Aeltharion saiu do quarto como quem foge de uma sentença. As botas ecoaram pelo corredor, cada passo um grito abafado de desespero. Eu não fui atrás. Não havia mais nada a dizer, e tudo o que restava já estava escrito. A porta fechou-se atrás dele com um estrondo que soou como o final de um juramento.
A pedra-aurora no meu peito pulsou mais fraca. Não era apenas a vida que me deixava aos poucos, era o vínculo se partindo em linhas invisíveis. Cada batida era menor, como um tambor que se cala devagar, e ainda assim não me apavorei. Havia dor, sim, mas junto dela vinha uma estranha serenidade: a certeza de que eu havia escolhido. O “não” dito em voz baixa pesava mais do que todas as coroas do reino.
Do lado de fora, a corte se agitava. Notícias corriam pelos corredores: Helënya estava recolhida, cercada de sacerdotisas que entoavam cânticos de bênção para as duas chamas que cresciam dentro dela. O palácio inteiro exalava expectativa. Mas expectativa é só outra forma de cegueira, e ninguém ali via que o coração do rei estava partido, não pela gravidez, mas pela recusa que carregava como ferro em brasa.
Eu caminhei até a varanda alta, onde a lua olhava para mim como velha cúmplice. O vento frio embaraçava meus cabelos prateados, e os jardins abaixo se agitavam em silêncio. Apoiei as mãos na pedra úmida e fechei os olhos. Vi o passado como filme desbotado: o carvalho branco, o juramento, o toque dele na minha têmpora. Vi também o presente: Helënya sorrindo com vaidade antiga, o ventre dela como um altar roubado. E vi o futuro, breve, curto, afunilando em três luas que se tornavam duas, depois uma.
Meu corpo fraquejava. As pernas pesavam, os ombros doíam, e por dentro um vazio começava a se abrir. Mas minha alma se erguia com força nova. A vida talvez me abandonasse, mas a palavra, não. A palavra nunca abandona quem a segura com firmeza. Voltei para meu escritório, sentei à mesa e deixei que a pena encontrasse o pergaminho.
Escrevi a quarta carta.
“Aeltharion,
Quando ajoelhou diante de mim, o rei morreu e restou apenas o homem. Mas mesmo o homem não ousou me olhar de verdade.
Você me pediu como se pedisse a uma ponte que sustentasse o peso de um exército. Mas eu não sou ponte. Não nasci para ser chão sobre o qual outros passam.
A Deusa me deu a pedra para salvar sua vida uma vez. Foi suficiente. A eternidade que você carrega no sangue não lhe ensina gratidão, mas a minha mortalidade me ensinou clareza.
Quando lembrar desta noite, não recorde apenas da recusa. Recorde do que perdeu antes mesmo de pedir: o amor. Ele morreu primeiro que eu.”
Amarrei a carta com meu cabelo e a depositei na caixa de teixo. Senti a madeira vibrar, como se reconhecesse o peso do que estava sendo guardado.
Horas depois, Íris chegou em silêncio, como sempre. Encontrou-me ainda acordada, a lamparina quase apagada. Tocou meu rosto com ternura.
— Ele pediu? — perguntou.
Assenti.
— E você negou.
— Eu não neguei. Eu disse a verdade.
Ela não sorriu, não chorou. Apenas me abraçou com cuidado, como quem segura alguém feito de vidro. No abraço, senti que não estava sozinha, mesmo que o mundo inteiro fingisse que sim.
Quando ela se foi, ouvi o som distante de cascos. Aeltharion cavalgava para os aposentos de Helënya, levado pela urgência do ventre que prometia futuro. Mas eu sabia: não importava quantos filhos tivesse, não importava quantas promessas o reino erguesse em torno dele. A marca que a Deusa lhe impusera já ardia em sua carne. O castigo estava vivo. Amar para sempre quem não mais o amava.
Deitei-me, cansada, e deixei que a lua banhasse o quarto com sua luz fria. A pedra no meu peito brilhou pela última vez naquela noite, e senti que uma parte de mim já se despedia. Ainda restavam duas luas, mas eu as gastaria do meu jeito: escrevendo. Porque era só isso que me restava e, no fundo, era tudo.
E enquanto o sono me puxava, pensei na ironia de tudo: não era minha morte que o perseguiria, mas a minha ausência viva. Eu não seria lembrança. Eu seria presença constante, palavra queimar, carta entregue tarde demais.
Adormeci com a pena ainda manchada de tinta, e com um sorriso amargo nos lábios. O jogo estava apenas começando.
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Atualizado até capítulo 24
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