A névoa rastejava pela floresta como se tivesse vontade própria, serpenteando entre as raízes antigas e subindo pelas árvores retorcidas. Ela se enroscava nos troncos como dedos pálidos e famintos, insinuando-se pelos galhos e preenchendo cada fenda da terra úmida. O ar estava frio, pesado, como se o próprio mundo segurasse a respiração, e cada folha parecia conter em si o sussurro de eras esquecidas. Um silêncio profundo reinava, quebrado apenas pelo ocasional estalo de galhos sob o peso de alguma criatura invisível, e ainda assim a floresta de Ébano dormia... ou fingia dormir. Cada sombra parecia pulsar, respirando com vida própria, e a luz da lua filtrava-se em feixes prateados, criando figuras que dançavam entre os troncos antigos. Um vento tênue atravessava a clareira, levando consigo o cheiro de terra molhada, folhas em decomposição e algo mais, indefinível, que lembrava ferro e incenso queimado.
No coração daquela vastidão esquecida, havia uma clareira que não constava em nenhum mapa, nem mesmo nos pergaminhos mais antigos que ousavam descrever Ébano. Um círculo perfeito de terra seca, sem vegetação, parecia repelir a vida que a cercava; era como se a própria floresta tivesse recuado, respeitando ou temendo o que residia ali. No centro, repousava um altar de pedra coberto de musgo, rugoso, com fissuras que guardavam pequenos insetos e raízes invisíveis. A superfície estava gravada com símbolos quase apagados: espirais que pareciam girar sozinhas, olhos que pareciam espiar de volta, luas e constelações de tempos remotos. Símbolos antigos demais para que alguém ainda se lembrasse do que significavam, mas com um poder que insistia em existir, mesmo na ausência de memória.
Uma mulher surgiu da escuridão. Sua presença parecia fundir-se com a própria sombra da floresta, uma extensão dela, mas também algo separado, estranhamente humano. O manto negro que a cobria estava puído nas bordas, rasgado e gasto pelo tempo, como se tivesse sido arrastado por gerações de mãos invisíveis. O capuz encobria parte de seu rosto, lançando-o em sombras, mas não conseguia esconder os olhos esbranquiçados, que não viam o mundo há décadas. Havia neles algo mais do que cegueira: um poder ancestral, um entendimento que transcendia o toque, o cheiro e a visão. Ela caminhava sem hesitar, cada passo perfeitamente calculado, guiada por algo além da percepção comum — algo que a chamava, que pulsava através da terra, que sussurrava através do vento e ecoava no coração da própria floresta há séculos.
Nas mãos, carregava um livro de couro escuro, grosso, inchado como se respirasse. Cada lombada e cada página parecia pulsar com vida própria, com um coração oculto feito de magia antiga. Ao lado, um pequeno frasco cintilava sob a luz da lua: um líquido prateado, que se agitava como se fosse consciente, refletindo as árvores, a névoa e a própria face da mulher. Havia um calor sutil no vidro, uma promessa silenciosa de poder e destino.
Ela se ajoelhou diante do altar e pousou o livro sobre a pedra com uma reverência quase sagrada. Um vento gélido percorreu a clareira, levantando pequenos tufos de poeira e folhas secas, como se a floresta mesma reconhecesse a solenidade do ato. Algo despertava ao toque daquele grimório, algo antigo, feroz, vigilante. Um arrepio percorreu a espinha da mulher, mas ela permaneceu imóvel, respirando devagar, sincronizada com o ritmo da terra ao redor.
A velha tirou uma adaga de osso da cintura, com inscrições que se confundiam com marcas de guerra e rituais passados. Sem hesitar, cortou a palma da própria mão. O sangue que escorreu não era vermelho, mas negro como breu, espesso e luminoso, refletindo a luz da lua em um brilho sutil. Ao tocar os símbolos do altar, o sangue se espalhou, contornando as gravuras e iluminando-as com uma luz sombria que parecia viva.
A floresta gemeu.
