A Transformação de Elara
A casa de Elara não era simplesmente um lugar para morar; era um organismo vivo, pulsante, cujas veias eram feitas de tinta e cujos ossos eram de cartão e couro. Para um visitante desavisado, o interior daquela antiga construção de pedra e madeira escura poderia parecer o epicentro de um caos silencioso. Não havia uma superfície plana que não servisse de repouso para um livro. As paredes, em sua maioria, eram invisíveis, ocultas por estantes que se curvavam sob o peso de séculos de histórias, de lombadas gastas a volumes recém-impressos que ainda exalavam o cheiro químico e promissor da gráfica.
O ar era espesso, quase mastigável, com o perfume inebriante que só os amantes da leitura conhecem: o aroma seco e adocicado da celulose envelhecida, o toque de baunilha da lignina em decomposição, a fragrância sutil do couro e da cola de encadernação. Era o cheiro de papel e crepúsculo, um aroma que para Elara era sinônimo de lar, de segurança e de uma paz profunda e inabalável.
Ela se movia por aquele labirinto de palavras com a graça de uma bailarina e a certeza de uma cartógrafa. Os corredores estreitos, flanqueados por pilhas de livros que se erguiam como colinas e desfiladeiros, não eram obstáculos, mas sim a geografia de seu reino. Ela sabia exatamente qual pilha evitar para não causar uma avalanche de poesia do século dezenove e qual volume puxar da base de uma torre de ficção científica sem perturbar seu delicado equilíbrio. Era a guardiã, junto a seu pai, os curadores e os únicos habitantes deste santuário de conhecimento.
Sua organização não seguia nenhum sistema bibliotecário convencional. Não havia ordem alfabética, nem classificação por gênero ou autor no sentido tradicional. O sistema de Elara era puramente emocional, uma cartografia da alma. Os livros eram agrupados pela forma como a faziam sentir, pelas memórias que evocavam ou pelo tipo de refúgio que ofereciam.
Havia a "Prateleira da Melancolia Aconchegante", perto da lareira, onde repousavam romances góticos e coletâneas de poemas sobre perda e chuva. Eram livros para serem lidos sob um cobertor pesado, com o som do fogo crepitando e uma xícara de chá de camomila fumegante nas mãos. Ao lado da janela que dava para o jardim, encontrava-se o "Canto das Aventuras Impossíveis". Ali, carruagens voadoras de capas coloridas dividiam espaço com mapas de reinos fantásticos e diários de exploradores de selvas há muito desaparecidas. Eram histórias para os dias em que o mundo parecia pequeno demais, para quando sua alma ansiava por horizontes que seus olhos jamais veriam. No chão, formando uma muralha baixa ao redor de sua poltrona favorita, estava a "Pilha das Madrugadas Chuvosas", uma coleção eclética de contos filosóficos, mistérios complexos e ensaios sobre a natureza do tempo, livros que exigiam silêncio e introspecção.
Elara tinha seus favoritos, claro. Eram mais do que simples livros; eram companheiros, confidentes cujas páginas de papel haviam absorvido suas lágrimas, seus suspiros e o toque repetido de seus dedos.
O primeiro entre iguais era O Atlas dos Mundos Perdidos. Era um tomo enorme e pesado, encadernado em couro verde-escuro, tão gasto que em alguns pontos se tornara macio como camurça. As letras douradas do título estavam quase apagadas, visíveis apenas quando a luz do sol poente as atingia de lado. Não continha mapas de lugares reais, mas sim cartografias detalhadas de reinos da ficção, de ilhas que só existiram em mitos e de cidades descritas em poemas épicos. Elara passava horas debruçada sobre suas páginas amareladas, traçando com o dedo o curso de rios imaginários, memorizando a topografia de montanhas que nunca existiram e sonhando em caminhar pelas ruas de cidades construídas com palavras. Era um livro que lhe lembrava que as fronteiras mais reais são as da imaginação.
