A Guardiã e o CEO
[Nota da Autora: Este trabalho é fictício. As pessoas, grupos, lugares, nomes de países e etc... que aparecem nesta obra não tem relação com a vida real.ヾ(^Д^*)/]
...***...
O ar, denso e úmido, era o primeiro abraço de cada amanhecer na Comunidade Santa Cecília, um pequeno ponto de resistência e vida incrustado no coração pulsante da Amazônia ocidental. Para a pequena Cecília, de apenas sete anos, aquele hálito da floresta era a única constante que conhecia, mais fiel que o sol que teimava em se esconder por trás do dossel eterno, mais antigo que as histórias da avó contadas à luz bruxuleante da lamparina. Sua pele, de um tom café reluzente sob a penumbra da mata, parecia absorver a própria essência daquele lugar – a força telúrica das raízes, a resiliência das folhas que renasciam, o mistério dos rios que serpenteavam como veias de um gigante adormecido.
A vida ali não era medida em relógios ou calendários, mas pelos ciclos da natureza: a cheia dos rios, a época da colheita do açaí, o canto dos uirapurus. E, acima de tudo, pelos risos e travessuras de Cecília e seu irmão mais novo, João, de cinco anos. João era a sua sombra, o seu eco, a sua responsabilidade mais preciosa. Com os olhos arregalados e curiosos, ele seguia Cecília por cada trilha, cada igarapé, absorvendo o conhecimento que ela, por sua vez, recebia dos mais velhos.
A floresta era o seu quintal, o seu playground, a sua escola. Cecília conhecia cada árvore pelo nome, cada pássaro pelo canto. Sabia onde encontrar as frutinhas mais doces, como identificar a planta medicinal para picadas de inseto, e qual o melhor tronco para servir de ponte improvisada sobre um riacho. João, com sua meninice desajeitada e seu sorriso banguela, era o aprendiz atento. Quando Cecília apontava para uma orquídea epífita pendurada num galho alto, explicando que ela vivia do ar e da umidade sem prejudicar a árvore hospedeira, os olhos de João brilhavam com a mesma reverência que os dela.
Havia uma seringueira majestosa, talvez a mais antiga e imponente da região, que para eles era um portal. Suas raízes tabulares se elevavam do solo como paredes de uma catedral natural, formando nichos e esconderijos perfeitos. Ali, sob a sombra eterna de suas folhas largas, Cecília e João passavam horas. Ela inventava histórias de curupiras e botos encantados, enquanto João desenhava na terra úmida com um graveto, ou simplesmente a ouvia, absorto. Era ali que Cecília se sentia a guardiã de um segredo ancestral, a protetora de um reino de magia e vida.
— Essa seringueira já viu muita coisa, João — ela sussurrava, acariciando o tronco rugoso — Nossos avós, os avós deles... ela estava aqui.
João, em sua inocência, respondia:
— Ela vai estar aqui para sempre, Cissa?
Cecília sorria, com a certeza das crianças:
— Para sempre.
A mãe deles, Dona Selma, uma mulher forte e serena que tecia cestos com uma habilidade que beirava a arte, observava os filhos com uma mistura de orgulho e uma pontinha de preocupação. Ela sabia que a floresta, embora generosa, também podia ser cruel para aqueles que não a respeitavam. O pai, Seu Pedro, um coletor de borracha e castanha que conhecia a mata como a palma da sua mão, ensinava-lhes o respeito pelas árvores, pelos rios, pelos animais.
— A gente tira dela o que precisa, mas sempre agradece e deixa para os que virão depois — ele dizia, com a voz grave e calma.
Mas as vozes dos pais, os ensinamentos dos avós, eram por vezes abafados por outros sons, que vinham de longe, da "parte de fora" da floresta. Eram ruídos metálicos, agressivos, que Cecília aprendera a temer. Os mais velhos chamavam-nos de "o progresso", mas para ela, soavam como a dor da própria terra. Eram os sons das motosserras, do maquinário pesado que derrubava árvores, não para subsistência, mas para o lucro rápido.
Noites de conversas tensas entre os adultos se tornavam mais frequentes. Palavras como "madeireiros", "grilagem", "ameaça" pairavam no ar, densas como a fumaça de queimadas distantes. Cecília, com sua sensibilidade aguçada, percebia a mudança na atmosfera. A floresta, antes um santuário de paz, agora parecia emitir um lamento distante.
Um dia, esse lamento se aproximou perigosamente. Era um dia quente e abafado, o tipo de dia em que o suor escorria em riachos pelas costas, e até os pássaros pareciam mais silenciosos. Cecília e João estavam na sua seringueira, brincando de esconde-esconde entre as raízes. João, rindo, havia se escondido num nicho particularmente escuro. Cecília estava prestes a encontrá-lo, quando o som a atingiu – não um som distante, mas um ruído estrondoso e próximo.
Era o rugido de um trator, seguido pelo guincho agudo de uma motosserra. O som era cru, violento, e parecia rasgar o próprio tecido da floresta. Um arrepio frio percorreu a espinha de Cecília. Ela não sabia exatamente o que era, mas seu instinto gritou "perigo".