A terra tremeu levemente sob os pés da mulher, e um murmúrio percorreu os galhos, como se a própria madeira e a pedra sussurrassem segredos antigos. Galhos se agitaram, mesmo sem vento, e olhos se acenderam na escuridão entre as árvores — vermelhos como brasas, dourados como o sol prestes a nascer, cinzentos como a própria morte. Criaturas observavam. Elas sentiam, compreendiam. Sabiam que algo estava prestes a acontecer.
A mulher ergueu o rosto, e a luz da lua refletiu no símbolo gravado em sua testa: um olho vertical cercado por estrelas, marcado a ferro em sua pele enrugada, como um selo de compromisso e poder. Um sorriso cruzou seus lábios, uma expressão carregada de triunfo e mistério.
— Quando o sangue for prateado… — murmurou, a voz rouca como folhas secas sendo esmagadas — ...e a lua rasgar o céu, o véu cairá.
O sangue sobre o altar começou a se mover, como se possuísse vontade própria. Tomou forma lentamente, translúcido, até que uma imagem se delineou na pedra: o rosto de uma jovem, de beleza estranha e perturbadora. Os olhos eram assimétricos, um dourado como fogo, outro vermelho como sangue. Seus cabelos negros caíam sobre o rosto pálido, e uma aura de mistério parecia emanar dela mesmo na pedra.
A jovem ainda não sabia, mas já era procurada por todos os lados — por aqueles que desejavam controlá-la, destruí-la ou possuí-la. E quando despertasse, o mundo jamais seria o mesmo; nada permaneceria intacto diante da tempestade que carregava em si.
Com um estalo seco, a pedra se partiu, emitindo uma onda de energia que percorreu o círculo, espalhando faíscas negras e luzes espectrais. O grimório pegou fogo, consumido por chamas negras que queimavam a magia, mas não a carne, lambendo o couro e as páginas com fome silenciosa. A mulher permaneceu ajoelhada, serena, como se estivesse em comunhão com o próprio fim e o começo de algo maior. Seus lábios se moveram uma última vez, pronunciando uma única palavra:
— Kaelina...
E então desapareceu, levada pelo vento, transformada em poeira esquecida, como se nunca tivesse existido.
Na clareira, restava apenas silêncio. Um silêncio pesado, profundo, que parecia carregar o peso de mil anos. Mas havia algo mais: uma sensação nítida de que algo havia sido quebrado — um fragmento de realidade, um pacto antigo, uma barreira entre mundos. Algo que jamais poderia ser consertado. A névoa continuava a rastejar entre as árvores, agora impregnada de poder, como se cada partícula carregasse o eco do ritual. O altar permanecia ali, testemunha silenciosa de eventos que desafiam a compreensão. E acima, a lua continuava a observar, impassível, enquanto a floresta de Ébano parecia suspirar, guardando segredos que só o tempo ousaria revelar.
A névoa que chegara na noite anterior não se dissipara com o amanhecer. Ela permanecia, teimosa, pairando sobre Val’Therya como um véu úmido e cinzento, abafando os sons e tornando o mundo um lugar de sombras silenciosas. Kaelina observava pela janela entreaberta de sua cabana, os dedos ainda frios pela água com que lavara a tigela do café. Algo estava errado. A floresta de Ébano, geralmente um murmuro vivo de cantos de pássaros e farfalhar de folhas, estava em silêncio. Um silêncio profundo, pesado, que ecoava o estranho frio na sua espinha que a acompanhava desde que acordara.
Ela se virou, olhando para o interior singelo de seu lar. A mesa de madeira áspera, a lareira com suas cinzas frias, as ervas penduradas para secar – tudo era familiar, tudo era seu. Mas hoje, a familiaridade não trazia conforto. Trouxe uma sensação de deslocamento, como se ela fosse uma intrusa na própria vida. Seus olhos pousaram na adaga de caça pendurada sobre a lareira, uma herança de pais que não conseguia lembrar. A lâmina, geralmente fosca, parecia captar a pouca luz que entrava, cintilando com um brilho opaco e inquietante.
