Dezenove anos. Dezenove anos haviam se passado desde a sombra daquela seringueira, mas para Cecília Pereira, a ferida ainda pulsava com a cadência de uma memória viva. O som da motosserra, o cheiro de seiva e terra, o silêncio esmagador que se seguiu ao grito de João – tudo estava gravado em sua alma com a precisão de um corte de facão em um tronco. A promessa silenciosa feita por uma menina de sete anos de idade havia se tornado o alicerce da mulher de vinte e seis que agora se olhava no espelho de um pequeno apartamento no vigésimo andar, em algum lugar no coração pulsante e cinzento de São Paulo.
A menina de pés descalços e pele beijada pelo sol da Amazônia dera lugar a uma mulher de beleza estonteante e seriedade contida. Seus cabelos, uma coroa de tranças nagô que desciam pelas costas, eram um ato de orgulho e identidade. A pele, antes marcada por arranhões de galhos e picadas de insetos, agora estava coberta por um tailleur de linho bege, uma armadura cuidadosamente escolhida para a batalha que estava por vir. Graduada com louvor em Relações Internacionais e com um mestrado em Gestão Ambiental pela Sorbonne, em Paris, Cecília havia afiado sua mente como uma arma. Ela trocara as trilhas da mata pelos corredores do poder, o dialeto de sua comunidade por quatro idiomas fluentes. Cada diploma, cada artigo publicado, cada noite em claro sobre livros de direito ambiental e economia, tudo fora um passo calculado em direção a este exato dia. O dia em que ela entraria na boca do lobo.
Do outro lado da janela, São Paulo despertava. Uma selva de concreto, aço e vidro que se estendia até onde a vista alcançava, sufocada por uma névoa de poluição que tingia o nascer do sol de um laranja artificial e doentio. O som que a envolvia não era o coro de pássaros e macacos, mas a sinfonia cacofônica da metrópole: buzinas impacientes, sirenes distantes, o rugido constante de um tráfego que nunca dormia. Era um ecossistema diferente, regido por leis diferentes, onde o mais forte não era o que melhor se adaptava à natureza, mas o que melhor a dominava.
Ela segurou o crachá recém-emitido em suas mãos. "Cecília Pereira - Analista de Relações Socioambientais - Geo-Solutions". O nome da empresa parecia queimar seus dedos. Geo-Solutions. A gigante, a predadora, uma das maiores corporações de recursos naturais do planeta, com tentáculos em mineração, agronegócio e projetos de infraestrutura que redesenhavam mapas e ecossistemas. Era uma das responsáveis diretas pelo tipo de "progresso" que matara seu irmão. E agora, era sua empregadora.
A ironia era tão amarga que quase a fez sorrir. Seus professores e colegas ativistas a haviam chamado de louca, de vendida. Mas eles não entendiam. Gritar do lado de fora era necessário, mas Cecília queria mais. Ela queria estar na sala onde as decisões eram tomadas. Queria entender a linguagem do inimigo, usar suas próprias ferramentas contra ele, ser o vírus no sistema, a semente de uma árvore que cresceria para rachar o concreto por dentro.
O táxi a deixou em frente ao monólito que era a sede da Geo-Solutions na Avenida Faria Lima. O edifício não era apenas um prédio; era uma declaração de poder. Uma torre de vidro fumê e aço escovado que perfurava o céu paulistano, tão alta que parecia sugar a luz ao seu redor. Não havia uma única curva em seu design, apenas ângulos retos, linhas duras e uma frieza geométrica que parecia desprezar a desordem orgânica do mundo natural. Cecília sentiu um calafrio, apesar do calor crescente da manhã. Era ali. O coração da besta.
Ao entrar no lobby, o mundo exterior desapareceu. O barulho da cidade foi substituído por um silêncio pesado e reverente, o tipo de silêncio que se encontra em catedrais ou em cofres de banco. O chão de mármore negro polido refletia o teto altíssimo, criando a ilusão de um abismo sob seus pés. O ar era gelado, filtrado e com um cheiro artificial de limpeza, tão diferente do hálito úmido e terroso da floresta. Pessoas de ternos caros e sapatos de grife deslizavam pelo lobby com a urgência silenciosa de predadores, seus rostos impassíveis, seus olhares focados em telas de smartphones. Ninguém se olhava, ninguém sorria. Eram engrenagens eficientes em uma máquina colossal.
— Cecília Pereira? — uma voz simpática a tirou de seu torpor. Uma jovem do RH, de sorriso ensaiado e tablet na mão, a guiou até as catracas de acesso — Seja bem-vinda à Geo-Solutions. Seu andar é o 34º, departamento de Sustentabilidade e Relações Institucionais.
