Capítulo 4 – Sob o Uivo

    O interior da Morada das Sombras era uma extensão de seu dono: frio, elegante e imerso em uma quietude que parecia absorver o som. A luz de várias lâmpadas de óleo de vidro fosco lançava poças de luz âmbar sobre paredes forradas de estantes de livros pesados e móveis escuros e austeros. O ar cheirava a poeira antiga, papel velho e àquele mesmo aroma adocicado e frio que Kaelina associara a Ezren. Ele a guiou através de um hall amplo e por uma porta lateral para uma sala menor, uma espécie de biblioteca ou estudo. Uma grande escrivaninha de carvalho escuro dominava o espaço, coberta por pergaminhos, frascos de vidro com líquidos coloridos e um globo celestial de latão que girava lentamente sozinho. Ele puxou uma cadeira estofada de couro para ela perto da lareira, onde um fogo baixo crepitava, sua chama estranhamente pálida e silenciosa.

— Sente-se — ele instruiu, sua voz ecoando suavemente na sala aconchegante. — Eu trarei algo para limpar completamente o ferimento. A poção que usei é apenas um paliativo.

    Ele desapareceu através de uma porta de veludo escuro, deixando-a sozinha. Kaelina afundou na cadeira, seu corpo ainda tremendo de adrenalina residual e do frio penetrante da casa. Ela envolveu os braços em torno de si mesma, esfregando os braços. Seus olhos percorreram a sala avidamente, procurando por... ela não sabia o quê. Armadilhas? Sinais de perigo? Tudo parecia normal, quase entediante, se não fosse pela absoluta estranheza silenciosa do lugar. Os livros nas estantes tinham títulos em línguas que ela não reconhecia, gravados em espirais de ouro e prata desbotadas. As sombras dançavam nas paredes, parecendo se aprofundar e alongar de forma não natural.

    Sua atenção foi atraída para a escrivaninha. Entre os frascos e pergaminhos, um objeto se destacou: um pesado quebra-cartas de prata, trabalhado na forma de um lobo e um vampiro entrelaçados em combate eterno. Era uma peça linda e violenta, e parecia pulsar com uma energia sombria. Ela esticou a mão, quase hipnotizada...

— Eu não mexeria nisso, se fosse você — a voz de Ezren soou suave da porta. Ele estava parado ali, segurando uma bandeja de prata com um recipiente de água, panos limpos e um pequeno frasco de vidro azul-cobalto. — É um artefato antigo. Ainda carrega o... rancor... de seus antigos donos.

    Kaelina recuou a mão como se tivesse sido queimada, seu rosto corando. Ele se aproximou, colocando a bandeja em uma pequena mesa ao lado dela. Seus movimentos eram economicos e precisos.

— O braço, por favor — ele disse, molhando um pano na água, que fumegava levemente como se estivesse quente, embora não houvesse fogo próximo.

    Ela estendeu o braço, tentando controlar o tremor. Sua pele arrepiou-se com a proximidade dele. Ele limpou o resto do sangue seco e prateado com uma eficiência clínica, seu toque era gelado mas gentil. O pano saiu manchado de um vermelho metálico e brilhante. Ele então pegou o frasco azul.

— Isto vai arder — ele advertiu, destampando-o. Um cheiro acre de ervas amargas e algo elétrico encheu o ar.

    Antes que ela pudesse responder, ele aplicou algumas gotas do líquido no corte. Uma dor aguda e penetrante, como de agulhas de gelo, fez Kaelina sugar o ar entre os dentes e tentar puxar o braço para trás. A mão dele, no entanto, fechou-se ao redor do seu pulso, não com força brutal, mas com uma imobilidade absoluta, como se seu braço tivesse sido preso em um torno de aço. Ela mal conseguia sentir os dedos dele, mas sabia que qualquer tentativa de se soltar seria inútil.

— Quase pronto — ele murmurou, seus olhos fixos no ferimento onde o líquido borbulhava e fumegava levemente. — O veneno da garra de um lobisomem alfa é insidioso. Causa infecção e febre que podem matar um humano em horas. O seu sangue... resiste. Mas não é imune.