O dia prosseguiu com uma lentidão agonizante. No mercado, os moradores de Val’Therya moviam-se como fantasmas através da névoa, suas vozes abafadas, seus olhares evitando os dela mais do que o usual. Os sussurros, no entanto, pareciam mais altos.
“…a estranha…”
“…nascida sob o eclipse sangrento…”
“…olhos de tempestade…”
Kaelina apertou o xale de lã mais forte contra o corpo, focando na tarefa de trocar seus pães por sal e um pedaço de tecido. A velha Martha, porém, parecia imune à atmosfera opressiva. Ou talvez estivesse tão acostumada a ela quanto às próprias rugas.
A mulher idosa puxou-a para dentro de sua barraca abarrotada de ervas e raízes, seus dedos ossudos envolvendo o pulso de Kaelina com uma força surpreendente. O cheiro de sálvia e algo metálico, como cobre, encheu o ar.
— A floresta sussurra hoje, criança — Martha disse, sua voz um rosnado baixo. Seus olhos leitosos pareciam enxergar algo muito além da névoa. — Ela sussurra seu nome.
Kaelina sentiu um frio percorrer sua coluna.
— O que você quer dizer, Martha?
— O sangue não mente, menina. O seu… ele canta uma canção antiga. Uma canção que alguns temem e outros desejam silenciar. — Seus dedos apertaram seu pulso, e Kaelina conteve um suspiro. A marca sob a atadura de linho latejou com uma dor surda e quente, como um coração adicional batendo sob sua pele. — O destino bate à sua porta. Não feche os olhos.
Ao sair da barraca, as palavras de Martha ecoavam em sua mente, misturando-se aos sussurros paranoicos da vila. O peso do olhar dos outros parecia físico. Ela precisava de ar. Precisava da floresta. Seguir para a densa fronteira de árvores era como entrar em outro mundo. A névoa era mais espessa aqui, enrolando-se nos troncos de carvalho retorcidos como “dedos pálidos e famintos”. O silêncio era absoluto. Nenhum pássaro, nenhum inseto, apenas o som abafado de seus próprios passos na folhagem molhada. Era seu santuário, seu refúgio, mas hoje parecia… expectante. Como se a própria floresta estivesse segurando a respiração.
E então, o sussurro veio. Não dos galhos, não do vento. Veio de dentro dela. Um sussurro áspero e seco, como folhas secas sendo arrastadas sobre pedra.
“…Kaelina…”
Ela parou bruscamente, o coração acelerado. Era a voz dos seus pesadelos. A voz que a acordava, suando e gelada, no meio da noite. Mas nunca a tinha ouvido acordada.
“…Ele vem… O véu se abre… O sangue cantará…”
A voz era uma serpente de gelo enrolando-se em seu cérebro. Ela apertou os olhos, tentando expulsá-la. “Não é real,” sussurrou para as árvores mudas. “É só a falta de sono. É o cansaço.”
Foi quando o cheiro a atingiu. Era o cheiro de terra molhada, folhas em decomposição e algo mais, indefinível, que lembrava ferro e incenso queimado. O mesmo cheiro do seu sonho mais recorrente. O mesmo cheiro do ritual dos seus sonhos. O arrepio que percorreu sua espinha foi tão violento que ela quase gritou. Seus instintos gritavam para fugir, mas seus pés pareciam enraizados no chão. A névoa ao seu redor começou a se agitar, a se condensar em formas que se moviam rápido demais para serem reais. Formas sinuosas e sombrias. Olhos brilharam na penumbra – vermelhos como brasas, dourados como o sol.
Um galho se partiu à sua direita. Um rosnado baixo e gutural veio da sua esquerda. Ela estava encurralada. O primeiro lobisomem emergiu da névoa. Não era uma fera sem sentido, mas uma criatura de pesadelo. Musculatura retorcida sob um pelo eriçado e escuro, saliva escorrendo de presas amareladas que pareciam longas demais para sua boca. Seus olhos dourados fixaram nela não com a fome cega de um animal, mas com um reconhecimento inteligente e aterrorizante.
