Capítulo 5 — O Peso do Não

Aeltharion saiu do quarto como quem foge de uma sentença. As botas ecoaram pelo corredor, cada passo um grito abafado de desespero. Eu não fui atrás. Não havia mais nada a dizer, e tudo o que restava já estava escrito. A porta fechou-se atrás dele com um estrondo que soou como o final de um juramento.

A pedra-aurora no meu peito pulsou mais fraca. Não era apenas a vida que me deixava aos poucos, era o vínculo se partindo em linhas invisíveis. Cada batida era menor, como um tambor que se cala devagar, e ainda assim não me apavorei. Havia dor, sim, mas junto dela vinha uma estranha serenidade: a certeza de que eu havia escolhido. O “não” dito em voz baixa pesava mais do que todas as coroas do reino.

Do lado de fora, a corte se agitava. Notícias corriam pelos corredores: Helënya estava recolhida, cercada de sacerdotisas que entoavam cânticos de bênção para as duas chamas que cresciam dentro dela. O palácio inteiro exalava expectativa. Mas expectativa é só outra forma de cegueira, e ninguém ali via que o coração do rei estava partido, não pela gravidez, mas pela recusa que carregava como ferro em brasa.

Eu caminhei até a varanda alta, onde a lua olhava para mim como velha cúmplice. O vento frio embaraçava meus cabelos prateados, e os jardins abaixo se agitavam em silêncio. Apoiei as mãos na pedra úmida e fechei os olhos. Vi o passado como filme desbotado: o carvalho branco, o juramento, o toque dele na minha têmpora. Vi também o presente: Helënya sorrindo com vaidade antiga, o ventre dela como um altar roubado. E vi o futuro, breve, curto, afunilando em três luas que se tornavam duas, depois uma.

Meu corpo fraquejava. As pernas pesavam, os ombros doíam, e por dentro um vazio começava a se abrir. Mas minha alma se erguia com força nova. A vida talvez me abandonasse, mas a palavra, não. A palavra nunca abandona quem a segura com firmeza. Voltei para meu escritório, sentei à mesa e deixei que a pena encontrasse o pergaminho.

Escrevi a quarta carta.

“Aeltharion,

Quando ajoelhou diante de mim, o rei morreu e restou apenas o homem. Mas mesmo o homem não ousou me olhar de verdade.

Você me pediu como se pedisse a uma ponte que sustentasse o peso de um exército. Mas eu não sou ponte. Não nasci para ser chão sobre o qual outros passam.

A Deusa me deu a pedra para salvar sua vida uma vez. Foi suficiente. A eternidade que você carrega no sangue não lhe ensina gratidão, mas a minha mortalidade me ensinou clareza.

Quando lembrar desta noite, não recorde apenas da recusa. Recorde do que perdeu antes mesmo de pedir: o amor. Ele morreu primeiro que eu.”

Amarrei a carta com meu cabelo e a depositei na caixa de teixo. Senti a madeira vibrar, como se reconhecesse o peso do que estava sendo guardado.

Horas depois, Íris chegou em silêncio, como sempre. Encontrou-me ainda acordada, a lamparina quase apagada. Tocou meu rosto com ternura.

— Ele pediu? — perguntou.

Assenti.

— E você negou.

— Eu não neguei. Eu disse a verdade.

Ela não sorriu, não chorou. Apenas me abraçou com cuidado, como quem segura alguém feito de vidro. No abraço, senti que não estava sozinha, mesmo que o mundo inteiro fingisse que sim.

Quando ela se foi, ouvi o som distante de cascos. Aeltharion cavalgava para os aposentos de Helënya, levado pela urgência do ventre que prometia futuro. Mas eu sabia: não importava quantos filhos tivesse, não importava quantas promessas o reino erguesse em torno dele. A marca que a Deusa lhe impusera já ardia em sua carne. O castigo estava vivo. Amar para sempre quem não mais o amava.

Deitei-me, cansada, e deixei que a lua banhasse o quarto com sua luz fria. A pedra no meu peito brilhou pela última vez naquela noite, e senti que uma parte de mim já se despedia. Ainda restavam duas luas, mas eu as gastaria do meu jeito: escrevendo. Porque era só isso que me restava e, no fundo, era tudo.

E enquanto o sono me puxava, pensei na ironia de tudo: não era minha morte que o perseguiria, mas a minha ausência viva. Eu não seria lembrança. Eu seria presença constante, palavra queimar, carta entregue tarde demais.

Adormeci com a pena ainda manchada de tinta, e com um sorriso amargo nos lábios. O jogo estava apenas começando.

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!