    Enquanto a dor diminuía para uma latejante, Kaelina encontrou coragem para falar, sua voz ainda fraca.

— Por que você me ajudou? O que você quer de mim?

    Ezren não ergueu os olhos imediatamente. Ele terminou de limpar o ferimento, que agora parecia limpo e fechado, deixando apenas uma linha rosa pálida. Ele soltou seu pulso.

— "Querer" é um termo tão... humano — ele disse finalmente, erguendo os olhos para encontrar os dela. Seus olhos âmbar pareciam ainda mais profundos à luz do fogo. — Eu observo. Há muito tempo. Sua chegada... o despertar do seu sangue... não foi um acidente. Foi um evento. Um que tem implicações para todos sob o céu noturno de Val'Therya.

— Os lobisomens... eles disseram que eu pertencia a eles. Por "direito de sangue".

Um sorriso frio e rápido, como o clarão de uma lâmina, passou por seus lábios. — Os filhos de Solvyr sempre foram possessivos com o que não entendem. Eles acreditam que seu sangue é a chave para restaurar sua glória passada, para ganhar vantagem na guerra eterna contra minha espécie. Eles estão... parcialmente certos. Mas subestimam grotescamente o que você é.

— E o que eu sou? — ela insistiu, sua frustração superando temporariamente o medo.

Ele inclinou a cabeça, estudando-a como se fosse um quebra-cabeça complexo. — Isso, Kaelina Veyra, é a pergunta que todos nós estamos fazendo. Você é uma profecia ambulante. Um paradoxo vivo. Sangue de Prata. A primeira em séculos. Talvez a primeira verdadeira desde...

    Ele parou abruptamente, seus olhos se desviando para o fogo por um momento, como se visse algo nas chamas.

— Desde? — ela pressionou.

Ele ignorou a pergunta. — O que importa é que você é valiosa. E coisas valiosas são cobiçadas. Por lobisomens. Por vampiros. — Ele fez uma pausa dramática. — E por outros.

— Outros?

    Antes que ele pudesse responder, um som ecoou do lado de fora, tão familiar que fez o sangue de Kaelina gelar instantaneamente. Era um uivo. Mas não era um uivo solitário de caçada. Era um uivo de chamado. Longo, alto e claro, rasgando o silêncio da noite. Foi respondido imediatamente por outro, mais próximo. E depois outro, e mais outro, até que o ar exterior pareceu vibrar com uma sinfonia de uivos furiosos e desafiantes. Eles vinham de todas as direções. Eles haviam encontrado seu rastro.

Kaelina levantou-se de um salto, seu coração batendo loucamente contra suas costelas. — Eles estão aqui!

Ezren permaneceu imóvel, sua expressão endurecendo em uma máscara de gelo calculista. Ele não parecia surpreso. — Sim. O Alfa da matilha local deve ter sentido a perturbação. Eles cercaram a propriedade.

— O que vamos fazer? — ela perguntou, sua voz chegando perto do pânico.

— Nós — ele disse, levantando-se com uma graça fluida. — não faremos nada. Você ficará aqui dentro. As runas nas paredes e no portão os manterão afastados. Por um tempo.

    Ele se moveu em direção a uma estante de livros e pressionou um painel de madeira quase invisível. Com um clique suave, uma seção da estante deslizou para o lado, revelando uma passagem escura e estreita que levava para baixo.

— Existem porões mais profundos, mais seguros. Se... quando... eles entrarem, você desce. E não volta por nada. Entendido?

    O uivo soou novamente, agora acompanhado por um som novo e horrível: o de garras arranhando a pesada porta de carvalho lá fora, seguido por um impacto surdo que fez a estrutura tremer.

Kaelina engoliu em seco. — E você?

    Ele se virou para ela, e pela primeira vez, ela viu algo além da calma glacial em seus olhos. Viu um brilho predatório, uma centelha de antecipação antiga.

— Eu — disse Ezren Valek, e seus olhos âmbar brilharam como os de um gato na penumbra. — vou receber meus convidados.