Ele não atacou imediatamente. Parou a alguns metros, seu focinho contraindo no ar, cheirando-a. Quando falou, sua voz era um rosnado gutural que parecia rasgar o próprio ar, cada palavra saindo com dificuldade, como se não estivesse acostumado a formar sons tão complexos.
— A Profetisa. A Chave. Ela está aqui.
Kaelina, paralisada pelo terror, sentiu o calor no seu pulso intensificar-se até se tornar uma dor latejante e insuportável. Sem pensar, sua mão foi até a adaga na sua cintura, seus dedos encontrando o cabo de madeira áspero. O mundo ao seu redor diminuiu para a névoa, os olhos brilhantes e o som da própria respiração ofegante.
O segundo lobo, menor mas mais rápido, atacou. Foi um movimento rápido demais para seus olhos acompanharem, um borrão cinza saindo da névoa. Mas seu corpo reagiu sozinho. Ela se jogou para o lado, tropeçando nas raízes expostas, e a criatura passou raspando por ela, suas garras rasgando a manga de seu vestido e arranhando sua pele. A dor foi aguda e real, quebrando o feitiço de seu pavor. Sangue escorria de seu braço. O cheiro de ferro encheu o ar, e os olhos das criaturas brilharam com intensidade renovada.
O líder, aquele que falara, deu um passo à frente, ignorando a adaga tremula em sua mão. Ele inclinou a cabeça, cheirando o ar salgado com seu sangue.
— O sangue já desperta — ele rosnou, e então, seus músculos tensionaram para o salto mortal.
Foi quando Kaelina viu. Na testa da criatura, entre os tufos de pelo escuro, um símbolo cintilou brevemente com um reflexo pálido da luz que filtrava pela névoa: um olho vertical, idêntico ao do altar na floresta de seus sonhos. O tempo desacelerou. O uivo do lobisomem, o cheiro de seu próprio sangue, a voz sussurrando em sua mente – tudo se fundiu em um único ponto de puro pânico e sobrevivência. A adaga em sua mão pareceu aquecer, pulsando em sintonia com a marca em seu pulso. O lobisomem saltou. Kaelina gritou, não de medo, mas de raiva e desespero. Ela ergueu a adaga, não para golpear, mas instintivamente, para se proteger.
E algo aconteceu.
Um pulso de energia prateada explodiu de seu corpo. Não foi uma luz cegante, mas uma onda de força silenciosa e invisível que empurrou a névoa para trás e atingiu o lobisomem em pleno ar. A criatura foi arremessada para trás como se tivesse sido atingida por um touro, emitindo um uivo de surpresa e dor antes de cair pesadamente no chão, rolando entre as folhas secas. Os outros lobisomens recuaram, rosnando de surpresa e confusão. A névoa pareceu vacilar. Kaelina ficou de pé, trêmula, ofegante, a adaga ainda estendida em sua mão tremula. Ela não entendera o que acontecera. Seu pulso ardia como se tivesse sido pressionado contra ferro em brasa. A marca sob o linho agora pulsava com uma luz quente e latejante que ela podia ver através do tecido.
A voz em sua mente riu, um som seco e triunfante.
“…A caça começou, Profetisa…”
Os uivos recomeçaram, mais furiosos e próximos. Eles não estavam sozinhos. Havia mais deles. Virando-se, Kaelina quebrou em uma corrida cega, fugindo mais profundamente para a floresta de Ébano, com o som de perseguição e o eco de uma profecia recém-despertada rugindo em seus ouvidos. A garota da fronteira havia acabado. Algo mais começara.
A floresta era um borrão de sombras verdes e cinzentas. Kaelina corria sem ver, guiada apenas pelo pânico que latejava em suas veias em unisono com a marca em seu pulso. Cada batida de seu coração era um martelo de dor quente que subia pelo seu braço, uma sensação terrível e nova. Os uivos soavam mais altos agora, não mais à distância, mas perseguindo-a, ecoando entre as árvores antigas como sinos de um funeral. Eles não uivavam para a lua; uivavam por ela.