O elevador era uma cápsula de aço escovado que subia com uma velocidade vertiginosa e silenciosa. A cada andar que passava, Cecília sentia a pressão aumentar em seus ouvidos e em seu peito. Era como mergulhar, não na água, mas para cima, em direção a um ambiente onde o ar seria mais rarefeito, mais difícil de respirar.
O 34º andar era um labirinto de vidro e carpete cinza. Um espaço aberto, onde dezenas de pessoas trabalhavam em baias idênticas, separadas por divisórias baixas. A única luz natural vinha das imensas janelas que iam do chão ao teto, oferecendo uma vista panorâmica e asséptica da cidade lá embaixo. O som dominante era o murmúrio constante dos teclados, o zumbido dos computadores e o toque discreto dos telefones. Era uma colmeia de produtividade, estéril e sem alma.
Uma mulher de meia-idade, com um sorriso genuíno que se destacava naquele ambiente, se aproximou.
— Cecília? Sou Ana Torres, sua gerente. Seja muito bem-vinda. Estávamos ansiosos pela sua chegada. Seu currículo é impressionante.
Ana a conduziu até sua mesa, um retângulo branco e impessoal ao lado da janela.
— Aqui é o seu lugar. A vista ajuda a inspirar — disse ela, com uma piscadela.
Cecília olhou para fora. Inspirar? A vista era um mar de concreto. Prédios e mais prédios, um emaranhado de ruas e viadutos, carros movendo-se como insetos metálicos. Lá embaixo, o Parque do Povo parecia um pequeno e patético remendo de verde, uma tentativa fútil de lembrar que a natureza um dia existira ali. Ela se lembrou da vista de sua infância: um oceano de copas de árvores, de um verde tão intenso e variado que nenhuma paleta de cores poderia replicar. A comparação lhe causou uma dor física no peito. O que para Ana era inspiração, para Cecília era um atestado da doença do mundo.
Ela sentou-se na cadeira ergonômica, sentindo o material sintético contra sua pele. Ligou o computador de última geração, que ganhou vida com o logotipo da Geo-Solutions. Por um momento, o pânico a envolveu. O medo de ser apenas mais uma peça naquela engrenagem. O medo de que sua promessa, sua missão, fosse uma fantasia infantil, ingênua e impotente diante da magnitude daquela máquina de fazer dinheiro. O fantasma de João pareceu sussurrar em seu ouvido: "O que você está fazendo aqui, Cissa? Eles são os monstros."
Seus olhos se encheram de lágrimas. Ela piscou rapidamente, recusando-se a chorar. Não ali. Nunca ali. Ela respirou fundo, tentando encontrar em suas memórias o cheiro da terra molhada, mas tudo o que sentia era o aroma artificial do ar-condicionado. A dúvida era um veneno, e ela sentiu-o começar a se espalhar. Talvez seus amigos estivessem certos. Talvez ela estivesse se vendendo, se iludindo.
Com as mãos trêmulas, ela abriu a bolsa de couro que repousava ao lado da mesa. Ignorou os cadernos, a caneta, o celular. Seus dedos procuraram no fundo, até encontrarem um pequeno objeto liso e frio. Ela o trouxe para a palma da mão, fechando os dedos ao redor dele.
Era uma semente de castanha-do-pará, polida por anos de manuseio. Fora a última que seu pai lhe dera antes de ela partir para a faculdade. Era um pedaço de sua casa, de sua floresta, de sua verdade. Ao segurá-la, o calor de sua mão aqueceu a semente, e por um instante, ela pôde sentir a pulsação da vida latente ali dentro. Podia sentir a força da árvore gigantesca que aquela pequena semente poderia se tornar, uma árvore capaz de resistir a tempestades, de abrigar vida, de se erguer mais alta que qualquer torre de aço.
Ela apertou a semente com força. O medo recuou, substituído pela brasa da raiva e da determinação que a havia levado até ali. Ela não era uma peça. Era uma semente. Plantada no lugar mais improvável, mais hostil. E ela iria crescer. Iria fincar raízes, mesmo que tivesse que quebrar o concreto para isso.
Cecília abriu a mão e olhou para a castanha. Depois, ergueu o olhar para a cidade que se estendia à sua frente. Não mais com medo, mas com o olhar frio e focado de uma guerreira em território inimigo.
A guerra silenciosa de Cecília Pereira havia começado.
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Atualizado até capítulo 51
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