A manhã chegou sem pedir licença, jogando um cinza de inverno sobre as pedras do Alvalume. Levei de volta à cozinha o que restara do jantar — a sopa intocada, o pão que não subiu para a boca de ninguém, o vinho de lilases que agora parecia apenas perfume esquecido. Nahl tentou dizer algo como “sinto muito”, mas sua voz morreu na garganta. Pus a mão em seu ombro, pequena bênção para quem não tem culpa.
— Distribua aos guardas — pedi. — O que foi feito com amor não deve apodrecer.
Atravessei o pátio interno. O espelho do lago devolvia uma lua pálida que ainda se demorava, teimosa, entre as torres. A pedra-aurora no meu peito latejou uma vez, breve, e depois sossegou, como se poupasse forças. Três luas. Decidi que cada uma teria uma utilidade. A primeira, organizar o que eu deixaria para trás. A segunda, aprender a despedir sem implorar. A terceira, escrever como quem depõe uma verdade diante de um tribunal invisível.
Saí antes que os corredores acordassem em cochichos. O caminho até o santuário de Íris parecia mais longo quando se carrega um quando no corpo. A trilha de carvalho negro rangia sob os pés, o cheiro de resina e manhã me trazia lembranças de uma época em que caminhar era apenas caminhar.
Íris me esperava do lado de fora, enrolada num manto de lã e silêncio. Seus olhos leram meu rosto antes que eu dissesse qualquer coisa. Abri a caixa de teixo. Dentro, a carta da noite anterior, atada pelo fio do meu cabelo.
— Trouxe a primeira — falei. — E venho pedir que as amarre ao tempo como quem amarra um barco antes da tormenta.
Íris me conduziu para dentro. O santuário sempre cheirava a coisas antigas: raízes secas, ferro frio, cera. Sobre a mesa de pedra, ela dispôs pequenas tigelas: sal escuro, pétalas de aerelis, pó de prata. Colocou minha carta ao centro e traçou um círculo com o sal.
— Não pretendo feri-lo, Íris — avisei, antes que ela me perguntasse. — Não é maldição. É memória.
— Memória também fere — respondeu, sem dureza. — Mas fere no lugar certo.
Ela soprou as pétalas sobre o pergaminho. Um vento leve nasceu do nada e foi morrer na parede, onde os vitrais faziam sombras de lua. Sua voz, baixa, cantou o vínculo das cartas que se entregam depois. Era um feitiço velho, herdado das mães que não quiseram desaparecer sem dizer uma última coisa.
— Agora, diga o gatilho — pediu.
Fechei os olhos. A primeira carta deveria encontrá-lo no momento certo, para que o golpe fosse não no corpo, mas na certeza.
— Esta se abrirá para ele quando entrar na varanda alta nesta mesma noite — disse. — Que leia onde não sentou.
Íris assentiu. Tocou minha mão, fria.
— E as outras?
— A segunda, quando ele cruzar meu escritório. A terceira… — o ar no santuário pesou; a verdade quer nascer no tempo dela — …quando ele pedir minha pedra-aurora.
A amiga não ergueu as sobrancelhas, mas vi o susto na íris escura.
— Já pediu?
— Não com palavras. Com o mundo que se organiza para isso.
Silêncio. Ela conhecia os corredores tanto quanto eu. Sabia dos retratos novos, das risadas que o vento trazia de volta de outros pátios, dos conselhos que terminavam tarde demais. Sabia que Helënya tinha um rosto antigo e um perfume perigosamente recente.
— Lyariël — ela começou, escolhendo pedras para levantar uma ponte —, se ele pedir…
— Não darei por capricho — cortei, e meu tom não era duro, era firme. — Mas se duas chamas inocentes estiverem nascendo da sombra de um erro, saberei o que pesa mais na balança da Deusa.
Íris não me abraçou. Às vezes, não se abraça o que precisa aprender a ficar em pé.
— Traga-me as outras cartas quando estiverem prontas — disse. — Eu as amarro ao que vier.