Seus pés tropeçaram em uma raiz oculta sob um tapete de musgo e folhas podres. Ela caiu de frente, o impacto arrancando o ar de seus pulmões. A adaga voou de sua mão, desaparecendo na escuridão. O mundo girou. O cheiro de terra úmida, de sua própria pele suada e do sangue que ainda escorria do corte raso em seu braço encheu suas narinas. Era um cheiro animal, de presa.
"...Não pode fugir do que você é..." sibilou a voz em sua mente, agora mais clara, quase íntima.
Ela se arrastou para trás, encostando-se no tronco maciço de um carvalho ancião. A névoa, por um capricho do vento ou de algo mais, dissipou-se momentaneamente em uma clareira adiante, permitindo que um único feixe de luz lunar prateada iluminasse o chão da floresta. E foi então que ela viu. Sua mão, a que pressionava o ferimento no braço, estava ensopada de sangue. Mas não era o vermelho escuro que ela esperava. Sob a luz pálida da lua, o sangue que escorria entre seus dedos brilhava com um tom prateado iridescente, como mercúrio líquido mesclado com rubi. Ele cintilava com uma luz fraca e interior, bela e grotesca ao mesmo tempo.
O horror que sentiu foi tão profundo que a paralisou mais do que a queda. Isso não era humano. Isso não era normal. Era a confirmação de todos os sussurros, de todos os olhares de desconfiança que a seguiram a vida toda. Martha estava certa. Seu sangue cantava uma canção diferente. Os uivos cessaram abruptamente.
O silêncio que se seguiu foi mais aterrorizante do que o ruído. Era o silêncio de uma armadilha prestes a se fechar. Kaelina ouviu o farfalhar suave de passos se aproximando, não mais a carga desesperada de criaturas em caçada, mas uma abordagem lenta, deliberada. Eles sabiam que ela estava encurralada. Dois pares de olhos vermelhos acenderam-se na orla da clareira. Depois, mais dois, de um dourado intenso. Eles se materializaram da escuridão, quatro lobisomens em sua forma bestial, mas contidos, formando um semicírculo ao seu redor. Seus focinhos se contraíam, farejando o ar carregado com o aroma metálico e doce de seu sangue prateado. A fome em seus olhos era palpável, mas contida por algo... ou por alguém.
O líder, aquele que havia falado, o que carregava a marca do olho, entrou na clareira. Ele havia se transformado. Não era mais a fera completa. Ele agora se erguia sobre duas pernas, uma forma híbrida e poderosa de homem e lobo, coberto por uma pelagem densa e escura, suas garras longas brilhando sob a lua. Seus olhos dourados fitavam-na com uma inteligência perturbadora.
— Você vê? — sua voz era mais clara agora, menos um rosnado e mais um sibilo grave, saindo de entre presas ainda impressionantes. — O sangue não mente. Ele anuncia sua chegada para todos nós.
Ele deu um passo à frente, e Kaelina se encolheu contra a árvore, seu corpo tremendo incontrolavelmente.
— Não... não me toque — ela sussurrou, sua voz um fio de terror.
O lobisomem riu, um som seco e sem humor. — Toque? Não entendemos, profetisa. Não estamos aqui para profanar. Estamos aqui para reivindicar. Você pertence aos filhos de Solvyr. Seu sangue é a chave para restaurar nosso poder, para acabar com séculos de opressão sob as garras dos sugadores de sombra.
Ele cuspiu a última palavra com ódio puro. Os outros lobisomens rosnaram em concordância, uma onda de fúria contida. Kaelina mal conseguia processar suas palavras. "Pertencer"? "Reivindicar"? Ela não era uma propriedade. O medo começou a ser substituído por uma centelha de raiva, quente e amarga.
— Eu não pertenço a ninguém! — ela gritou, surpresa com a força em sua própria voz.
