das muralhas, dois corações pequeninos treinavam o primeiro compasso. Tomei fôlego e, como quem acende uma vela diante do que não controla, sussurrei:
— Deusa, ensina-me a não ser pedra no caminho de quem não tem culpa. E dá a ele o castigo que serve: amar e não ser amado por mim.
A chama da lamparina vibrou. A caixa de teixo rangeu um pouco, como árvore que cresce por dentro. E eu, lúcida, peguei a pena.
Porque no fim, quando falta tudo, o que nos resta é escrever. E amar do único jeito que ainda não nos mata: com verdade.
A noite tinha gosto de ferro.
Não pelo vinho, não pelo silêncio — mas pelo presságio que escorria pelas paredes do Alvalume. O palácio inteiro respirava como fera presa. Guardas cochichavam mais baixo, criadas olhavam por cima do ombro. Eu percebia. Sempre percebia. O ar muda de peso quando a mentira começa a se organizar para nascer.
Eu havia deixado a segunda carta com Íris naquela manhã. A caixa de teixo estava cada vez mais pesada, como se as palavras não apenas preenchessem o pergaminho, mas roubassem um pouco da própria vida. Ela me olhara com seriedade ao guardá-la, como quem segura uma lâmina afiada.
— Ainda não pediu — Íris dissera.
— Não. Mas já ensaia com os olhos.
O corredor dos retratos
Passei pelo corredor outra vez. Lá estava o retrato de Helënya, mais vívido, mais insolente, quase como se a tinta ainda estivesse fresca. O pintor tinha exagerado a curva da boca, dado brilho demais ao olhar. Não era Helënya, era a memória que Aeltharion quis manter dela. Um tipo de eternidade que eu não escolhera para mim.
Senti uma pontada no peito — não de ciúme, mas de indignidade. Como se meu amor, que já havia salvado sua vida e sustentado sua coroa, fosse facilmente trocado por um retrato pendurado na parede.
As cartas em mim pulsaram. Eu precisava escrever mais uma.
Aeltharion
Ele entrou nos meus aposentos sem pedir, como sempre fizera desde o juramento no carvalho branco. A Deusa nos ligara, e isso lhe dera o hábito da posse. Mas havia algo diferente em sua postura: um peso nos ombros, um olhar vacilante, como quem carrega uma verdade e procura onde escondê-la.
— Lyariël — disse meu nome com uma brandura ensaiada. — Preciso falar com você.
Ficamos frente a frente. Eu segurei o colar com os dedos, como quem prende o coração no lugar.
— Fale.
Ele não disse de imediato. Andou pelo quarto, tocou a estante de folhas vivas, respirou fundo. O silêncio se prolongou até quase doer. Então, finalmente:
— Helënya está… — a palavra travou, mas os olhos completaram. — Há presságios. Dois.
As batidas no meu peito ecoaram. Eu já sabia. Desde o corredor, desde o perfume doce, desde a mão dela no ventre.
— Dois filhos — completei por ele.
Ele assentiu. O rei, que já comandara exércitos, que já negociara com dragões, parecia agora um menino pedindo desculpas ao mestre.
— Preciso garantir que cheguem vivos. Que respirem. O reino…
— O reino — interrompi, com uma calma que não era calma. — O reino já teve minha vida uma vez. Agora quer o resto?
Ele aproximou-se. Segurou meu braço, não com força, mas com súplica. Seus olhos encontraram o colar. E foi ali que vi. Não era ainda o pedido, mas era o ensaio. O olhar dizia: “Dê-me o que resta, para que eu salve o que é dela.”
Soltei meu braço, devagar.
— Se for pedir, Aeltharion, não peça como rei. Nem como pai. Nem como amante. Peça como homem. Mas saiba: a resposta não será o que você espera.
Ele tentou me tocar. Eu recuei.
— Hoje não — falei. — Hoje, só a verdade pode dormir neste quarto.
Ele partiu, carregando nas costas a sombra de uma decisão que ainda não ousava pronunciar.
Carta 3 — O Ensaio da Traição
Sentei à mesa. Peguei a pena. O pergaminho vivo se agitou, como folha ao vento, pronto para receber a dor.
“Aeltharion,
Hoje, você não pediu. Mas pediu com os olhos. E eu vi.
Helënya floresce com duas chamas em seu ventre, e o reino canta louvores à vida que virá.
Mas em nenhum canto do palácio se canta sobre a vida que se apaga.
Você me deve não a eternidade — que já não quero —, mas a memória.
Se ousar abrir a boca para pedir minha pedra, saiba: será a última vez que pronunciará meu nome sem sentir sua garganta em brasa.
Porque o castigo já começou, Aeltharion. Não é minha morte. É a sua vida. Amar para sempre uma mulher que não mais o ama.”
Assinei. Amarrei com um fio do meu cabelo. Depositei na caixa de teixo.
Senti um tremor na pedra-aurora. Uma batida mais fraca. O tempo escorria. A primeira lua já se erguera. Restavam duas.
E eu sabia: a próxima carta viria não do que ele dissesse, mas do que ele teria a ousadia de me pedir.
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