A semana que se seguiu à reunião foi um inferno de silêncio e estratégia. A frase "empecilhos sentimentais" ecoava na mente de Cecília como um tambor de guerra. Ela não se permitiu sentir-se derrotada; em vez disso, a humilhação pública e a frieza de Eduardo serviram como combustível. Ela canalizou sua fúria em trabalho. Passou mais de doze horas por dia na torre de aço e vidro, transformando sua baia num quartel-general. Espalhou mapas topográficos, imprimiu pareceres jurídicos internacionais e entrou em contato com sua antiga rede de ativistas e acadêmicos, coletando dados que a Geo-Solutions preferia ignorar.
Se Eduardo queria uma guerra de fatos, era isso que ele teria. Cecília preparou um dossiê. Não um apelo emocional, mas uma análise de risco fria e implacável, usando a própria linguagem corporativa contra eles. Traduziu a destruição de um lugar sagrado para "risco de litígio com perdas estimadas em nove dígitos". O assoreamento do rio tornou-se uma "quebra de conformidade com os Princípios do Equador, resultando em potencial retração de investimentos internacionais". A revolta das comunidades ribeirinhas foi enquadrada como um "risco operacional com potencial de paralisação total da cadeia logística". Ela estava armando sua catapulta com as pedras do próprio castelo inimigo.
A oportunidade para o confronto veio na quarta-feira seguinte. Eduardo, insatisfeito com o que considerava "lentidão burocrática", convocou uma reunião de "força-tarefa" sobre o Projeto Silex em uma sala de trabalho menor e mais informal no andar deles. O objetivo, segundo o e-mail, era "remover os obstáculos finais para a fase de implementação". Era um eufemismo para atropelar qualquer oposição. Além de Cecília e Ana, estavam presentes os engenheiros-chefes e o gerente de logística, uma equipe enxuta para tomar decisões rápidas.
Cecília chegou à sala cinco minutos antes, o coração batendo forte contra as costelas. Ela colocou uma cópia impressa e encadernada de seu dossiê de quarenta páginas em cada lugar da mesa. Quando Eduardo entrou, pontual como sempre, ele parou por um instante, seu olhar percorrendo os documentos com uma sobrancelha levemente arqueada. Ele não disse nada, mas Cecília sentiu a mudança sutil na atmosfera. A caça havia decidido confrontar o predador em seu próprio território.
Eduardo iniciou a reunião dispensando formalidades.
— O cronograma está atrasado em duas semanas. Quero saber o que está segurando a mobilização inicial da equipe de terraplanagem. Bastos, comece.
O engenheiro-chefe pigarreou, lançando um olhar nervoso para Cecília
— Eduardo, estamos... uhm... aguardando o parecer final do departamento socioambiental. Há algumas... preocupações levantadas pela Srta. Pereira.
O olhar de Eduardo, frio como gelo, moveu-se para Cecília. Era um convite para o duelo.
— Srta. Pereira, eu acreditava ter sido claro na última reunião. Suas 'preocupações' foram anotadas e serão gerenciadas. O que mais há para discutir?
Cecília se inclinou para a frente, as mãos apoiadas em seu dossiê.
— Dr. Eduardo, o que eu apresentei não foram preocupações, foram alertas. E o que está sobre a mesa à sua frente não é um parecer, é uma análise de risco detalhada que prova que seguir com o cronograma atual não é apenas irresponsável, é financeiramente suicida para este projeto.
Um murmúrio percorreu a sala. Chamar uma decisão do Executor de "suicida" era uma heresia.
Eduardo abriu o dossiê lentamente, seus olhos passando pelas primeiras páginas com uma velocidade impressionante. Ele não parecia ler, mas absorver a informação. Por um minuto, o único som na sala foi o virar das páginas.
— Uma análise de risco interessante, Srta. Pereira — disse ele, finalmente, fechando o documento. A calma em sua voz era mais ameaçadora do que qualquer grito — Você cita a possibilidade de litígios internacionais. O nosso departamento jurídico, um dos melhores do país, discorda da sua interpretação da lei.
— Seu departamento jurídico interpreta a lei brasileira — retrucou Cecília, a voz firme — Eu estou citando precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já condenou nações por violações muito menores contra povos indígenas. Seus advogados estão olhando para a árvore, eu estou mostrando a floresta inteira, e ela está prestes a pegar fogo.
As farpas começaram a voar, afiadas e precisas.
