A casa de Elara não era simplesmente um lugar para morar; era um organismo vivo, pulsante, cujas veias eram feitas de tinta e cujos ossos eram de cartão e couro. Para um visitante desavisado, o interior daquela antiga construção de pedra e madeira escura poderia parecer o epicentro de um caos silencioso. Não havia uma superfície plana que não servisse de repouso para um livro. As paredes, em sua maioria, eram invisíveis, ocultas por estantes que se curvavam sob o peso de séculos de histórias, de lombadas gastas a volumes recém-impressos que ainda exalavam o cheiro químico e promissor da gráfica.
O ar era espesso, quase mastigável, com o perfume inebriante que só os amantes da leitura conhecem: o aroma seco e adocicado da celulose envelhecida, o toque de baunilha da lignina em decomposição, a fragrância sutil do couro e da cola de encadernação. Era o cheiro de papel e crepúsculo, um aroma que para Elara era sinônimo de lar, de segurança e de uma paz profunda e inabalável.
Ela se movia por aquele labirinto de palavras com a graça de uma bailarina e a certeza de uma cartógrafa. Os corredores estreitos, flanqueados por pilhas de livros que se erguiam como colinas e desfiladeiros, não eram obstáculos, mas sim a geografia de seu reino. Ela sabia exatamente qual pilha evitar para não causar uma avalanche de poesia do século dezenove e qual volume puxar da base de uma torre de ficção científica sem perturbar seu delicado equilíbrio. Era a guardiã, junto a seu pai, os curadores e os únicos habitantes deste santuário de conhecimento.
Sua organização não seguia nenhum sistema bibliotecário convencional. Não havia ordem alfabética, nem classificação por gênero ou autor no sentido tradicional. O sistema de Elara era puramente emocional, uma cartografia da alma. Os livros eram agrupados pela forma como a faziam sentir, pelas memórias que evocavam ou pelo tipo de refúgio que ofereciam.
Havia a "Prateleira da Melancolia Aconchegante", perto da lareira, onde repousavam romances góticos e coletâneas de poemas sobre perda e chuva. Eram livros para serem lidos sob um cobertor pesado, com o som do fogo crepitando e uma xícara de chá de camomila fumegante nas mãos. Ao lado da janela que dava para o jardim, encontrava-se o "Canto das Aventuras Impossíveis". Ali, carruagens voadoras de capas coloridas dividiam espaço com mapas de reinos fantásticos e diários de exploradores de selvas há muito desaparecidas. Eram histórias para os dias em que o mundo parecia pequeno demais, para quando sua alma ansiava por horizontes que seus olhos jamais veriam. No chão, formando uma muralha baixa ao redor de sua poltrona favorita, estava a "Pilha das Madrugadas Chuvosas", uma coleção eclética de contos filosóficos, mistérios complexos e ensaios sobre a natureza do tempo, livros que exigiam silêncio e introspecção.
Elara tinha seus favoritos, claro. Eram mais do que simples livros; eram companheiros, confidentes cujas páginas de papel haviam absorvido suas lágrimas, seus suspiros e o toque repetido de seus dedos.
O primeiro entre iguais era O Atlas dos Mundos Perdidos. Era um tomo enorme e pesado, encadernado em couro verde-escuro, tão gasto que em alguns pontos se tornara macio como camurça. As letras douradas do título estavam quase apagadas, visíveis apenas quando a luz do sol poente as atingia de lado. Não continha mapas de lugares reais, mas sim cartografias detalhadas de reinos da ficção, de ilhas que só existiram em mitos e de cidades descritas em poemas épicos. Elara passava horas debruçada sobre suas páginas amareladas, traçando com o dedo o curso de rios imaginários, memorizando a topografia de montanhas que nunca existiram e sonhando em caminhar pelas ruas de cidades construídas com palavras. Era um livro que lhe lembrava que as fronteiras mais reais são as da imaginação.