    Ele não caminhou em direção à porta da frente. Em vez disso, ele simplesmente... se fundiu com as sombras ao lado da lareira. Um momento ele estava lá, no outro, havia apenas uma mancha de escuridão mais profunda que se dissolveu no ar. A porta da sala fechou-se sozinha com um baque suave, deixando-a sozinha com o som dos uivos e dos arranhões na porta principal. Kaelina ficou paralisada, ouvindo. Os uivos eram agora constantes, um coro furioso que cercava a casa. Ela podia ouvir vozes guturais gritando ordens, rosnados de raiva. Outro impacto, mais forte desta vez, fez o lustre de cristal acima dela tilintar.

    Ela se arrastou até a janela mais próxima, afastando pesadas cortinas de veludo. A lua cheia, grande e pálida, iluminava o jardim frontal. Formas sombrias e sinuosas se moviam entre as árvores, dezenas de pares de olhos brilhantes fixos na casa. Vários lobisomens em sua forma bestial estavam batendo contra a porta principal, suas massas musculosas golpeando a madeira reforçada com força brutal. Então, ela o viu.

    Ezren não estava mais na casa. Ele estava no jardim, de pé no centro do caminho de pedra, iluminado pela luz da lua. Ele não parecia ter se armado. Suas mãos estavam vazias, penduradas ao seu lado. Ele parecia incrivelmente vulnerável, uma figura solitária e elegante contra a horda de bestas. Os lobisomens pararam de bater na porta. O uivo cessou. Um silêncio carregado caiu, quebrado apenas pelo rosnado baixo das feras. Eles se viraram, suas atenções agora totalmente focadas na nova presa. Da massa de corpos peludos e musculosos, uma figura emergiu. Era o líder, o híbrido que carregava a marca do olho. Ele caminhou até a frente do grupo, seus olhos dourados fixos em Ezren com ódio puro.

— Entregue-a, Valek — o lobisomem rosnou, sua voz um rugido gutural. — Ela não pertence a você.

    Ezren nem sequer pareceu ter ouvido. Ele olhava para a lua, como se admirando sua beleza.

— Eu disse, ENTREGUE-A! — o lobisomem rugiu, avançando alguns passos.

    Finalmente, Ezren baixou o olhar. Um sorriso frio e desdenhoso tocou seus lábios.

— Você e sua matilha de filhotes estão violando minha propriedade, Fenrir — sua voz era calma, mas carregava uma autoridade que cortou o ar como uma lâmina. — Eu sugiro que se retirem. Agora.

O lobisomem, Fenrir, soltou uma risada áspera e sem humor. — Sua propriedade? Esta terra sempre foi nossa! Você e os seus são apenas vermes que se enterram em nossa floresta!

    Ele deu um sinal com a cabeça. Três lobisomens se separaram do grupo e avançaram em Ezren, seus corpos agachados para o ataque. Kaelina prendeu a respiração, seus dedos se enterrando no veludo da cortina. Ezren não se moveu. Ele simplesmente observou-os se aproximarem. Quando o primeiro estava a apenas alguns metros de distância, saltando com garras estendidas, Ezren moveu a mão. Não foi um movimento de ataque. Foi um gesto quase negligente, como se estivesse afastando um inseto irritante. O lobisomem em pleno ar foi arremessado para o lado como se tivesse sido atingido por um aríete invisível. Ele atingiu a cerca de pedra com um baque ossudo e ficou imóvel.

    Os outros dois vacilaram, surpresos. Ezren aproveitou a hesitação. Ele se moveu. Não era teletransporte, mas era tão rápido que foi quase a mesma coisa. Um instante ele estava parado, no seguinte, ele estava ao lado de um dos lobos, sua mão pálida fechada em volta da garganta da besta. Houve um estalido seco e horrível. O lobisomem caiu, um peso morto. O terceiro recuou, rosnando de medo agora, não de raiva.

Fenrir urrou de fúria. — VOCÊ PAGARÁ POR ISSO, SUGADOR DE SANGUE!

