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A Guardiã e o CEO

Capítulo 1 - A Sombra da Seringueira

[Nota da Autora: Este trabalho é fictício. As pessoas, grupos, lugares, nomes de países e etc... que aparecem nesta obra não tem relação com a vida real.ヾ(^Д^*)/]

...***...

O ar, denso e úmido, era o primeiro abraço de cada amanhecer na Comunidade Santa Cecília, um pequeno ponto de resistência e vida incrustado no coração pulsante da Amazônia ocidental. Para a pequena Cecília, de apenas sete anos, aquele hálito da floresta era a única constante que conhecia, mais fiel que o sol que teimava em se esconder por trás do dossel eterno, mais antigo que as histórias da avó contadas à luz bruxuleante da lamparina. Sua pele, de um tom café reluzente sob a penumbra da mata, parecia absorver a própria essência daquele lugar – a força telúrica das raízes, a resiliência das folhas que renasciam, o mistério dos rios que serpenteavam como veias de um gigante adormecido.

A vida ali não era medida em relógios ou calendários, mas pelos ciclos da natureza: a cheia dos rios, a época da colheita do açaí, o canto dos uirapurus. E, acima de tudo, pelos risos e travessuras de Cecília e seu irmão mais novo, João, de cinco anos. João era a sua sombra, o seu eco, a sua responsabilidade mais preciosa. Com os olhos arregalados e curiosos, ele seguia Cecília por cada trilha, cada igarapé, absorvendo o conhecimento que ela, por sua vez, recebia dos mais velhos.

A floresta era o seu quintal, o seu playground, a sua escola. Cecília conhecia cada árvore pelo nome, cada pássaro pelo canto. Sabia onde encontrar as frutinhas mais doces, como identificar a planta medicinal para picadas de inseto, e qual o melhor tronco para servir de ponte improvisada sobre um riacho. João, com sua meninice desajeitada e seu sorriso banguela, era o aprendiz atento. Quando Cecília apontava para uma orquídea epífita pendurada num galho alto, explicando que ela vivia do ar e da umidade sem prejudicar a árvore hospedeira, os olhos de João brilhavam com a mesma reverência que os dela.

Havia uma seringueira majestosa, talvez a mais antiga e imponente da região, que para eles era um portal. Suas raízes tabulares se elevavam do solo como paredes de uma catedral natural, formando nichos e esconderijos perfeitos. Ali, sob a sombra eterna de suas folhas largas, Cecília e João passavam horas. Ela inventava histórias de curupiras e botos encantados, enquanto João desenhava na terra úmida com um graveto, ou simplesmente a ouvia, absorto. Era ali que Cecília se sentia a guardiã de um segredo ancestral, a protetora de um reino de magia e vida.

— Essa seringueira já viu muita coisa, João — ela sussurrava, acariciando o tronco rugoso — Nossos avós, os avós deles... ela estava aqui.

João, em sua inocência, respondia:

— Ela vai estar aqui para sempre, Cissa?

Cecília sorria, com a certeza das crianças:

— Para sempre.

A mãe deles, Dona Selma, uma mulher forte e serena que tecia cestos com uma habilidade que beirava a arte, observava os filhos com uma mistura de orgulho e uma pontinha de preocupação. Ela sabia que a floresta, embora generosa, também podia ser cruel para aqueles que não a respeitavam. O pai, Seu Pedro, um coletor de borracha e castanha que conhecia a mata como a palma da sua mão, ensinava-lhes o respeito pelas árvores, pelos rios, pelos animais.

— A gente tira dela o que precisa, mas sempre agradece e deixa para os que virão depois — ele dizia, com a voz grave e calma.

Mas as vozes dos pais, os ensinamentos dos avós, eram por vezes abafados por outros sons, que vinham de longe, da "parte de fora" da floresta. Eram ruídos metálicos, agressivos, que Cecília aprendera a temer. Os mais velhos chamavam-nos de "o progresso", mas para ela, soavam como a dor da própria terra. Eram os sons das motosserras, do maquinário pesado que derrubava árvores, não para subsistência, mas para o lucro rápido.

