O PRÍNCIPE DAS SOMBRAS
Capítulo 1 – A Chamada
A chuva caía com força sobre a vila, um tamborilar constante que ecoava entre as casas de pedra e telhados encharcados. Amara se inclinava na janela do seu quarto, observando as gotas escorrerem pelo vidro, formando trilhas tortuosas que pareciam dançar ao sabor do vento. O céu estava carregado, tingido de um cinza tão profundo que parecia engolir o mundo.
Ela segurava um livro antigo em suas mãos, presente de sua tia-avó, um volume encapado em couro, gasto pelo tempo. As páginas estavam amareladas, cobertas por símbolos que nenhum dos moradores da vila parecia reconhecer. Amara passava os dedos sobre os desenhos, fascinada e inquieta ao mesmo tempo. Cada curva, cada linha parecia pulsar, como se o papel tivesse vida própria.
— Deveria estar dormindo — a voz suave da tia, vindo do corredor, a fez sobressaltar. — São quase duas da manhã, garota.
— Só mais um pouco… — murmurou Amara, sem se virar. Não conseguia explicar a ansiedade que sentia. Havia algo no livro que a atraía, algo que parecia chamá-la, mas que ela ainda não compreendia.
A vela sobre a mesa tremeluziu com o vento que entrava pela fresta da janela. Amara se aproximou para protegê-la com a mão, e foi nesse instante que sentiu a primeira pontada de frio que não vinha do vento. Uma sensação que percorria sua espinha, lenta, insistente, como se alguém — ou alguma coisa — estivesse observando cada movimento seu.
Ela engoliu em seco, tentando racionalizar. Talvez fosse apenas o clima, talvez apenas cansaço. Mas nos últimos dias, os sonhos haviam se tornado mais intensos. Sempre o mesmo corredor escuro, sempre os mesmos passos que ecoavam atrás dela, e aqueles dois olhos incandescentes que a fixavam, penetrando sua alma.
Amara fechou o livro com força, tentando afastar a lembrança. Precisava dormir. Precisava esquecer. Mas algo dentro dela a impedia. Algo que parecia sussurrar: Não é apenas um sonho.
Ela se levantou e caminhou até a pequena cômoda onde mantinha suas roupas. Ao pegar a camisa para se trocar, sentiu novamente o frio, mais intenso desta vez. Uma rajada de vento atravessou o quarto, apagando a vela e mergulhando tudo em uma escuridão que parecia viva. Amara engoliu em seco e acendeu outra vela, o coração batendo descompassado.
Quando voltou para a mesa, algo a fez congelar. As páginas do livro haviam se virado sozinhas, parando exatamente em um símbolo que ela nunca tinha visto: um círculo negro, atravessado por linhas finas que lembravam garras. O desenho parecia pulsar, expandindo e contraindo lentamente, como se respirasse.
— O que… — murmurou, mas sua voz morreu antes mesmo de sair.
Foi então que ouviu. Uma voz baixa, distante, sussurrando em seu ouvido, embora não houvesse ninguém no quarto:
— O pacto precisa ser cumprido.
Amara tropeçou para trás, o corpo paralisado, os olhos arregalados. Tentou convencer a si mesma de que era apenas sua imaginação, fruto de noites mal dormidas e livros antigos. Mas o calor que subia pelo seu corpo não era medo comum; era um aviso. Um aviso de que algo estava prestes a mudar, e que ela não teria escolha.
Ela se sentou na beira da cama, abraçando os joelhos, e respirou fundo. Tentou lembrar-se de como sua vida era “normal” até aquele ponto. Crescera na vila, entre árvores densas e riachos que cantavam durante o dia. As pessoas eram simples, amáveis, e a rotina consistia em ajudar na horta, estudar e ler livros antigos. Nada ali parecia indicar que existiam mundos além do que ela podia ver — mundos feitos de sombras, magia e pactos antigos.
Mas as mensagens não paravam. Nos últimos dias, pequenos sinais surgiam: sombras que se moviam mesmo sem vento, sussurros nos corredores à noite, o cabelo dela sendo puxado levemente quando ninguém estava por perto. Cada incidente fazia Amara duvidar de si mesma, mas, ao mesmo tempo, despertava uma curiosidade que não podia ignorar.