— João? João! — ela chamou, a voz tremendo. Não houve resposta.
O som do trator parecia vir da direção oposta ao esconderijo de João. Cecília, com o coração batendo descompassado, decidiu ir ver o que acontecia, pensando que talvez, se soubesse, poderia alertar os adultos. Ou talvez, em sua inocência, pensou que poderia "parar" o barulho.
Ela correu, desviando-se de cipós e raízes, seguindo o rastro de destruição. O som ficava mais alto, mais insuportável. Então, ela viu. Uma clareira recém-aberta, cicatrizando a mata. Árvores gigantes, tombadas, suas copas esmagadas, seus galhos espalhados como ossos. Eram seres majestosos, agora inertes, sem vida. Um trator de esteira, monstruoso e barulhento, revirava a terra. Homens, com uniformes sujos e olhares vazios, operavam motosserras que choravam um lamento metálico. A fumaça do motor pairava no ar, misturando-se com o cheiro de seiva fresca e terra revolvida.
Cecília parou, chocada. O horror da cena a paralisou. A floresta, que ela amava, estava sendo rasgada.
De repente, ela ouviu. Um grito. Não o grito do trator, não o lamento da motosserra. Era um grito infantil, abafado, seguido de um som seco e assustador.
— João?
O seu coração parou. Aquele grito. Aquele som. Veio da direção da seringueira.
Sem pensar, ela correu de volta, o medo impulsionando suas pernas como nunca antes. Os homens, o trator, a devastação – tudo isso desapareceu da sua mente. Havia apenas João.
Ela correu de volta para a seringueira, o seu santuário, agora um lugar de terror. Os ruídos da derrubada ainda ecoavam, mas agora eram um fundo distante para o desespero que crescia em seu peito. Ao chegar ao local onde estiveram brincando, ela viu. O nicho onde João se escondia. E um tronco, grosso, pesado, que antes estava de pé a algumas dezenas de metros, agora caído, atravessado bem sobre o esconderijo.
Não havia barulho. Apenas o silêncio atordoado da floresta ferida.
Cecília gritou. Um grito primal, de pura agonia, que rasgou o ar úmido. Ela correu para o tronco, suas pequenas mãos tentando empurrar a madeira pesada, inútil.
— João! João!
Ela arranhou a madeira, as unhas quebrando, o sangue escorrendo, mas a dor física era insignificante perto do que estava dilacerando sua alma. Ela podia ver um pedaço da roupinha de João, um tecido azul que a mãe tinha costurado com tanto carinho.
Os homens da comunidade, alertados pelos ruídos da derrubada e pelo grito desesperado de Cecília, finalmente chegaram. Seu Pedro, com os olhos arregalados de horror, sua mãe, com um grito dilacerante, os outros vizinhos. Juntos, com esforço sobre-humano, eles tentaram mover o tronco, mas era tarde demais. O trator, que Cecília havia visto, tinha derrubado a árvore errada, ou talvez sequer se importara com o que havia em seu caminho.
Lentamente, com a ajuda de ferramentas, conseguiram afastar a árvore. E ali, na escuridão do nicho que fora seu esconderijo, estava João. Pequeno. Silencioso. Seus olhos, antes cheios de vida e curiosidade, agora fixos num ponto distante, vazios. Seu sorriso banguela, apagado para sempre. A camisa azul, manchada de terra e um vermelho escuro.
Cecília caiu de joelhos ao lado do irmão, tocando sua pele fria. A floresta, antes sua protetora, agora parecia um monstro que engolira seu tudo. Ela não chorou com lágrimas ruidosas, mas com um soluço abafado, um grito silencioso que vinha do fundo de sua alma. Ela abraçou o corpo inerte de João, sentindo o calor fugir dele, a vida esvair-se, levada pelo ruído distante de uma motosserra, pelo cheiro de terra revolvida, pela sombra da ganância que se abatera sobre seu pequeno irmão e seu mundo.
Naquele dia, sob a sombra da seringueira que não mais parecia eterna, Cecília fez uma promessa. Uma promessa silenciosa, profunda como as raízes daquela floresta, dolorosa como a ferida em seu coração. Ela não entendia as palavras "progresso" ou "lucro", mas compreendia a morte. E a morte de João, causada pela destruição impiedosa da mata, seria o fogo que acenderia sua alma.
Ela não sabia como, mas sabia que, um dia, lutaria. Lutaria contra os sons que mataram seu irmão, contra as mãos que derrubaram as árvores, contra os corações frios que não viam a vida na floresta. Ela se tornaria a voz de João, a guardiã da memória daquele lugar, e a protetora de todos os corações que batiam sob o dossel. A floresta havia levado seu irmão, mas também havia acendido nela uma chama inextinguível. Cecília Pereira, a menina da floresta, se levantaria.
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Se está gostando não deixe de curtir pra mim saber e me segue no coraçãozinho, bjs.
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Atualizado até capítulo 51
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