Outro tesouro era uma cópia pequena e modesta de Botânica dos Sonhos. A capa de tecido azul estava desbotada e a lombada, reforçada com uma fita adesiva amarelada pelo tempo. O valor do livro não residia em seu conteúdo – um guia de campo sobre plantas fictícias com propriedades mágicas –, mas nas anotações que preenchiam suas margens. A caligrafia era elegante, fluida, e pertencia à sua mãe. Ao lado da descrição da "Lágrima-de-Lua", uma flor verde que só desabrochava sob a luz de um eclipse, sua mãe havia escrito: [ — Lembra a cor dos seus olhos quando você ri, minha pequena luz]. Ao pé da página sobre a "Raiz-Sussurrante", que supostamente guardava os ecos das conversas que ouvia, uma nota dizia: [ — Precisamos plantar uma destas perto da janela da cozinha, para que ela se lembre sempre das nossas canções]. O livro era um diálogo interrompido, um relicário de afeto que Elara podia segurar nas mãos. Cada anotação era uma pegada deixada por uma alma que ela mal tivera tempo de conhecer.
E havia também Contos do Povo da Meia-Noite, uma coletânea de folclore local, cheia de histórias sobre espíritos do bosque, criaturas feitas de sombra e luz, e a magia antiga que permeava a terra. As histórias eram sombrias, por vezes assustadoras, mas sempre continham uma centelha de assombro. Era o livro que seu pai lia para ela nas noites de tempestade, sua voz grave e calmante sendo um farol contra o rugido do trovão. A página sobre os vaga-lumes estava especialmente gasta, as dobras no papel testemunhando as inúmeras vezes em que fora lida.
Era precisamente sobre essa página que seus pensamentos se demoravam enquanto o dia começava a se render à noite. A luz que entrava pela janela poente da biblioteca – sua sala de estar, seu santuário – mudava de um dourado vibrante para um laranja suave, depois para um violeta profundo que se agarrava às sombras. Era a hora mágica, o crepúsculo. O cheiro de papel parecia se intensificar, misturando-se com o aroma da terra úmida e das flores noturnas que despertavam no jardim.
Para Elara, o crepúsculo era mais do que o fim do dia. Era um portal. E era quando eles chegavam.
Primeiro, era apenas um. Um piscar hesitante perto dos arbustos de jasmim, uma pequena lanterna de ouro-esverdeado pairando no ar. Depois outro, e mais outro. Em poucos minutos, o jardim para além da janela se transformava em um céu noturno em miniatura, pontilhado por dezenas de luzes pulsantes que dançavam uma coreografia silenciosa e hipnótica.
Os vaga-lumes.
A conexão de Elara com eles era antiga, tecida nas fibras mais tenras de sua infância. Não era apenas uma admiração pela beleza efêmera; era algo mais profundo, quase uma comunhão. Para ela, eles não eram meros insetos. Eram guardiões de memórias, emissários de um tempo perdido. Eram a presença tangível de sua mãe.
Ela se levantou da poltrona de veludo gasto, deixando o Atlas dos Mundos Perdidos aberto no colo, e se aproximou da janela. O vidro estava frio sob a palma de sua mão. Ela não olhava para os vaga-lumes; ela os sentia. Cada pulso de luz parecia ressoar em algum lugar dentro de seu peito, um código luminoso que só ela entendia.
A memória era sempre a mesma, mas vinha em fragmentos, como um sonho revisitado. Ela era pequena, talvez com quatro ou cinco anos, pequena o suficiente para caber confortavelmente no colo de sua mãe, sentada no balanço da varanda em uma noite quente de verão. A cabeça de Elara estava aninhada sob o queixo de sua mãe, e ela podia sentir a vibração suave de sua voz em seu crânio enquanto ela falava. O ar cheirava a verbena, o perfume de sua mãe, e a papel velho, do livro que ela segurava.
— Eles não são apenas insetos, minha pequena luz — , a voz de sua mãe era como mel e música. — Cada um deles carrega um pequeno pedaço de uma estrela que caiu. E dentro dessa luz, eles guardam um desejo não dito, uma memória feliz ou um segredo sussurrado. Eles são os guardiões das pequenas magias esquecidas do mundo.
A pequena Elara olhava, maravilhada, para o balé cintilante no jardim.