Naquela noite, algo diferente aconteceu. Enquanto caminhava pelo corredor para beber água, a madeira do chão rangiu de uma maneira que parecia formar palavras: “Ela vem”. Amara parou, tentando ouvir melhor. O corredor estava vazio, a casa silenciosa, exceto pelo rugido distante da chuva. Ela piscou, pensando que poderia estar imaginando. Mas a sensação de estar sendo observada era real — tão real quanto o frio que subia da sola dos pés até a nuca.
De repente, uma luz suave iluminou a porta da cozinha, embora todas as janelas estivessem fechadas. Amara sentiu um puxão involuntário em direção à luz. Seus instintos gritaram para que corresse, mas seus pés pareciam presos. Era como se uma força invisível a estivesse guiando.
Ela respirou fundo e aproximou-se lentamente. Quando colocou a mão na maçaneta, um clarão atravessou a sala, e um sussurro profundo ecoou novamente:
— Amara… está chegando a hora.
O som não vinha de ninguém; parecia vir de dentro dela. O coração acelerado, ela girou a maçaneta e abriu a porta. Lá fora, não havia ninguém — apenas a chuva e a noite densa. Mas algo brilhou no jardim, algo pequeno, quase imperceptível, que pulsava com uma luz negra.
Amara se aproximou, hesitante, o ar úmido e frio envolvendo seu corpo. Ao tocar o objeto, sentiu uma descarga que atravessou cada nervo de seu corpo. Um fragmento de cristal negro, frio como gelo, pulsava como um coração, e ela entendeu sem palavras: aquele era o chamado.
Ela não sabia o que significava, não sabia quem a chamava, mas uma certeza surgiu dentro dela: sua vida nunca mais seria a mesma.
O relógio bateu três horas da manhã, e a chuva parecia cessar apenas ao redor da casa, como se o mundo tivesse feito uma pausa para observá-la. Amara sentiu os joelhos cederem, apoiando-se na grade do jardim, e por um instante fechou os olhos, tentando se preparar para o desconhecido.
Quando os abriu novamente, algo no horizonte chamou sua atenção: uma silhueta se movia entre as árvores. Alta, majestosa, envolta em sombras que pareciam vivas. A figura parou e virou-se na direção dela, mas mesmo à distância, Amara sentiu os olhos. Dois pontos incandescentes, penetrantes, que a fixavam com intensidade. O sangue dela congelou.
Não havia tempo para pensar. Um vento gelado atravessou o jardim, fazendo os cabelos dela voarem, e uma voz profunda ecoou, não mais como sussurro, mas como um trovão silencioso que reverberava em sua alma:
— Amara.
Ela engoliu em seco. A figura se aproximava, mas mesmo antes de chegar, Amara soube: não era humana. Não completamente. Havia algo antigo, eterno, e havia algo nela que pertencia àquele mundo.
A chuva parou por completo, e o silêncio se tornou absoluto. Até os grilos e os pássaros desapareceram, como se a noite inteira tivesse prendido a respiração. A cada passo da figura, a sensação de estar sendo observada aumentava, e o coração de Amara batia com força descontrolada.
Quando finalmente ele chegou à beira do jardim, a luz do cristal negro em suas mãos brilhou intensamente. Ele estendeu a mão na direção dela, uma palma aberta, convidativa e ameaçadora ao mesmo tempo. Amara sentiu o mundo se inclinar, como se estivesse prestes a ser sugada para dentro de algo maior do que ela mesma.
— Você foi chamada — disse ele, e sua voz parecia tocar cada pensamento dela, cada medo, cada desejo que ainda nem sabia que existia. — E não há como escapar.
Amara tremeu. Tentou recuar, mas os pés não obedeciam. Uma força invisível a puxava em direção àquela silhueta que ela jamais esqueceria. Algo em seu sangue, algo em seu destino, estava se revelando.
Naquele momento, sob a chuva que havia parado apenas para observá-la, Amara compreendeu que o mundo que conhecia era apenas uma ilusão. Havia algo além, algo antigo, sombrio e irresistível. E aquela noite seria apenas o começo de tudo.
Ela não sabia o que a esperava. Não sabia que aquela figura alta e imponente seria Kael, o Príncipe das Sombras, nem que sua vida, tal como conhecia, estava prestes a ser completamente destruída — ou transformada.
Mas uma coisa ela sabia com certeza: nada seria como antes.
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Atualizado até capítulo 61
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