A névoa que chegara na noite anterior não se dissipara com o amanhecer. Ela permanecia, teimosa, pairando sobre Val’Therya como um véu úmido e cinzento, abafando os sons e tornando o mundo um lugar de sombras silenciosas. Kaelina observava pela janela entreaberta de sua cabana, os dedos ainda frios pela água com que lavara a tigela do café. Algo estava errado. A floresta de Ébano, geralmente um murmuro vivo de cantos de pássaros e farfalhar de folhas, estava em silêncio. Um silêncio profundo, pesado, que ecoava o estranho frio na sua espinha que a acompanhava desde que acordara.
Ela se virou, olhando para o interior singelo de seu lar. A mesa de madeira áspera, a lareira com suas cinzas frias, as ervas penduradas para secar – tudo era familiar, tudo era seu. Mas hoje, a familiaridade não trazia conforto. Trouxe uma sensação de deslocamento, como se ela fosse uma intrusa na própria vida. Seus olhos pousaram na adaga de caça pendurada sobre a lareira, uma herança de pais que não conseguia lembrar. A lâmina, geralmente fosca, parecia captar a pouca luz que entrava, cintilando com um brilho opaco e inquietante.
O dia prosseguiu com uma lentidão agonizante. No mercado, os moradores de Val’Therya moviam-se como fantasmas através da névoa, suas vozes abafadas, seus olhares evitando os dela mais do que o usual. Os sussurros, no entanto, pareciam mais altos.
“…a estranha…”
“…nascida sob o eclipse sangrento…”
“…olhos de tempestade…”
Kaelina apertou o xale de lã mais forte contra o corpo, focando na tarefa de trocar seus pães por sal e um pedaço de tecido. A velha Martha, porém, parecia imune à atmosfera opressiva. Ou talvez estivesse tão acostumada a ela quanto às próprias rugas.
A mulher idosa puxou-a para dentro de sua barraca abarrotada de ervas e raízes, seus dedos ossudos envolvendo o pulso de Kaelina com uma força surpreendente. O cheiro de sálvia e algo metálico, como cobre, encheu o ar.
— A floresta sussurra hoje, criança — Martha disse, sua voz um rosnado baixo. Seus olhos leitosos pareciam enxergar algo muito além da névoa. — Ela sussurra seu nome.
Kaelina sentiu um frio percorrer sua coluna.
— O que você quer dizer, Martha?
— O sangue não mente, menina. O seu… ele canta uma canção antiga. Uma canção que alguns temem e outros desejam silenciar. — Seus dedos apertaram seu pulso, e Kaelina conteve um suspiro. A marca sob a atadura de linho latejou com uma dor surda e quente, como um coração adicional batendo sob sua pele. — O destino bate à sua porta. Não feche os olhos.
Ao sair da barraca, as palavras de Martha ecoavam em sua mente, misturando-se aos sussurros paranoicos da vila. O peso do olhar dos outros parecia físico. Ela precisava de ar. Precisava da floresta. Seguir para a densa fronteira de árvores era como entrar em outro mundo. A névoa era mais espessa aqui, enrolando-se nos troncos de carvalho retorcidos como “dedos pálidos e famintos”. O silêncio era absoluto. Nenhum pássaro, nenhum inseto, apenas o som abafado de seus próprios passos na folhagem molhada. Era seu santuário, seu refúgio, mas hoje parecia… expectante. Como se a própria floresta estivesse segurando a respiração.
E então, o sussurro veio. Não dos galhos, não do vento. Veio de dentro dela. Um sussurro áspero e seco, como folhas secas sendo arrastadas sobre pedra.
“…Kaelina…”
Ela parou bruscamente, o coração acelerado. Era a voz dos seus pesadelos. A voz que a acordava, suando e gelada, no meio da noite. Mas nunca a tinha ouvido acordada.
“…Ele vem… O véu se abre… O sangue cantará…”
A voz era uma serpente de gelo enrolando-se em seu cérebro. Ela apertou os olhos, tentando expulsá-la. “Não é real,” sussurrou para as árvores mudas. “É só a falta de sono. É o cansaço.”
Foi quando o cheiro a atingiu. Era o cheiro de terra molhada, folhas em decomposição e algo mais, indefinível, que lembrava ferro e incenso queimado. O mesmo cheiro do seu sonho mais recorrente. O mesmo cheiro do ritual dos seus sonhos. O arrepio que percorreu sua espinha foi tão violento que ela quase gritou. Seus instintos gritavam para fugir, mas seus pés pareciam enraizados no chão. A névoa ao seu redor começou a se agitar, a se condensar em formas que se moviam rápido demais para serem reais. Formas sinuosas e sombrias. Olhos brilharam na penumbra – vermelhos como brasas, dourados como o sol.
