A noite tinha gosto de ferro.
Não pelo vinho, não pelo silêncio — mas pelo presságio que escorria pelas paredes do Alvalume. O palácio inteiro respirava como fera presa. Guardas cochichavam mais baixo, criadas olhavam por cima do ombro. Eu percebia. Sempre percebia. O ar muda de peso quando a mentira começa a se organizar para nascer.
Eu havia deixado a segunda carta com Íris naquela manhã. A caixa de teixo estava cada vez mais pesada, como se as palavras não apenas preenchessem o pergaminho, mas roubassem um pouco da própria vida. Ela me olhara com seriedade ao guardá-la, como quem segura uma lâmina afiada.
— Ainda não pediu — Íris dissera.
— Não. Mas já ensaia com os olhos.
O corredor dos retratos
Passei pelo corredor outra vez. Lá estava o retrato de Helënya, mais vívido, mais insolente, quase como se a tinta ainda estivesse fresca. O pintor tinha exagerado a curva da boca, dado brilho demais ao olhar. Não era Helënya, era a memória que Aeltharion quis manter dela. Um tipo de eternidade que eu não escolhera para mim.
Senti uma pontada no peito — não de ciúme, mas de indignidade. Como se meu amor, que já havia salvado sua vida e sustentado sua coroa, fosse facilmente trocado por um retrato pendurado na parede.
As cartas em mim pulsaram. Eu precisava escrever mais uma.
Aeltharion
Ele entrou nos meus aposentos sem pedir, como sempre fizera desde o juramento no carvalho branco. A Deusa nos ligara, e isso lhe dera o hábito da posse. Mas havia algo diferente em sua postura: um peso nos ombros, um olhar vacilante, como quem carrega uma verdade e procura onde escondê-la.
— Lyariël — disse meu nome com uma brandura ensaiada. — Preciso falar com você.
Ficamos frente a frente. Eu segurei o colar com os dedos, como quem prende o coração no lugar.
— Fale.
Ele não disse de imediato. Andou pelo quarto, tocou a estante de folhas vivas, respirou fundo. O silêncio se prolongou até quase doer. Então, finalmente:
— Helënya está… — a palavra travou, mas os olhos completaram. — Há presságios. Dois.
As batidas no meu peito ecoaram. Eu já sabia. Desde o corredor, desde o perfume doce, desde a mão dela no ventre.
— Dois filhos — completei por ele.
Ele assentiu. O rei, que já comandara exércitos, que já negociara com dragões, parecia agora um menino pedindo desculpas ao mestre.
— Preciso garantir que cheguem vivos. Que respirem. O reino…
— O reino — interrompi, com uma calma que não era calma. — O reino já teve minha vida uma vez. Agora quer o resto?
Ele aproximou-se. Segurou meu braço, não com força, mas com súplica. Seus olhos encontraram o colar. E foi ali que vi. Não era ainda o pedido, mas era o ensaio. O olhar dizia: “Dê-me o que resta, para que eu salve o que é dela.”
Soltei meu braço, devagar.
— Se for pedir, Aeltharion, não peça como rei. Nem como pai. Nem como amante. Peça como homem. Mas saiba: a resposta não será o que você espera.
Ele tentou me tocar. Eu recuei.
— Hoje não — falei. — Hoje, só a verdade pode dormir neste quarto.
Ele partiu, carregando nas costas a sombra de uma decisão que ainda não ousava pronunciar.
Carta 3 — O Ensaio da Traição
Sentei à mesa. Peguei a pena. O pergaminho vivo se agitou, como folha ao vento, pronto para receber a dor.
“Aeltharion,
Hoje, você não pediu. Mas pediu com os olhos. E eu vi.
Helënya floresce com duas chamas em seu ventre, e o reino canta louvores à vida que virá.
Mas em nenhum canto do palácio se canta sobre a vida que se apaga.
Você me deve não a eternidade — que já não quero —, mas a memória.
Se ousar abrir a boca para pedir minha pedra, saiba: será a última vez que pronunciará meu nome sem sentir sua garganta em brasa.
Porque o castigo já começou, Aeltharion. Não é minha morte. É a sua vida. Amar para sempre uma mulher que não mais o ama.”
Assinei. Amarrei com um fio do meu cabelo. Depositei na caixa de teixo.
Senti um tremor na pedra-aurora. Uma batida mais fraca. O tempo escorria. A primeira lua já se erguera. Restavam duas.
E eu sabia: a próxima carta viria não do que ele dissesse, mas do que ele teria a ousadia de me pedir.
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Atualizado até capítulo 24
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