Noites de conversas tensas entre os adultos se tornavam mais frequentes. Palavras como "madeireiros", "grilagem", "ameaça" pairavam no ar, densas como a fumaça de queimadas distantes. Cecília, com sua sensibilidade aguçada, percebia a mudança na atmosfera. A floresta, antes um santuário de paz, agora parecia emitir um lamento distante.

Um dia, esse lamento se aproximou perigosamente. Era um dia quente e abafado, o tipo de dia em que o suor escorria em riachos pelas costas, e até os pássaros pareciam mais silenciosos. Cecília e João estavam na sua seringueira, brincando de esconde-esconde entre as raízes. João, rindo, havia se escondido num nicho particularmente escuro. Cecília estava prestes a encontrá-lo, quando o som a atingiu – não um som distante, mas um ruído estrondoso e próximo.

Era o rugido de um trator, seguido pelo guincho agudo de uma motosserra. O som era cru, violento, e parecia rasgar o próprio tecido da floresta. Um arrepio frio percorreu a espinha de Cecília. Ela não sabia exatamente o que era, mas seu instinto gritou "perigo".

— João? João! — ela chamou, a voz tremendo. Não houve resposta.

O som do trator parecia vir da direção oposta ao esconderijo de João. Cecília, com o coração batendo descompassado, decidiu ir ver o que acontecia, pensando que talvez, se soubesse, poderia alertar os adultos. Ou talvez, em sua inocência, pensou que poderia "parar" o barulho.

Ela correu, desviando-se de cipós e raízes, seguindo o rastro de destruição. O som ficava mais alto, mais insuportável. Então, ela viu. Uma clareira recém-aberta, cicatrizando a mata. Árvores gigantes, tombadas, suas copas esmagadas, seus galhos espalhados como ossos. Eram seres majestosos, agora inertes, sem vida. Um trator de esteira, monstruoso e barulhento, revirava a terra. Homens, com uniformes sujos e olhares vazios, operavam motosserras que choravam um lamento metálico. A fumaça do motor pairava no ar, misturando-se com o cheiro de seiva fresca e terra revolvida.

Cecília parou, chocada. O horror da cena a paralisou. A floresta, que ela amava, estava sendo rasgada.

De repente, ela ouviu. Um grito. Não o grito do trator, não o lamento da motosserra. Era um grito infantil, abafado, seguido de um som seco e assustador.

— João?

O seu coração parou. Aquele grito. Aquele som. Veio da direção da seringueira.

Sem pensar, ela correu de volta, o medo impulsionando suas pernas como nunca antes. Os homens, o trator, a devastação – tudo isso desapareceu da sua mente. Havia apenas João.

Ela correu de volta para a seringueira, o seu santuário, agora um lugar de terror. Os ruídos da derrubada ainda ecoavam, mas agora eram um fundo distante para o desespero que crescia em seu peito. Ao chegar ao local onde estiveram brincando, ela viu. O nicho onde João se escondia. E um tronco, grosso, pesado, que antes estava de pé a algumas dezenas de metros, agora caído, atravessado bem sobre o esconderijo.

Não havia barulho. Apenas o silêncio atordoado da floresta ferida.

Cecília gritou. Um grito primal, de pura agonia, que rasgou o ar úmido. Ela correu para o tronco, suas pequenas mãos tentando empurrar a madeira pesada, inútil.

— João! João!

Ela arranhou a madeira, as unhas quebrando, o sangue escorrendo, mas a dor física era insignificante perto do que estava dilacerando sua alma. Ela podia ver um pedaço da roupinha de João, um tecido azul que a mãe tinha costurado com tanto carinho.

Os homens da comunidade, alertados pelos ruídos da derrubada e pelo grito desesperado de Cecília, finalmente chegaram. Seu Pedro, com os olhos arregalados de horror, sua mãe, com um grito dilacerante, os outros vizinhos. Juntos, com esforço sobre-humano, eles tentaram mover o tronco, mas era tarde demais. O trator, que Cecília havia visto, tinha derrubado a árvore errada, ou talvez sequer se importara com o que havia em seu caminho.