O híbrido inclinou a cabeça, como se estudando um inseto interessante. — Todos pertencemos a algo, garota. Você pertence ao destino que seu sangue carrega. E nós o conduziremos a ele. Venha quietamente. A alcateia não será gentil se você resistir.
Ele esticou uma garra em sua direção, não para atacar, mas para agarrar. Foi o suficiente. O instinto de autopreservação, amplificado pelo pânico e pela raiva, explodiu dentro dela. Ela não pensou. Ela agiu.
Um calor excruciante, muito pior do que antes, explodiu em seu pulso. Era como se seu osso estivesse em chamas por dentro. Ela gritou, uma mistura de dor e desespero, e agarrou o braço com a outra mão. A atadura de linho, carbonizada por dentro, desfez-se em cinzas, revelando a pele abaixo. A marca não era mais apenas um conjunto de linhas prateadas sob a pele. Ela brilhava. Era uma intricada teia de luz prateada pulsante, como um astro caído e preso sob sua pele, centrado em um símbolo que lembrava um olho estilizado cercado por espirais. A luz era tão intensa que iluminava seu rosto pálido e aterrorizado.
O lobisomem líder recuou um passo, seus olhos dourados arregalados de surpresa genuína, e talvez... de medo.
— A Marca do Despertar... — ele sussurrou, mais para si mesmo.
A dor se transformou em poder. Uma energia crua e indomável percorreu o corpo de Kaelina, uma força que demandava libertação. Ela ergueu as mãos, não sabendo o que fazia, apenas sentindo. Desta vez, não foi apenas uma onda de força. Sombras.
As sombras ao redor da clareira, profundas e escuras, se contorceram e se esticaram como tentáculos vivos. Elas se enrolaram nas pernas dos lobisomens, prendendo-os no lugar com uma força surpreendente. Os lobos uivaram de raiva e surpresa, lutando contra as amarras de escuridão sólida. Kaelina ofegava, seus olhos bem abertos, espelhando a luz prateada de sua marca. Ela podia sentir as sombras, como uma extensão de seu próprio terror e fúria. Era aterrorizante. Era viciante. A visão do líder, ainda lutando contra as sombras que prendiam suas pernas, desfocou por um segundo. Por um breve instante, ela não viu mais a clareira. Viu...
...Uma sala de pedra escura, iluminada por tochas. Um símbolo grande do mesmo olho vertical de sua testa estava gravado no chão, pulsando com uma luz sombria. Uma figura alta e elegante, com capa negra, estava de costas para ela, seus longos dedos pálidos traçando o contorno do símbolo no ar...
"...Ezren..." uma voz sussurrou, não a dela, não a da criatura em sua mente, mas uma terceira voz, suave e cheia de uma idade imensurável. A visão desapareceu tão rápido quanto chegara, deixando-a tonta e nauseada. O lobisomem líder, com um urro de esforço, conseguiu romper as amarras de sombra com um golpe de suas garras. Seus olhos agora ardiam com uma raiva ferina, toda a pretensão de civilização desaparecida.
— Contenham-na! — ele rugiu para os outros. — Viva ou morta, mas tragam-na!
A magia que a inundara recuou tão subitamente quanto chegara, deixando-a vazia, trêmula e terrivelmente fraca. As sombras recuaram, libertando os lobos. A luz em sua marca diminuiu para um brilho fracasso e doloroso. Ela estava vulnerável. Exposta. O primeiro lobisomem saltou. Mas ele nunca a alcançou.
Uma forma escura e impossivelmente rápida caiu do dossel das árvores como um raio, aterrissando entre Kaelina e a fera com um impacto surdo que fez o chão tremer. Era um homem. Ou quase um homem. Ele se ergueu, sua silhueta alta e esguia cortando a luz da lua. Vestia roupas escuras e elegantes que pareciam absorver a luz ao seu redor. Seus movimentos eram fluidos, graciosos, mas carregados de uma potência latente que fazia o ar parecer vibrar. O lobisomem que saltara foi arremessado para trás como um brinquedo, golpeado por um movimento tão rápido que Kaelina mal conseguiu ver. O homem nem sequer parecera se virar completamente. Ele então se voltou lentamente, e Kaelina prendeu a respiração.