Voltei com a caixa de teixo sob o braço, o peito um pouco mais leve por ter um plano que coubesse numa mão. O palácio respirava manhã quando cruzei o portão de galhos vivos. As criadas carregavam cestos, os guardas trocavam turnos, e a política escorria pelos corredores como água fria. Senti, à direita, um cheiro doce demais, como fruta no ponto exato de ser colhida.
Helënya.
Ela saiu de uma arcada iambrada, a pele como leite em taça de cristal, os cabelos negros presos com tiras de prata. Sorriu sem mostrar os dentes — polidez de quem mede o outro com régua de marfim.
— Lyariël — cantou, como se meu nome fosse um adorno que ela tivesse o direito de balançar. — Senti sua falta no Conselho do Leste.
— Eu estava ocupada tentando lembrar a casa de que lado fica o coração — respondi, com um aceno curto. Não quis briga. Brigas alimentam o rumor, e rumor engorda os monstros que queremos matar de fome.
Os olhos dela desceram até meu colar. A pedra-aurora tinha um brilho menos vivo naquele dia, mas ainda assim parecia uma estrela pequena encostada à pele.
— É linda — disse, e a palavra “linda” saiu como quem diz “minha”. — Já ouviu falar nos encantamentos que protegem crianças? Alguns juram que um fragmento de luz antiga presa a uma joia garante entrada segura para almas recém-chegadas.
Não respondi. Mas não precisei: uma nota quase inaudível no ar, um ritmo que não era dela, bateu de leve na membrana do meu ouvido. Dois toques pequenos, tímidos. Duas pulsações.
A floresta inteira ficou mais quieta dentro de mim.
— Aeltharion se preocupa com herdeiros — Helënya continuou, deslizando as mãos sobre o próprio ventre sem vergonha de metáfora. — O reino ama presságios. E eu… eu amo cumprir o que o reino pede.
O corredor pareceu estreito.
— Herdeiros amados por qual reino? — perguntei, olhando-a finalmente nos olhos.
Ela sorriu de novo. E ali havia algo que não era crueldade; era vaidade antiga. O tipo de vaidade que acha que o amor do mundo vale mais que o amor de uma mulher.
— Pelo mesmo que o seu colar já salvou uma vez.
Passou por mim roçando o manto no meu, aspirou o perfume da pedra como quem memoriza um mapa, e foi embora com passos que sabiam aonde iriam chegar.
Fiquei parada por um instante, tocando o colar. Aeltharion ainda não falara comigo. E, no entanto, o futuro já havia me apresentado seus dentes.
Entrei no meu escritório. O lugar cheirava a folhas vivas, aquelas que continuavam pulsando mesmo depois de destacadas da árvore — pergaminhos verdes a que só uma mão treinada conseguia ensinar letras. Nas prateleiras, guardava sementes e histórias; nos frascos, pequenas lembranças do bosque: poeira de lua, resina que cura, lágrimas de musgo.
Sentei. A mesa reconheceu o peso dos meus braços e esquentou sob minha pele. Puxei outro pergaminho. A pena mergulhou no tinteiro escuro como alguém que mergulha de olhos abertos.
Carta 2 — O Banquete do Vazio
Aeltharion,
Hoje o palácio amanheceu com cheiro de fruta madura. A varanda onde não sentou ontem está limpa, como se a noite tivesse sido apenas ensaio. Não vou fingir surpresa: não há nada mais previsível que um rei ocupado.
Passou por mim o passado com rosto de agora e perfume de depois. Falou de herdeiros e de presságios e do tipo exato de joia que protege o que ainda não aprendeu a respirar.
Não escrevo para implorar que fique. Escrevo para avisar que vi. E que, se houver duas chamas pedindo passagem, não serei eu a apagar a vela.
Mas a conta da luz que salvou você uma vez não será paga com o resto da minha vida. Se pedir a pedra, não peça como rei. Peça como homem. E olhe nos meus olhos.
Assinei com o nome que minha mãe sussurrava quando meu pai voltava da caça: Lyariël. O nome que a Deusa conhece sem precisar de títulos. Fechei a carta, amarrei com um fio do meu cabelo, depositei na caixa de teixo.