Lentamente, com a ajuda de ferramentas, conseguiram afastar a árvore. E ali, na escuridão do nicho que fora seu esconderijo, estava João. Pequeno. Silencioso. Seus olhos, antes cheios de vida e curiosidade, agora fixos num ponto distante, vazios. Seu sorriso banguela, apagado para sempre. A camisa azul, manchada de terra e um vermelho escuro.

Cecília caiu de joelhos ao lado do irmão, tocando sua pele fria. A floresta, antes sua protetora, agora parecia um monstro que engolira seu tudo. Ela não chorou com lágrimas ruidosas, mas com um soluço abafado, um grito silencioso que vinha do fundo de sua alma. Ela abraçou o corpo inerte de João, sentindo o calor fugir dele, a vida esvair-se, levada pelo ruído distante de uma motosserra, pelo cheiro de terra revolvida, pela sombra da ganância que se abatera sobre seu pequeno irmão e seu mundo.

Naquele dia, sob a sombra da seringueira que não mais parecia eterna, Cecília fez uma promessa. Uma promessa silenciosa, profunda como as raízes daquela floresta, dolorosa como a ferida em seu coração. Ela não entendia as palavras "progresso" ou "lucro", mas compreendia a morte. E a morte de João, causada pela destruição impiedosa da mata, seria o fogo que acenderia sua alma.

Ela não sabia como, mas sabia que, um dia, lutaria. Lutaria contra os sons que mataram seu irmão, contra as mãos que derrubaram as árvores, contra os corações frios que não viam a vida na floresta. Ela se tornaria a voz de João, a guardiã da memória daquele lugar, e a protetora de todos os corações que batiam sob o dossel. A floresta havia levado seu irmão, mas também havia acendido nela uma chama inextinguível. Cecília Pereira, a menina da floresta, se levantaria.

...***...

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Capítulo 2 - A Torre de Aço e Vidro

Dezenove anos. Dezenove anos haviam se passado desde a sombra daquela seringueira, mas para Cecília Pereira, a ferida ainda pulsava com a cadência de uma memória viva. O som da motosserra, o cheiro de seiva e terra, o silêncio esmagador que se seguiu ao grito de João – tudo estava gravado em sua alma com a precisão de um corte de facão em um tronco. A promessa silenciosa feita por uma menina de sete anos de idade havia se tornado o alicerce da mulher de vinte e seis que agora se olhava no espelho de um pequeno apartamento no vigésimo andar, em algum lugar no coração pulsante e cinzento de São Paulo.

A menina de pés descalços e pele beijada pelo sol da Amazônia dera lugar a uma mulher de beleza estonteante e seriedade contida. Seus cabelos, uma coroa de tranças nagô que desciam pelas costas, eram um ato de orgulho e identidade. A pele, antes marcada por arranhões de galhos e picadas de insetos, agora estava coberta por um tailleur de linho bege, uma armadura cuidadosamente escolhida para a batalha que estava por vir. Graduada com louvor em Relações Internacionais e com um mestrado em Gestão Ambiental pela Sorbonne, em Paris, Cecília havia afiado sua mente como uma arma. Ela trocara as trilhas da mata pelos corredores do poder, o dialeto de sua comunidade por quatro idiomas fluentes. Cada diploma, cada artigo publicado, cada noite em claro sobre livros de direito ambiental e economia, tudo fora um passo calculado em direção a este exato dia. O dia em que ela entraria na boca do lobo.

Do outro lado da janela, São Paulo despertava. Uma selva de concreto, aço e vidro que se estendia até onde a vista alcançava, sufocada por uma névoa de poluição que tingia o nascer do sol de um laranja artificial e doentio. O som que a envolvia não era o coro de pássaros e macacos, mas a sinfonia cacofônica da metrópole: buzinas impacientes, sirenes distantes, o rugido constante de um tráfego que nunca dormia. Era um ecossistema diferente, regido por leis diferentes, onde o mais forte não era o que melhor se adaptava à natureza, mas o que melhor a dominava.