Outro tesouro era uma cópia pequena e modesta de Botânica dos Sonhos. A capa de tecido azul estava desbotada e a lombada, reforçada com uma fita adesiva amarelada pelo tempo. O valor do livro não residia em seu conteúdo – um guia de campo sobre plantas fictícias com propriedades mágicas –, mas nas anotações que preenchiam suas margens. A caligrafia era elegante, fluida, e pertencia à sua mãe. Ao lado da descrição da "Lágrima-de-Lua", uma flor verde que só desabrochava sob a luz de um eclipse, sua mãe havia escrito: [ — Lembra a cor dos seus olhos quando você ri, minha pequena luz]. Ao pé da página sobre a "Raiz-Sussurrante", que supostamente guardava os ecos das conversas que ouvia, uma nota dizia: [ — Precisamos plantar uma destas perto da janela da cozinha, para que ela se lembre sempre das nossas canções]. O livro era um diálogo interrompido, um relicário de afeto que Elara podia segurar nas mãos. Cada anotação era uma pegada deixada por uma alma que ela mal tivera tempo de conhecer.
E havia também Contos do Povo da Meia-Noite, uma coletânea de folclore local, cheia de histórias sobre espíritos do bosque, criaturas feitas de sombra e luz, e a magia antiga que permeava a terra. As histórias eram sombrias, por vezes assustadoras, mas sempre continham uma centelha de assombro. Era o livro que seu pai lia para ela nas noites de tempestade, sua voz grave e calmante sendo um farol contra o rugido do trovão. A página sobre os vaga-lumes estava especialmente gasta, as dobras no papel testemunhando as inúmeras vezes em que fora lida.
Era precisamente sobre essa página que seus pensamentos se demoravam enquanto o dia começava a se render à noite. A luz que entrava pela janela poente da biblioteca – sua sala de estar, seu santuário – mudava de um dourado vibrante para um laranja suave, depois para um violeta profundo que se agarrava às sombras. Era a hora mágica, o crepúsculo. O cheiro de papel parecia se intensificar, misturando-se com o aroma da terra úmida e das flores noturnas que despertavam no jardim.
Para Elara, o crepúsculo era mais do que o fim do dia. Era um portal. E era quando eles chegavam.
Primeiro, era apenas um. Um piscar hesitante perto dos arbustos de jasmim, uma pequena lanterna de ouro-esverdeado pairando no ar. Depois outro, e mais outro. Em poucos minutos, o jardim para além da janela se transformava em um céu noturno em miniatura, pontilhado por dezenas de luzes pulsantes que dançavam uma coreografia silenciosa e hipnótica.
Os vaga-lumes.
A conexão de Elara com eles era antiga, tecida nas fibras mais tenras de sua infância. Não era apenas uma admiração pela beleza efêmera; era algo mais profundo, quase uma comunhão. Para ela, eles não eram meros insetos. Eram guardiões de memórias, emissários de um tempo perdido. Eram a presença tangível de sua mãe.
Ela se levantou da poltrona de veludo gasto, deixando o Atlas dos Mundos Perdidos aberto no colo, e se aproximou da janela. O vidro estava frio sob a palma de sua mão. Ela não olhava para os vaga-lumes; ela os sentia. Cada pulso de luz parecia ressoar em algum lugar dentro de seu peito, um código luminoso que só ela entendia.
A memória era sempre a mesma, mas vinha em fragmentos, como um sonho revisitado. Ela era pequena, talvez com quatro ou cinco anos, pequena o suficiente para caber confortavelmente no colo de sua mãe, sentada no balanço da varanda em uma noite quente de verão. A cabeça de Elara estava aninhada sob o queixo de sua mãe, e ela podia sentir a vibração suave de sua voz em seu crânio enquanto ela falava. O ar cheirava a verbena, o perfume de sua mãe, e a papel velho, do livro que ela segurava.
— Eles não são apenas insetos, minha pequena luz — , a voz de sua mãe era como mel e música. — Cada um deles carrega um pequeno pedaço de uma estrela que caiu. E dentro dessa luz, eles guardam um desejo não dito, uma memória feliz ou um segredo sussurrado. Eles são os guardiões das pequenas magias esquecidas do mundo.
A pequena Elara olhava, maravilhada, para o balé cintilante no jardim.
— Eles guardam as nossas memórias, mamãe?