O dia avançou. O palácio trabalhou sua coreografia invisível. Eu recitei litanias antigas enquanto revisava os pátios de ervas; ajustei bordas de camas; corrigi o excesso de sal de um caldo que ia para o alojamento das aprendizes. Não fiz isso porque me cabia. Fiz porque a repetição organiza o desamparo.
Quando a tarde desceu como pássaro cansado, o rumor dos cascos anunciou uma presença que já não cabia no rumor. Aeltharion cruzou o pátio com quatro guardas a uma distância respeitosa. Trazia o corpo vestido de noite apesar da tarde, os ombros largos como se coubessem nele todas as desculpas do mundo. Parou diante de mim com a cautela de quem toca um metal que pode queimar.
— Lyariël.
Meu nome em sua boca ainda tinha gosto de casa. Tive que engolir antes de responder.
— As luas não remarcamos.
Ele fechou os olhos um instante, como quem recebe uma flecha e escolhe não tirá-la.
— Fui retido. O Leste está inquieto, a fronteira respira mal, os anciãos me puxam por todos os lados. Eu quis… — procurou uma palavra que nos salvasse. Não achou. — Eu falhei.
— Sim.
Não acrescentei adjetivos. A verdade nua é por si só humilhante.
Seus olhos baixaram até a pedra-aurora. O gesto foi mínimo, instintivo. Eu vi. Ele se recompôs, apressado, como quem se repreende por ter deixado o desejo sair antes do pedido.
— Mais tarde, na varanda? — tentou, estendendo uma mão que não tocou a minha, mas quis.
— Chegou tarde ontem — disse. — Chega cedo hoje para quê?
Um músculo brincou no canto de sua boca. A tristeza ocupou nele o mesmo lugar da beleza. Lembrou-se de algo; talvez do carvalho branco de Vëlion, do juramento. Talvez de nada. Os reis também esquecem enquanto lembram.
— Eu te amo — soltou, por fim. A frase caiu entre nós como moeda em água profunda.
— Você ama o que lembra — corrigi, sem raiva. — O resto do que sou está do lado que você não olha.
Ele quis dizer meu nome outra vez, mas os passos apressados de um arauto cortaram o fio. O rapaz sussurrou algo ao seu ouvido. Vi a sombra de uma urgência. Vi também, sem querer, a cor da urgência: um negro lustroso, perfume de resina doce, presságio de vida nova.
— Preciso ir — disse Aeltharion, e a sinceridade do “preciso” me doeu mais que todas as desculpas. — Voltarei antes da lua.
Assenti.
Ele fez menção de aproximar-se, de tocar minha têmpora, como no rito antigo. Dei um passo atrás. Não por orgulho. Por higiene da alma.
— Vai — autorizei.
Ele foi. E eu voltei ao meu escritório, onde a caixa de teixo me aguardava como um altar pequeno. Sentei, respirei, toquei a pedra-aurora com a ponta do dedo. Um calor mínimo me respondeu, o suficiente para lembrar que eu ainda estava aqui.
Peguei o terceiro pergaminho, não para escrevê-lo agora — ainda não —, mas para acariciar sua superfície de folha viva. A carta que se abriria quando ele pedisse o que me restava. Seria a mais simples e a mais afiada.
Na varanda, a noite começou a encostar. A lua trepava lenta. Em algum lugar fora das muralhas, dois corações pequeninos treinavam o primeiro compasso. Tomei fôlego e, como quem acende uma vela diante do que não controla, sussurrei:
— Deusa, ensina-me a não ser pedra no caminho de quem não tem culpa. E dá a ele o castigo que serve: amar e não ser amado por mim.
A chama da lamparina vibrou. A caixa de teixo rangeu um pouco, como árvore que cresce por dentro. E eu, lúcida, peguei a pena.
Porque no fim, quando falta tudo, o que nos resta é escrever. E amar do único jeito que ainda não nos mata: com verdade.
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Atualizado até capítulo 24
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