Ela segurou o crachá recém-emitido em suas mãos. "Cecília Pereira - Analista de Relações Socioambientais - Geo-Solutions". O nome da empresa parecia queimar seus dedos. Geo-Solutions. A gigante, a predadora, uma das maiores corporações de recursos naturais do planeta, com tentáculos em mineração, agronegócio e projetos de infraestrutura que redesenhavam mapas e ecossistemas. Era uma das responsáveis diretas pelo tipo de "progresso" que matara seu irmão. E agora, era sua empregadora.

A ironia era tão amarga que quase a fez sorrir. Seus professores e colegas ativistas a haviam chamado de louca, de vendida. Mas eles não entendiam. Gritar do lado de fora era necessário, mas Cecília queria mais. Ela queria estar na sala onde as decisões eram tomadas. Queria entender a linguagem do inimigo, usar suas próprias ferramentas contra ele, ser o vírus no sistema, a semente de uma árvore que cresceria para rachar o concreto por dentro.

O táxi a deixou em frente ao monólito que era a sede da Geo-Solutions na Avenida Faria Lima. O edifício não era apenas um prédio; era uma declaração de poder. Uma torre de vidro fumê e aço escovado que perfurava o céu paulistano, tão alta que parecia sugar a luz ao seu redor. Não havia uma única curva em seu design, apenas ângulos retos, linhas duras e uma frieza geométrica que parecia desprezar a desordem orgânica do mundo natural. Cecília sentiu um calafrio, apesar do calor crescente da manhã. Era ali. O coração da besta.

Ao entrar no lobby, o mundo exterior desapareceu. O barulho da cidade foi substituído por um silêncio pesado e reverente, o tipo de silêncio que se encontra em catedrais ou em cofres de banco. O chão de mármore negro polido refletia o teto altíssimo, criando a ilusão de um abismo sob seus pés. O ar era gelado, filtrado e com um cheiro artificial de limpeza, tão diferente do hálito úmido e terroso da floresta. Pessoas de ternos caros e sapatos de grife deslizavam pelo lobby com a urgência silenciosa de predadores, seus rostos impassíveis, seus olhares focados em telas de smartphones. Ninguém se olhava, ninguém sorria. Eram engrenagens eficientes em uma máquina colossal.

— Cecília Pereira? — uma voz simpática a tirou de seu torpor. Uma jovem do RH, de sorriso ensaiado e tablet na mão, a guiou até as catracas de acesso — Seja bem-vinda à Geo-Solutions. Seu andar é o 34º, departamento de Sustentabilidade e Relações Institucionais.

O elevador era uma cápsula de aço escovado que subia com uma velocidade vertiginosa e silenciosa. A cada andar que passava, Cecília sentia a pressão aumentar em seus ouvidos e em seu peito. Era como mergulhar, não na água, mas para cima, em direção a um ambiente onde o ar seria mais rarefeito, mais difícil de respirar.

O 34º andar era um labirinto de vidro e carpete cinza. Um espaço aberto, onde dezenas de pessoas trabalhavam em baias idênticas, separadas por divisórias baixas. A única luz natural vinha das imensas janelas que iam do chão ao teto, oferecendo uma vista panorâmica e asséptica da cidade lá embaixo. O som dominante era o murmúrio constante dos teclados, o zumbido dos computadores e o toque discreto dos telefones. Era uma colmeia de produtividade, estéril e sem alma.

Uma mulher de meia-idade, com um sorriso genuíno que se destacava naquele ambiente, se aproximou.

— Cecília? Sou Ana Torres, sua gerente. Seja muito bem-vinda. Estávamos ansiosos pela sua chegada. Seu currículo é impressionante.

Ana a conduziu até sua mesa, um retângulo branco e impessoal ao lado da janela.

— Aqui é o seu lugar. A vista ajuda a inspirar — disse ela, com uma piscadela.

Cecília olhou para fora. Inspirar? A vista era um mar de concreto. Prédios e mais prédios, um emaranhado de ruas e viadutos, carros movendo-se como insetos metálicos. Lá embaixo, o Parque do Povo parecia um pequeno e patético remendo de verde, uma tentativa fútil de lembrar que a natureza um dia existira ali. Ela se lembrou da vista de sua infância: um oceano de copas de árvores, de um verde tão intenso e variado que nenhuma paleta de cores poderia replicar. A comparação lhe causou uma dor física no peito. O que para Ana era inspiração, para Cecília era um atestado da doença do mundo.

