A primeira semana de Cecília na Geo-Solutions foi um mergulho em águas profundas e gélidas. Ela passou os dias imersa em relatórios, planilhas e projeções que traduziam a devastação em uma linguagem asséptica e corporativa. Florestas eram "ativos madeireiros", rios eram "recursos hídricos com potencial hidrelétrico", e comunidades inteiras eram "fatores humanos a serem gerenciados". Era a lógica fria da máquina, e Cecília sentia um calafrio a cada página que virava. Sua mesa, antes um retângulo branco e estéril, agora estava coberta de mapas, anotações e cópias de laudos que ela mesma desenterrara dos arquivos digitais da empresa.
Seu foco imediato era o "Projeto Silex", uma nova fase de expansão da extração de bauxita em uma área remota de Carajás. Nos documentos oficiais, era um triunfo da engenharia e da logística, prometendo milhares de empregos e um aumento de 15% na produção. Mas nos relatórios que Cecília encontrou, enterrados em anexos e notas de rodapé, a história era outra. A expansão tangenciava perigosamente uma terra indígena demarcada e ameaçava a nascente de um rio vital para dezenas de comunidades ribeirinhas. Era uma bomba-relógio socioambiental, e o cronômetro estava prestes a zerar.
Na manhã de sexta-feira, Ana, sua gerente, aproximou-se de sua mesa com um olhar que era uma mistura de encorajamento e apreensão.
— Cecília, o Dr. Bastos convocou uma reunião de alinhamento para o Silex às dez. Ele quer que você apresente suas considerações iniciais do relatório de impacto — Ana baixou a voz — O Eduardo vai estar presente. Ele é o Diretor de Operações. Apenas... seja objetiva. Fatos e dados. Ele não lida bem com o resto.
O nome "Eduardo" já era uma lenda nos corredores do 34º andar. O Executor. O homem de confiança do conselho. Dizia-se que ele tinha a capacidade de olhar para uma floresta e ver apenas os bilhões de dólares em celulose e minério. Dizia-se que ele havia reestruturado a operação africana da empresa com uma eficiência tão brutal que deixara um rastro de demissões e protestos abafados. Ele era o motivo pelo qual muitos ali, mesmo no departamento de sustentabilidade, tratavam seus próprios relatórios como mera formalidade. Cecília sentiu um nó se formar em seu estômago. Era a hora do teste.
A sala de reuniões do 40º andar era o cérebro da torre. Uma mesa de mogno negro, longa e polida como a superfície de um lago congelado, dominava o ambiente. As cadeiras de couro eram tronos modernos. Uma parede inteira era de vidro, oferecendo uma vista soberana da cidade, como se o mundo lá fora fosse apenas um tabuleiro de jogo. A tecnologia era de ponta, com telas embutidas e um sistema de teleconferência que conectava aquela sala a qualquer canto do globo.
Quando Cecília entrou, acompanhada por Ana, a maioria dos assentos já estava ocupada por homens mais velhos, de cabelos grisalhos e ternos escuros. Eram os chefes de engenharia, logística, finanças. O ar era pesado com o cheiro de café forte e o peso de decisões de bilhões de dólares. Dr. Bastos, o chefe de engenharia, um homem robusto de rosto avermelhado, presidia a cabeceira, mas um lugar ao seu lado permanecia vazio. A cadeira do poder.
A reunião começou pontualmente. Dr. Bastos projetou gráficos e cronogramas, falando sobre toneladas de minério, eficiência de transporte e margens de lucro. A linguagem era puramente extrativista. A floresta, as pessoas, o rio – nada disso existia em seus cálculos. E então, ele se virou para Cecília.
— Srta. Pereira, a nova analista de nosso time socioambiental. Gostaríamos de ouvir suas considerações preliminares.
Todos os olhos se viraram para ela. Cecília sentiu o peso de ser a única mulher jovem e negra naquela sala. Ela respirou fundo, segurando mentalmente sua semente de castanha, e se levantou. Sua voz saiu firme, clara.
— Obrigada, Dr. Bastos. Senhores. Após análise dos relatórios de impacto e cruzamento de dados com os mapas mais recentes da FUNAI, identifiquei três pontos de risco crítico no Projeto Silex — Ela projetou seus próprios mapas na tela, sobrepondo a área de expansão com as terras indígenas e a bacia hidrográfica — Primeiro, a área designada para o depósito de rejeitos invade em quase dois quilômetros a zona de amortecimento da Terra Indígena Kayapó. Segundo, a rota logística proposta para os caminhões irá inevitavelmente causar o assoreamento da nascente do Rio Claro, impactando diretamente mais de trinta comunidades que dependem dele para subsistência. Terceiro...
