A noite caiu como véu pesado sobre Alvalume.
Do alto das torres, a lua parecia maior do que de costume, espreitando a cada janela como testemunha muda. O vento soprava com um frio estranho, carregando murmúrios que se infiltravam pelas pedras vivas do palácio. Eu sabia: alguma coisa estava prestes a se romper.
Passei o dia inteiro ouvindo o palácio respirar. As criadas falavam de Helënya com um respeito novo, como se já fosse rainha. O conselho a recebera em segredo, mas segredo em palácio é como semente em solo fértil: cedo ou tarde, brota. A cada passo nos corredores, ouvia-se “os herdeiros”, “as chamas duplas”, “a benção da Deusa”. Ninguém ousava dizer meu nome. Ninguém ousava me olhar nos olhos.
Ele entrou no meu quarto como quem atravessa uma muralha.
Aeltharion trazia o rosto tenso, o manto ainda sujo de pó das estradas, e nos olhos… o peso de quem já decidiu, mas teme a própria decisão.
— Lyariël… — sua voz arrastou meu nome como quem arrasta corrente.
Deixei a pena sobre o pergaminho em branco e me ergui devagar. Não perguntei nada. Esperei.
Ele andou até mim.
Parei de respirar quando seus olhos, inevitavelmente, caíram sobre o colar em meu peito. A pedra-aurora pulsou — fraca, mas firme — como se também esperasse a sentença.
— Você sabe — ele disse, quase em sussurro. — Dois corações batem em Helënya. Dois que não pediram para nascer. Dois que o reino já chama de promessa.
Não respondi.
A espera é a arma dos traídos.
Ele respirou fundo.
E então, sem metáfora, sem rodeios, sem rei — apenas como homem desesperado — pediu:
— Lyariël… dê-me sua pedra.
O mundo pareceu parar.
As paredes se retraíram, a lua desapareceu atrás de uma nuvem, o ar tornou-se mais denso.
Aeltharion continuou, tropeçando nas próprias justificativas:
— Não é por mim! — sua voz quebrou. — É pelo reino, pela continuidade, pelas vidas que estão por vir. A Deusa não negaria… você sabe que é verdade.
O silêncio que se seguiu foi mais cruel que qualquer palavra.
Ele não entendeu de imediato.
Ninguém entende, no primeiro instante, que já perdeu.
— Você me pede — falei, por fim, e minha voz saiu calma demais, cortante demais — que eu troque a vida que ainda me resta pelo futuro de filhos que não são meus.
Ele tentou se aproximar, mas recuei.
— Você me pede — continuei — não como rei, mas como homem que esqueceu o juramento do carvalho branco. Você me pede sabendo que o preço é a minha morte.
Aeltharion estendeu a mão. Tremia.
— Eu te amei, Lyariël. Ainda amo. Mas o reino…
— O reino? — interrompi, rindo baixo, um riso que não era alegria. — O reino já teve meu sangue uma vez. Agora quer minha alma?
Ele caiu de joelhos. O Alto-Rei de Elarindor, o senhor de mil árvores, estava ali diante de mim… implorando.
— Se você não me der, eles morrerão. E se morrerem, o reino morrerá também. E tudo o que fizemos juntos não terá valido nada.
Não chorei. Não gritei.
Fui até a mesa, peguei o pergaminho que me esperava, e escrevi.
Carta 3 — O Pedido
Aeltharion,
Você finalmente pronunciou. Pediu o que restava de mim.
Não pedi que me amasse. Não pedi que me escolhesse. Pedi apenas que lembrasse.
Agora, não há lembrança que baste.
O colar que salvou sua vida não será dado para salvar o fruto da sua traição.
Não sou oferenda. Não sou ponte.
Sou a chama que você deixou apagar — e que agora queimará em você pelo resto da eternidade.
Amar-me-á para sempre. E para sempre não será amado de volta.
Assinei com meu nome. Enrolei o pergaminho. Amarrei-o com outro fio de meu cabelo e o depositei na caixa de teixo.
Quando voltei a olhar para Aeltharion, ele ainda estava de joelhos, olhos marejados, mãos estendidas.
Segurei o colar com firmeza. A pedra-aurora brilhou uma última vez, como uma estrela morrendo no céu.
— A resposta, Aeltharion — sussurrei — é não.
E naquele instante, senti dentro de mim o primeiro estalo do vínculo se rompendo.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 24
Comments