Seu rosto era de uma palidez fantasmagórica, esculpido em ângulos afiados e aristocráticos. Seus cabelos, negros como ébano, caíam sobre uma testa larga. E seus olhos... seus olhos não eram humanos. Eram de um âmbar profundo, com reflexos de vinho vermelho, e brilhavam com uma luz própria na penumbra da floresta. Eles fixaram-se nela, e não nos lobisomens, por um momento que pareceu durar uma eternidade. Havia uma curiosidade intensa neles, uma fome não por sangue, mas por respostas. Os lobisomens recuaram, rosnando de reconhecimento e ódio.
— Valek — o líder cuspiu o nome como se fosse um veneno. — A Corte Escarlate farejou a presa também, não foi? Sua mestra mandou você coletar o prêmio?
O homem — Ezren — ignorou-o completamente. Seus olhos âmbar ainda estavam presos em Kaelina, examinando-a, dissecando-a. Ele farejou o ar levemente, e um quase imperceptível arco de interesse levantou sua sobrancelha.
— O sangue de prata — ele murmurou, sua voz era suave, meliflua, mas carregada de uma autoridade que ecoava na clareira silenciosa. — E já desperta. Mais interessante do que relataram.
Seu olhar então pousou na marca ainda brilhando fracamente em seu pulso. Algo mudou em sua expressão. A curiosidade foi substituída por algo mais complexo... algo quase parecido com reverência. Ele finalmente se virou para enfrentar os lobisomens, colocando-se firmemente entre eles e Kaelina.
— A criança não vai com vocês hoje, filhotes de Solvyr — disse Ezren, sua voz ainda calma, mas agora com uma frieza de aço. — Corram de volta para sua floresta e digam ao seu Alfa que seu pedido foi negado.
O lobisomem líder soltou um rosnado de fúria impotente. Ele sabia, assim como todos na clareira, que estava em desvantagem. A presença de Ezren Valek mudara tudo.
— Isto não acabou, vampiro. — ele rosnou. — Ela é nossa por direito de sangue!
— Direitos — Ezren deu um sorriso frio, que não alcançou seus olhos, — são frequentemente disputados. E hoje, eu discuto o seu.
Sem mais palavras, ele fez um gesto quase negligente com a mão. A névoa ao redor da clareira pareceu se condensar, tornando-se espessa e opaca, engolindo os lobisomens em uma cortina de branco. Seus rosnados de raiva ficaram abafados e então se afastaram, até se perderem completamente no denso branco. A clareira ficou em silêncio novamente. Apenas Ezren Valek e Kaelina, tremendo e ensanguentada aos pés do carvalho.
Ele se virou novamente para ela, sua imponência silenciosa mais aterrorizante do que a fúria bestial dos lobos. Ele deu um passo à frente. Kaelina tentou se afastar, mas seu corpo não respondia. Tudo o que ela conseguia fazer era olhar para aqueles olhos âmbar, para aquele rosto pálido e perfeito que não pertencia àquele lugar. Ele se ajoelhou, ficando na altura dela. Seu movimento foi tão suave que quase não fez ruído. Ele estendeu a mão, não para tocá-la, mas para indicar seu braço ferido.
— Você está sangrando — disse ele, sua voz agora surpreendentemente suave, quase gentil. — E isso... é um problema. Atrai coisas piores do que lobisomens famintos.
Seus olhos se encontraram com os dela. Naquele olhar, Kaelina não viu ameaça imediata. Viu mistério. Viu perigo antigo. E viu, talvez, a única tábua de salvação em um mar de escuridão que de repente se abrira sob seus pés. O mundo dela havia terminado naquela clareira. Um novo, muito mais sombrio e complexo, começava agora. E ele tinha olhos da cor de âmbar e vinho.
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