Sua mãe a abraçou com mais força.
— Sim, querida. Eles guardam as mais preciosas. Olhe, — ela apontou com o queixo. — Aquele ali, piscando perto da roseira? Ele guarda a memória do seu primeiro riso. E aquele, dançando mais alto que os outros? Ele guarda o calor do nosso primeiro abraço.
Elara não se lembrava do rosto de sua mãe com clareza. O tempo, cruel ladrão, havia suavizado os contornos, desbotado a cor de seus olhos. Mas ela se lembrava da sensação. Lembrava-se do calor, do cheiro de verbena e papel, do som de sua voz e da convicção inabalável com que ela falava da magia dos vaga-lumes.
Após a sua partida, abrupta e inexplicável como uma vela apagada por um sopro de vento, os vaga-lumes se tornaram o elo de Elara com ela. Eles eram a promessa de que as memórias não morriam, apenas mudavam de forma, transformando-se em luz pulsante na escuridão.
Ela abriu a janela de guilhotina, e o ar fresco da noite entrou, trazendo consigo o perfume de dama-da-noite e terra molhada. Um dos vaga-lumes, mais ousado que os outros, desviou-se de sua dança e voou para dentro da sala. Ele pairou por um momento, seu abdômen piscando em um ritmo lento e constante, como um coração luminoso.
Elara estendeu a mão, a palma para cima, em um convite silencioso. O vaga-lume circulou sua mão uma vez, duas vezes, e então pousou suavemente em seu dedo indicador. Sua luz era fria ao toque, um pequeno farol em sua pele. Ela o observou, fascinada, como sempre. A luz se acendeu, iluminando seu rosto com um brilho esverdeado, depois se apagou, deixando-a na penumbra. E de novo. Acendeu. Apagou. Era uma conversa sem palavras.
"Você se lembra?" ela perguntou em pensamento."Você se lembra do cheiro de verbena? Da voz dela cantando canções de ninar?"
A luz piscou em resposta. Uma, duas, três vezes. Para Elara, era uma afirmação. Uma confirmação.
Ela caminhou lentamente de volta para a poltrona, o vaga-lume ainda em seu dedo. Pegou a cópia desgastada de Botânica dos Sonhos e a abriu em uma página marcada com uma fita de seda desfiada. A página descrevia a "Flor-Lanterna", uma planta cujas pétalas brilhavam no escuro. Na margem, a caligrafia de sua mãe.
[— Como os nossos vaga-lumes, Elara. A natureza sempre encontra uma forma de criar sua própria luz na escuridão. Nunca se esqueça de procurar por ela. E se não a encontrar, seja você mesma a luz.]
O vaga-lume em seu dedo pareceu sentir a importância do momento. Ele levantou voo, pairou sobre a página aberta e, para o espanto silencioso de Elara, pousou exatamente sobre a anotação de sua mãe. Sua luz piscou uma vez, longa e brilhante, iluminando as palavras como se as estivesse lendo. Como se as estivesse reconhecendo.
Uma lágrima solitária escapou do olho de Elara e deslizou por seu rosto, quente contra sua pele fria. Não era uma lágrima de tristeza, mas de uma emoção complexa e avassaladora – uma mistura de saudade, amor e uma profunda, profunda gratidão. A casa estava silenciosa, exceto pelo farfalhar ocasional de uma página virando com a brisa suave. As sombras dançavam, alongadas pela luz solitária do vaga-lume e pelas dezenas de outros que agora se aglomeravam do lado de fora da janela, como se esperassem, como se vigiassem.
Ali, naquele santuário de papel e memórias, banhada pelo brilho intermitente de um guardião alado, Elara se sentia completa. O cheiro de papel a ancorava no presente, no conhecimento e nas histórias que a moldaram. E o crepúsculo, com seus mensageiros de luz, a conectava ao passado, à magia e ao amor que nunca haviam realmente partido. Eles simplesmente haviam aprendido a brilhar no escuro. O capítulo de seu dia estava terminando, mas ela sabia, com uma certeza que aquecia sua alma, que a história estava longe de acabar.
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Atualizado até capítulo 49
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