Um galho se partiu à sua direita. Um rosnado baixo e gutural veio da sua esquerda. Ela estava encurralada. O primeiro lobisomem emergiu da névoa. Não era uma fera sem sentido, mas uma criatura de pesadelo. Musculatura retorcida sob um pelo eriçado e escuro, saliva escorrendo de presas amareladas que pareciam longas demais para sua boca. Seus olhos dourados fixaram nela não com a fome cega de um animal, mas com um reconhecimento inteligente e aterrorizante.
Ele não atacou imediatamente. Parou a alguns metros, seu focinho contraindo no ar, cheirando-a. Quando falou, sua voz era um rosnado gutural que parecia rasgar o próprio ar, cada palavra saindo com dificuldade, como se não estivesse acostumado a formar sons tão complexos.
— A Profetisa. A Chave. Ela está aqui.
Kaelina, paralisada pelo terror, sentiu o calor no seu pulso intensificar-se até se tornar uma dor latejante e insuportável. Sem pensar, sua mão foi até a adaga na sua cintura, seus dedos encontrando o cabo de madeira áspero. O mundo ao seu redor diminuiu para a névoa, os olhos brilhantes e o som da própria respiração ofegante.
O segundo lobo, menor mas mais rápido, atacou. Foi um movimento rápido demais para seus olhos acompanharem, um borrão cinza saindo da névoa. Mas seu corpo reagiu sozinho. Ela se jogou para o lado, tropeçando nas raízes expostas, e a criatura passou raspando por ela, suas garras rasgando a manga de seu vestido e arranhando sua pele. A dor foi aguda e real, quebrando o feitiço de seu pavor. Sangue escorria de seu braço. O cheiro de ferro encheu o ar, e os olhos das criaturas brilharam com intensidade renovada.
O líder, aquele que falara, deu um passo à frente, ignorando a adaga tremula em sua mão. Ele inclinou a cabeça, cheirando o ar salgado com seu sangue.
— O sangue já desperta — ele rosnou, e então, seus músculos tensionaram para o salto mortal.
Foi quando Kaelina viu. Na testa da criatura, entre os tufos de pelo escuro, um símbolo cintilou brevemente com um reflexo pálido da luz que filtrava pela névoa: um olho vertical, idêntico ao do altar na floresta de seus sonhos. O tempo desacelerou. O uivo do lobisomem, o cheiro de seu próprio sangue, a voz sussurrando em sua mente – tudo se fundiu em um único ponto de puro pânico e sobrevivência. A adaga em sua mão pareceu aquecer, pulsando em sintonia com a marca em seu pulso. O lobisomem saltou. Kaelina gritou, não de medo, mas de raiva e desespero. Ela ergueu a adaga, não para golpear, mas instintivamente, para se proteger.
E algo aconteceu.
Um pulso de energia prateada explodiu de seu corpo. Não foi uma luz cegante, mas uma onda de força silenciosa e invisível que empurrou a névoa para trás e atingiu o lobisomem em pleno ar. A criatura foi arremessada para trás como se tivesse sido atingida por um touro, emitindo um uivo de surpresa e dor antes de cair pesadamente no chão, rolando entre as folhas secas. Os outros lobisomens recuaram, rosnando de surpresa e confusão. A névoa pareceu vacilar. Kaelina ficou de pé, trêmula, ofegante, a adaga ainda estendida em sua mão tremula. Ela não entendera o que acontecera. Seu pulso ardia como se tivesse sido pressionado contra ferro em brasa. A marca sob o linho agora pulsava com uma luz quente e latejante que ela podia ver através do tecido.
A voz em sua mente riu, um som seco e triunfante.
“…A caça começou, Profetisa…”
Os uivos recomeçaram, mais furiosos e próximos. Eles não estavam sozinhos. Havia mais deles. Virando-se, Kaelina quebrou em uma corrida cega, fugindo mais profundamente para a floresta de Ébano, com o som de perseguição e o eco de uma profecia recém-despertada rugindo em seus ouvidos. A garota da fronteira havia acabado. Algo mais começara.
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Atualizado até capítulo 21
Comments
Kama
Ansiosa pelo que vem aí!
2025-09-06
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