Ela sentou-se na cadeira ergonômica, sentindo o material sintético contra sua pele. Ligou o computador de última geração, que ganhou vida com o logotipo da Geo-Solutions. Por um momento, o pânico a envolveu. O medo de ser apenas mais uma peça naquela engrenagem. O medo de que sua promessa, sua missão, fosse uma fantasia infantil, ingênua e impotente diante da magnitude daquela máquina de fazer dinheiro. O fantasma de João pareceu sussurrar em seu ouvido: "O que você está fazendo aqui, Cissa? Eles são os monstros."

Seus olhos se encheram de lágrimas. Ela piscou rapidamente, recusando-se a chorar. Não ali. Nunca ali. Ela respirou fundo, tentando encontrar em suas memórias o cheiro da terra molhada, mas tudo o que sentia era o aroma artificial do ar-condicionado. A dúvida era um veneno, e ela sentiu-o começar a se espalhar. Talvez seus amigos estivessem certos. Talvez ela estivesse se vendendo, se iludindo.

Com as mãos trêmulas, ela abriu a bolsa de couro que repousava ao lado da mesa. Ignorou os cadernos, a caneta, o celular. Seus dedos procuraram no fundo, até encontrarem um pequeno objeto liso e frio. Ela o trouxe para a palma da mão, fechando os dedos ao redor dele.

Era uma semente de castanha-do-pará, polida por anos de manuseio. Fora a última que seu pai lhe dera antes de ela partir para a faculdade. Era um pedaço de sua casa, de sua floresta, de sua verdade. Ao segurá-la, o calor de sua mão aqueceu a semente, e por um instante, ela pôde sentir a pulsação da vida latente ali dentro. Podia sentir a força da árvore gigantesca que aquela pequena semente poderia se tornar, uma árvore capaz de resistir a tempestades, de abrigar vida, de se erguer mais alta que qualquer torre de aço.

Ela apertou a semente com força. O medo recuou, substituído pela brasa da raiva e da determinação que a havia levado até ali. Ela não era uma peça. Era uma semente. Plantada no lugar mais improvável, mais hostil. E ela iria crescer. Iria fincar raízes, mesmo que tivesse que quebrar o concreto para isso.

Cecília abriu a mão e olhou para a castanha. Depois, ergueu o olhar para a cidade que se estendia à sua frente. Não mais com medo, mas com o olhar frio e focado de uma guerreira em território inimigo.

A guerra silenciosa de Cecília Pereira havia começado.

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Capítulo 3 - O Executor

A primeira semana de Cecília na Geo-Solutions foi um mergulho em águas profundas e gélidas. Ela passou os dias imersa em relatórios, planilhas e projeções que traduziam a devastação em uma linguagem asséptica e corporativa. Florestas eram "ativos madeireiros", rios eram "recursos hídricos com potencial hidrelétrico", e comunidades inteiras eram "fatores humanos a serem gerenciados". Era a lógica fria da máquina, e Cecília sentia um calafrio a cada página que virava. Sua mesa, antes um retângulo branco e estéril, agora estava coberta de mapas, anotações e cópias de laudos que ela mesma desenterrara dos arquivos digitais da empresa.

Seu foco imediato era o "Projeto Silex", uma nova fase de expansão da extração de bauxita em uma área remota de Carajás. Nos documentos oficiais, era um triunfo da engenharia e da logística, prometendo milhares de empregos e um aumento de 15% na produção. Mas nos relatórios que Cecília encontrou, enterrados em anexos e notas de rodapé, a história era outra. A expansão tangenciava perigosamente uma terra indígena demarcada e ameaçava a nascente de um rio vital para dezenas de comunidades ribeirinhas. Era uma bomba-relógio socioambiental, e o cronômetro estava prestes a zerar.