Ela foi interrompida pela porta da sala que se abriu silenciosamente. Um homem entrou. A atmosfera mudou instantaneamente. O falatório cessou, as posturas se endireitaram. Ele não era alto ou corpulento, mas carregava uma aura de autoridade inquestionável. Vestia um terno cinza-chumbo perfeitamente cortado, sem um único amasso. Seu cabelo escuro era curto, seu rosto tinha traços angulares e definidos, e seus olhos... seus olhos eram de um castanho tão escuro que pareciam quase negros, frios e analíticos. Ele se moveu com uma economia de gestos, sentando-se na cadeira vazia ao lado de Bastos sem dizer uma palavra, apenas fazendo um leve aceno com a cabeça para que a reunião prosseguisse.
Era ele. O Executor.
Cecília sentiu o olhar dele sobre si, não um olhar de interesse, mas de avaliação, como um geólogo analisaria uma rocha. Ela engoliu em seco e continuou, sua voz agora carregada de uma urgência ainda maior.
— ...e terceiro, e mais grave, o desmatamento necessário para o acesso inicial ao platô de bauxita irá destruir uma área considerada sagrada pelos Kayapó, o que não consta em nenhum dos nossos relatórios. Isso não é apenas uma violação de protocolos internacionais dos quais o Brasil é signatário, mas uma garantia de conflito direto, litígios que podem paralisar o projeto por anos e causar um dano de imagem incalculável à Geo-Solutions.
Quando terminou, um silêncio tenso preencheu a sala. Dr. Bastos pigarreou, parecendo desconfortável. Os outros executivos se entreolharam. Então, Eduardo falou. Sua voz era calma, barítono, sem qualquer inflexão de emoção.
— Agradeço a paixão da Srta. Pereira em sua apresentação — A palavra "paixão" soou como um insulto velado. Ele não olhou para ela, mas folheou um resumo em seu tablet — No entanto, estamos operando com um cronograma e um orçamento definidos. A zona de amortecimento que a senhorita mencionou está, como o nome diz, fora da terra demarcada, portanto, legalmente acessível. As comunidades ribeirinhas serão realocadas para um novo assentamento com infraestrutura superior e devidamente compensadas financeiramente, conforme a legislação.
Cecília não podia acreditar na frieza daquelas palavras.
— Compensadas? — ela interrompeu, incapaz de se conter — Dr. Eduardo, com todo respeito, não estamos falando de um cálculo financeiro. Estamos falando de um etnocídio cultural e de um ecocídio. Não se pode 'realocar' a relação de um povo com um rio. Não se pode 'compensar' a destruição de um lugar sagrado.
Pela primeira vez, ele ergueu os olhos do tablet e a fitou diretamente. O impacto foi como um choque de água gelada. Não havia raiva em seu olhar, nem mesmo irritação. Havia apenas um tédio calculista, uma impaciência fria com a interrupção.
— Senhorita Pereira — disse ele, o tom ainda perfeitamente nivelado, mas agora com um fio de aço — Nós somos uma corporação de recursos naturais, não uma organização não governamental. Nossa primeira e principal obrigação é com a geração de valor para os nossos acionistas e com o cumprimento dos contratos que assinamos. O seu trabalho, e o do seu departamento, é mitigar os riscos operacionais para que possamos cumprir essa obrigação.
Ele fez uma pausa, deixando o peso de suas palavras assentar. Então, desferiu o golpe final.
— O que a senhorita apresentou não são riscos críticos. São empecilhos sentimentais. Nós vamos precificá-los, gerenciá-los e seguir em frente — Ele se virou para o resto da mesa, dispensando Cecília com o gesto — Se não há mais nada de relevante para discutir, vamos passar para a otimização da logística de escoamento.
A sala inteira se moveu com ele. A discussão mudou instantaneamente para ferrovias e portos. Cecília permaneceu de pé, invisível, o sangue fervendo em suas veias. "Empecilhos sentimentais". Ele havia reduzido a vida de milhares de pessoas, a santidade de uma cultura, a saúde de um rio, a um mero estorvo emocional. Ele não havia refutado seus dados; ele simplesmente os invalidara, declarando-os irrelevantes.
Ela se sentou, o corpo tremendo de uma fúria impotente. Ana colocou uma mão discreta em seu braço, um gesto silencioso de solidariedade. Cecília olhou para Eduardo, que agora discutia detalhes técnicos com a mesma intensidade focada e desumana.
Naquele momento, ela entendeu. O inimigo não era um sistema abstrato ou uma logo corporativa. O inimigo tinha um rosto. Tinha um nome. E ele estava sentado à cabeceira daquela mesa, executando sentenças de morte com a mesma calma com que assinaria um memorando.
O monstro da torre tinha um nome: Eduardo. E a guerra de Cecília acabara de encontrar seu general adversário.
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Atualizado até capítulo 51
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