Sangue de Prata

Sangue de Prata

Prólogo

    A névoa rastejava pela floresta como se tivesse vontade própria, serpenteando entre as raízes antigas e subindo pelas árvores retorcidas. Ela se enroscava nos troncos como dedos pálidos e famintos, insinuando-se pelos galhos e preenchendo cada fenda da terra úmida. O ar estava frio, pesado, como se o próprio mundo segurasse a respiração, e cada folha parecia conter em si o sussurro de eras esquecidas. Um silêncio profundo reinava, quebrado apenas pelo ocasional estalo de galhos sob o peso de alguma criatura invisível, e ainda assim a floresta de Ébano dormia... ou fingia dormir. Cada sombra parecia pulsar, respirando com vida própria, e a luz da lua filtrava-se em feixes prateados, criando figuras que dançavam entre os troncos antigos. Um vento tênue atravessava a clareira, levando consigo o cheiro de terra molhada, folhas em decomposição e algo mais, indefinível, que lembrava ferro e incenso queimado.

    No coração daquela vastidão esquecida, havia uma clareira que não constava em nenhum mapa, nem mesmo nos pergaminhos mais antigos que ousavam descrever Ébano. Um círculo perfeito de terra seca, sem vegetação, parecia repelir a vida que a cercava; era como se a própria floresta tivesse recuado, respeitando ou temendo o que residia ali. No centro, repousava um altar de pedra coberto de musgo, rugoso, com fissuras que guardavam pequenos insetos e raízes invisíveis. A superfície estava gravada com símbolos quase apagados: espirais que pareciam girar sozinhas, olhos que pareciam espiar de volta, luas e constelações de tempos remotos. Símbolos antigos demais para que alguém ainda se lembrasse do que significavam, mas com um poder que insistia em existir, mesmo na ausência de memória.

    Uma mulher surgiu da escuridão. Sua presença parecia fundir-se com a própria sombra da floresta, uma extensão dela, mas também algo separado, estranhamente humano. O manto negro que a cobria estava puído nas bordas, rasgado e gasto pelo tempo, como se tivesse sido arrastado por gerações de mãos invisíveis. O capuz encobria parte de seu rosto, lançando-o em sombras, mas não conseguia esconder os olhos esbranquiçados, que não viam o mundo há décadas. Havia neles algo mais do que cegueira: um poder ancestral, um entendimento que transcendia o toque, o cheiro e a visão. Ela caminhava sem hesitar, cada passo perfeitamente calculado, guiada por algo além da percepção comum — algo que a chamava, que pulsava através da terra, que sussurrava através do vento e ecoava no coração da própria floresta há séculos.

Nas mãos, carregava um livro de couro escuro, grosso, inchado como se respirasse. Cada lombada e cada página parecia pulsar com vida própria, com um coração oculto feito de magia antiga. Ao lado, um pequeno frasco cintilava sob a luz da lua: um líquido prateado, que se agitava como se fosse consciente, refletindo as árvores, a névoa e a própria face da mulher. Havia um calor sutil no vidro, uma promessa silenciosa de poder e destino.

    Ela se ajoelhou diante do altar e pousou o livro sobre a pedra com uma reverência quase sagrada. Um vento gélido percorreu a clareira, levantando pequenos tufos de poeira e folhas secas, como se a floresta mesma reconhecesse a solenidade do ato. Algo despertava ao toque daquele grimório, algo antigo, feroz, vigilante. Um arrepio percorreu a espinha da mulher, mas ela permaneceu imóvel, respirando devagar, sincronizada com o ritmo da terra ao redor.

A velha tirou uma adaga de osso da cintura, com inscrições que se confundiam com marcas de guerra e rituais passados. Sem hesitar, cortou a palma da própria mão. O sangue que escorreu não era vermelho, mas negro como breu, espesso e luminoso, refletindo a luz da lua em um brilho sutil. Ao tocar os símbolos do altar, o sangue se espalhou, contornando as gravuras e iluminando-as com uma luz sombria que parecia viva.

    A floresta gemeu.

    A terra tremeu levemente sob os pés da mulher, e um murmúrio percorreu os galhos, como se a própria madeira e a pedra sussurrassem segredos antigos. Galhos se agitaram, mesmo sem vento, e olhos se acenderam na escuridão entre as árvores — vermelhos como brasas, dourados como o sol prestes a nascer, cinzentos como a própria morte. Criaturas observavam. Elas sentiam, compreendiam. Sabiam que algo estava prestes a acontecer.

A mulher ergueu o rosto, e a luz da lua refletiu no símbolo gravado em sua testa: um olho vertical cercado por estrelas, marcado a ferro em sua pele enrugada, como um selo de compromisso e poder. Um sorriso cruzou seus lábios, uma expressão carregada de triunfo e mistério.

— Quando o sangue for prateado… — murmurou, a voz rouca como folhas secas sendo esmagadas — ...e a lua rasgar o céu, o véu cairá.

    O sangue sobre o altar começou a se mover, como se possuísse vontade própria. Tomou forma lentamente, translúcido, até que uma imagem se delineou na pedra: o rosto de uma jovem, de beleza estranha e perturbadora. Os olhos eram assimétricos, um dourado como fogo, outro vermelho como sangue. Seus cabelos negros caíam sobre o rosto pálido, e uma aura de mistério parecia emanar dela mesmo na pedra.

    A jovem ainda não sabia, mas já era procurada por todos os lados — por aqueles que desejavam controlá-la, destruí-la ou possuí-la. E quando despertasse, o mundo jamais seria o mesmo; nada permaneceria intacto diante da tempestade que carregava em si.

Com um estalo seco, a pedra se partiu, emitindo uma onda de energia que percorreu o círculo, espalhando faíscas negras e luzes espectrais. O grimório pegou fogo, consumido por chamas negras que queimavam a magia, mas não a carne, lambendo o couro e as páginas com fome silenciosa. A mulher permaneceu ajoelhada, serena, como se estivesse em comunhão com o próprio fim e o começo de algo maior. Seus lábios se moveram uma última vez, pronunciando uma única palavra:

— Kaelina...

    E então desapareceu, levada pelo vento, transformada em poeira esquecida, como se nunca tivesse existido.

Na clareira, restava apenas silêncio. Um silêncio pesado, profundo, que parecia carregar o peso de mil anos. Mas havia algo mais: uma sensação nítida de que algo havia sido quebrado — um fragmento de realidade, um pacto antigo, uma barreira entre mundos. Algo que jamais poderia ser consertado. A névoa continuava a rastejar entre as árvores, agora impregnada de poder, como se cada partícula carregasse o eco do ritual. O altar permanecia ali, testemunha silenciosa de eventos que desafiam a compreensão. E acima, a lua continuava a observar, impassível, enquanto a floresta de Ébano parecia suspirar, guardando segredos que só o tempo ousaria revelar.

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