Na manhã de sexta-feira, Ana, sua gerente, aproximou-se de sua mesa com um olhar que era uma mistura de encorajamento e apreensão.

— Cecília, o Dr. Bastos convocou uma reunião de alinhamento para o Silex às dez. Ele quer que você apresente suas considerações iniciais do relatório de impacto — Ana baixou a voz — O Eduardo vai estar presente. Ele é o Diretor de Operações. Apenas... seja objetiva. Fatos e dados. Ele não lida bem com o resto.

O nome "Eduardo" já era uma lenda nos corredores do 34º andar. O Executor. O homem de confiança do conselho. Dizia-se que ele tinha a capacidade de olhar para uma floresta e ver apenas os bilhões de dólares em celulose e minério. Dizia-se que ele havia reestruturado a operação africana da empresa com uma eficiência tão brutal que deixara um rastro de demissões e protestos abafados. Ele era o motivo pelo qual muitos ali, mesmo no departamento de sustentabilidade, tratavam seus próprios relatórios como mera formalidade. Cecília sentiu um nó se formar em seu estômago. Era a hora do teste.

A sala de reuniões do 40º andar era o cérebro da torre. Uma mesa de mogno negro, longa e polida como a superfície de um lago congelado, dominava o ambiente. As cadeiras de couro eram tronos modernos. Uma parede inteira era de vidro, oferecendo uma vista soberana da cidade, como se o mundo lá fora fosse apenas um tabuleiro de jogo. A tecnologia era de ponta, com telas embutidas e um sistema de teleconferência que conectava aquela sala a qualquer canto do globo.

Quando Cecília entrou, acompanhada por Ana, a maioria dos assentos já estava ocupada por homens mais velhos, de cabelos grisalhos e ternos escuros. Eram os chefes de engenharia, logística, finanças. O ar era pesado com o cheiro de café forte e o peso de decisões de bilhões de dólares. Dr. Bastos, o chefe de engenharia, um homem robusto de rosto avermelhado, presidia a cabeceira, mas um lugar ao seu lado permanecia vazio. A cadeira do poder.

A reunião começou pontualmente. Dr. Bastos projetou gráficos e cronogramas, falando sobre toneladas de minério, eficiência de transporte e margens de lucro. A linguagem era puramente extrativista. A floresta, as pessoas, o rio – nada disso existia em seus cálculos. E então, ele se virou para Cecília.

— Srta. Pereira, a nova analista de nosso time socioambiental. Gostaríamos de ouvir suas considerações preliminares.

Todos os olhos se viraram para ela. Cecília sentiu o peso de ser a única mulher jovem e negra naquela sala. Ela respirou fundo, segurando mentalmente sua semente de castanha, e se levantou. Sua voz saiu firme, clara.

— Obrigada, Dr. Bastos. Senhores. Após análise dos relatórios de impacto e cruzamento de dados com os mapas mais recentes da FUNAI, identifiquei três pontos de risco crítico no Projeto Silex — Ela projetou seus próprios mapas na tela, sobrepondo a área de expansão com as terras indígenas e a bacia hidrográfica — Primeiro, a área designada para o depósito de rejeitos invade em quase dois quilômetros a zona de amortecimento da Terra Indígena Kayapó. Segundo, a rota logística proposta para os caminhões irá inevitavelmente causar o assoreamento da nascente do Rio Claro, impactando diretamente mais de trinta comunidades que dependem dele para subsistência. Terceiro...

Ela foi interrompida pela porta da sala que se abriu silenciosamente. Um homem entrou. A atmosfera mudou instantaneamente. O falatório cessou, as posturas se endireitaram. Ele não era alto ou corpulento, mas carregava uma aura de autoridade inquestionável. Vestia um terno cinza-chumbo perfeitamente cortado, sem um único amasso. Seu cabelo escuro era curto, seu rosto tinha traços angulares e definidos, e seus olhos... seus olhos eram de um castanho tão escuro que pareciam quase negros, frios e analíticos. Ele se moveu com uma economia de gestos, sentando-se na cadeira vazia ao lado de Bastos sem dizer uma palavra, apenas fazendo um leve aceno com a cabeça para que a reunião prosseguisse.