    A matilha inteira pareceu avançar como uma única entidade, uma maré de dentes, garras e fúria rugindo em direção à figura solitária no caminho. Kaelina gritou, afastando-se da janela. Era uma sentença de morte. Nem mesmo Ezren poderia sobreviver àquilo. E então, um novo som cortou a noite. Não era um uivo. Era um rugido. Mas não era o rugido de um lobisomem. Era mais profundo, mais primitivo, carregado de uma fúria cru e incontrolável que fez as vidraças tremerem.

    Um vulto enorme e escuro explodiu da linha das árvores à esquerda da casa, movendo-se com uma velocidade brutal. Ele atingiu o flanco da matilha de lobisomens como uma bola de canhão, arremessando corpos para todos os lados. Era um lobisomem, mas maior do que qualquer um que Kaelina já tinha visto, sua pelagem uma mistura de castanho escuro e negro, seus olhos queimando com uma luz dourada intensa e selvagem. Ele lutava com uma ferocidade pura, sem estratégia, apenas destruição. A matilha, pega de surpresa, recuou em desordem.

    Ezren, que havia permanecido imóvel durante a carga, agora parecia... interessado. Ele observou o recém-chegado com uma expressão curiosamente contida. O novo lobo — um Alfa, ela podia sentir isso — ergueu a cabeça e rugiu novamente, um desafio que ecoou pelas montanhas. Seus olhos não estavam em Ezren. Eles estavam fixos em Fenrir.

— RONAN! — Fenrir rugiu, reconhecendo o recém-chegado. — Este não é o seu território! Este não é o seu clã!

    Ronan. O nome ecoou na mente de Kaelina. Ronan, o lobo gigante, ignorou-o. Seus olhos dourados passaram por Ezren por uma fração de segundo — um olhar de desprezo puro e não disfarçado — antes de se fixarem na casa. Especificamente, na janela onde Kaelina estava escondida. Ele farejou o ar profundamente, e seu rosnado baixo foi carregado de algo que soou como... reconhecimento. Ele então se virou e investiu contra a matilha desorganizada de Fenrir, seu objetivo claro: chegar até a casa. Até ela. O caos explodiu no jardim. Ronan lutava como um demônio, abrindo caminho através dos lobisomens de Fenrir. Ezren observava, seus lábios finos curvados em um quase-sorriso, como se assistisse a uma peça particularmente divertida. Ele não fez nada para interferir, nem para ajudar. Kaelina ficou paralisada, assistindo a duas forças da natureza — uma de gelo calculista, outra de fúria crua — colidirem em seu quintal, ambas, de alguma forma, centradas nela.

    Ronan finalmente abriu caminho, derrubando o último lobisomem entre ele e a porta da frente. Ele estava ensanguentado, sua pelagem manchada, mas seus olhos ainda queimavam com determinação. Ele ergueu uma garra enorme para golpear a porta... E então, seus olhos rolaram para trás e ele desabou pesadamente no degrau da frente, sua transformação começando a se desfazer mesmo enquanto ele perdia a consciência, revelando a forma de um homem grande e musculoso, coberto de sangue e sujeira. O silêncio caiu novamente, quebrado apenas pelos gemidos dos feridos. A matilha de Fenrir recuara, arrastando seus mortos e feridos, derrotada não por Ezren, mas por um intruso inesperado.

    Ezren caminhou calmamente até o corpo caído de Ronan. Ele olhou para baixo, para o lobisomem inconsciente, e depois ergueu os olhos para a janela onde Kaelina estava, sua expressão impenetrável. A porta da frente se abriu com um estalido suave, como um convite. Kaelina não sabia o que era mais aterrorizante: a horda de lobisomens, o vampiro impassível ou o selvagem que acabara de cair em sua porta para protegê-la. Ela só sabia que o uivo pode ter cessado, mas o perigo estava longe de terminar. Na verdade, ele tinha apenas mudado de forma.

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Asnisa Amallia

Asnisa Amallia

História arrebatadora! 💥

2025-09-11

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