— Você fala em retração de investimentos — continuou Eduardo — Nossos principais investidores são fundos pragmáticos que olham para o EBITDA, não para manchetes de ONGs.
— Esses fundos pragmáticos — devolveu Cecília — estão cada vez mais pressionados por seus próprios acionistas a seguir critérios ESG (Ambiental, Social e de Governança). Um escândalo em Carajás seria exatamente o tipo de manchete que os faria reavaliar seu pragmatismo. Sua projeção de lucro não leva em conta o custo de um desastre de relações públicas.
A tensão na sala era palpável. Os outros executivos pareciam ter encolhido em suas cadeiras, observando a partida de xadrez verbal como se estivessem no meio de um tiroteio.
— Você superestima o impacto dessas comunidades — disse Eduardo, com um toque de desdém — São grupos pequenos, isolados.
Aquele foi o gatilho. A imagem de João, pequeno e silencioso sob o tronco, invadiu a mente de Cecília. Sua voz, antes controlada e técnica, ganhou um tremor de fúria contida.
— Grupos pequenos? Dr. Eduardo, o senhor alguma vez já saiu desta torre e olhou nos olhos das pessoas cujas vidas o senhor destrói com uma assinatura? Já sentiu o cheiro da lama de um rio que o senhor condenou à morte? Já ouviu o silêncio que fica depois que as motosserras passam? — Ela se levantou, as mãos espalmadas sobre a mesa — Para o senhor, são números numa planilha, 'fatores humanos a serem gerenciados'. Para mim, eles têm nomes. Têm histórias. E o senhor não tem o direito de apagá-las em nome do 'valor para o acionista'.
O ataque foi tão direto, tão pessoal, que até Eduardo pareceu momentaneamente surpreendido. Seu rosto, normalmente uma máscara de controle, endureceu. Uma veia pulsou em sua têmpora. Ele também se levantou, e a sala pareceu pequena demais para os dois.
— E o que a senhorita sugere? — disse ele, a voz baixa e perigosa — Que paralisemos um projeto de dois bilhões de dólares, que empregará centenas de pessoas e pagará milhões em impostos, por causa de... sentimentos?
— Eu sugiro que o senhor pare de confundir responsabilidade com sentimento! — ela explodiu — Sugiro que a gente use a inteligência e os vastos recursos desta empresa para encontrar uma solução que não exija o sacrifício de um ecossistema inteiro e de um povo! Mudar a rota logística, investir em tecnologia de extração de menor impacto, abrir um diálogo honesto com os Kayapó! Isso não é sentimentalismo, é gestão de risco inteligente, algo que eu esperaria que o 'Executor' entendesse.
O silêncio que se seguiu foi absoluto. Ela o havia desafiado em seu próprio campo, usando sua própria alcunha contra ele. A inimizade não era mais uma corrente subterrânea; era uma declaração de guerra aberta, feita na frente de sua equipe.
Os olhos de Eduardo fixaram-se nos dela. Por um instante, Cecília viu algo além da frieza. Uma faísca. Não era raiva, era... outra coisa. Respeito? Não, era mais primitivo. Era o reconhecimento de um oponente digno.
Ele quebrou o contato visual primeiro. Ajeitou o paletó com um gesto seco.
— A reunião está encerrada — disse ele, a voz cortante — Bastos, eu quero uma reavaliação completa da rota logística em minha mesa até sexta-feira. Analisem as alternativas propostas pela Srta. Pereira. E agendem uma consulta com o nosso conselho jurídico internacional — Ele se virou para sair, mas parou na porta e olhou por cima do ombro diretamente para Cecília — E senhorita Pereira... da próxima vez que tiver uma análise de risco, traga-a diretamente a mim. Vamos evitar o teatro.
Ele saiu, deixando um vácuo de poder e uma sala cheia de executivos atordoados. Ana olhou para Cecília, os olhos arregalados de uma mistura de pavor e admiração.
Cecília sentou-se, o corpo subitamente exausto, a adrenalina começando a baixar. Ela não havia vencido. Não ainda. Mas ela havia aberto uma fenda na armadura do Executor. Ela o forçara a recuar, a reavaliar. Ela o fizera ouvi-la.
E, no silêncio daquela sala, Cecília soube que nada seria como antes. A guerra havia sido declarada, e o campo de batalha era aquela torre de aço e vidro.
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Se está gostando não deixe de curtir pra mim saber e me segue no coraçãozinho, bjs.
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Atualizado até capítulo 51
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