Era ele. O Executor.

Cecília sentiu o olhar dele sobre si, não um olhar de interesse, mas de avaliação, como um geólogo analisaria uma rocha. Ela engoliu em seco e continuou, sua voz agora carregada de uma urgência ainda maior.

— ...e terceiro, e mais grave, o desmatamento necessário para o acesso inicial ao platô de bauxita irá destruir uma área considerada sagrada pelos Kayapó, o que não consta em nenhum dos nossos relatórios. Isso não é apenas uma violação de protocolos internacionais dos quais o Brasil é signatário, mas uma garantia de conflito direto, litígios que podem paralisar o projeto por anos e causar um dano de imagem incalculável à Geo-Solutions.

Quando terminou, um silêncio tenso preencheu a sala. Dr. Bastos pigarreou, parecendo desconfortável. Os outros executivos se entreolharam. Então, Eduardo falou. Sua voz era calma, barítono, sem qualquer inflexão de emoção.

— Agradeço a paixão da Srta. Pereira em sua apresentação — A palavra "paixão" soou como um insulto velado. Ele não olhou para ela, mas folheou um resumo em seu tablet — No entanto, estamos operando com um cronograma e um orçamento definidos. A zona de amortecimento que a senhorita mencionou está, como o nome diz, fora da terra demarcada, portanto, legalmente acessível. As comunidades ribeirinhas serão realocadas para um novo assentamento com infraestrutura superior e devidamente compensadas financeiramente, conforme a legislação.

Cecília não podia acreditar na frieza daquelas palavras.

— Compensadas? — ela interrompeu, incapaz de se conter — Dr. Eduardo, com todo respeito, não estamos falando de um cálculo financeiro. Estamos falando de um etnocídio cultural e de um ecocídio. Não se pode 'realocar' a relação de um povo com um rio. Não se pode 'compensar' a destruição de um lugar sagrado.

Pela primeira vez, ele ergueu os olhos do tablet e a fitou diretamente. O impacto foi como um choque de água gelada. Não havia raiva em seu olhar, nem mesmo irritação. Havia apenas um tédio calculista, uma impaciência fria com a interrupção.

— Senhorita Pereira — disse ele, o tom ainda perfeitamente nivelado, mas agora com um fio de aço — Nós somos uma corporação de recursos naturais, não uma organização não governamental. Nossa primeira e principal obrigação é com a geração de valor para os nossos acionistas e com o cumprimento dos contratos que assinamos. O seu trabalho, e o do seu departamento, é mitigar os riscos operacionais para que possamos cumprir essa obrigação.

Ele fez uma pausa, deixando o peso de suas palavras assentar. Então, desferiu o golpe final.

— O que a senhorita apresentou não são riscos críticos. São empecilhos sentimentais. Nós vamos precificá-los, gerenciá-los e seguir em frente — Ele se virou para o resto da mesa, dispensando Cecília com o gesto — Se não há mais nada de relevante para discutir, vamos passar para a otimização da logística de escoamento.

A sala inteira se moveu com ele. A discussão mudou instantaneamente para ferrovias e portos. Cecília permaneceu de pé, invisível, o sangue fervendo em suas veias. "Empecilhos sentimentais". Ele havia reduzido a vida de milhares de pessoas, a santidade de uma cultura, a saúde de um rio, a um mero estorvo emocional. Ele não havia refutado seus dados; ele simplesmente os invalidara, declarando-os irrelevantes.

Ela se sentou, o corpo tremendo de uma fúria impotente. Ana colocou uma mão discreta em seu braço, um gesto silencioso de solidariedade. Cecília olhou para Eduardo, que agora discutia detalhes técnicos com a mesma intensidade focada e desumana.

Naquele momento, ela entendeu. O inimigo não era um sistema abstrato ou uma logo corporativa. O inimigo tinha um rosto. Tinha um nome. E ele estava sentado à cabeceira daquela mesa, executando sentenças de morte com a mesma calma com que assinaria um memorando.

O monstro da torre tinha um nome: Eduardo. E a guerra de Cecília acabara de encontrar seu general adversário.

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