— Eles guardam as nossas memórias, mamãe?
Sua mãe a abraçou com mais força.
— Sim, querida. Eles guardam as mais preciosas. Olhe, — ela apontou com o queixo. — Aquele ali, piscando perto da roseira? Ele guarda a memória do seu primeiro riso. E aquele, dançando mais alto que os outros? Ele guarda o calor do nosso primeiro abraço.
Elara não se lembrava do rosto de sua mãe com clareza. O tempo, cruel ladrão, havia suavizado os contornos, desbotado a cor de seus olhos. Mas ela se lembrava da sensação. Lembrava-se do calor, do cheiro de verbena e papel, do som de sua voz e da convicção inabalável com que ela falava da magia dos vaga-lumes.
Após a sua partida, abrupta e inexplicável como uma vela apagada por um sopro de vento, os vaga-lumes se tornaram o elo de Elara com ela. Eles eram a promessa de que as memórias não morriam, apenas mudavam de forma, transformando-se em luz pulsante na escuridão.
Ela abriu a janela de guilhotina, e o ar fresco da noite entrou, trazendo consigo o perfume de dama-da-noite e terra molhada. Um dos vaga-lumes, mais ousado que os outros, desviou-se de sua dança e voou para dentro da sala. Ele pairou por um momento, seu abdômen piscando em um ritmo lento e constante, como um coração luminoso.
Elara estendeu a mão, a palma para cima, em um convite silencioso. O vaga-lume circulou sua mão uma vez, duas vezes, e então pousou suavemente em seu dedo indicador. Sua luz era fria ao toque, um pequeno farol em sua pele. Ela o observou, fascinada, como sempre. A luz se acendeu, iluminando seu rosto com um brilho esverdeado, depois se apagou, deixando-a na penumbra. E de novo. Acendeu. Apagou. Era uma conversa sem palavras.
"Você se lembra?" ela perguntou em pensamento."Você se lembra do cheiro de verbena? Da voz dela cantando canções de ninar?"
A luz piscou em resposta. Uma, duas, três vezes. Para Elara, era uma afirmação. Uma confirmação.
Ela caminhou lentamente de volta para a poltrona, o vaga-lume ainda em seu dedo. Pegou a cópia desgastada de Botânica dos Sonhos e a abriu em uma página marcada com uma fita de seda desfiada. A página descrevia a "Flor-Lanterna", uma planta cujas pétalas brilhavam no escuro. Na margem, a caligrafia de sua mãe.
[— Como os nossos vaga-lumes, Elara. A natureza sempre encontra uma forma de criar sua própria luz na escuridão. Nunca se esqueça de procurar por ela. E se não a encontrar, seja você mesma a luz.]
O vaga-lume em seu dedo pareceu sentir a importância do momento. Ele levantou voo, pairou sobre a página aberta e, para o espanto silencioso de Elara, pousou exatamente sobre a anotação de sua mãe. Sua luz piscou uma vez, longa e brilhante, iluminando as palavras como se as estivesse lendo. Como se as estivesse reconhecendo.
Uma lágrima solitária escapou do olho de Elara e deslizou por seu rosto, quente contra sua pele fria. Não era uma lágrima de tristeza, mas de uma emoção complexa e avassaladora – uma mistura de saudade, amor e uma profunda, profunda gratidão. A casa estava silenciosa, exceto pelo farfalhar ocasional de uma página virando com a brisa suave. As sombras dançavam, alongadas pela luz solitária do vaga-lume e pelas dezenas de outros que agora se aglomeravam do lado de fora da janela, como se esperassem, como se vigiassem.
Ali, naquele santuário de papel e memórias, banhada pelo brilho intermitente de um guardião alado, Elara se sentia completa. O cheiro de papel a ancorava no presente, no conhecimento e nas histórias que a moldaram. E o crepúsculo, com seus mensageiros de luz, a conectava ao passado, à magia e ao amor que nunca haviam realmente partido. Eles simplesmente haviam aprendido a brilhar no escuro. O capítulo de seu dia estava terminando, mas ela sabia, com uma certeza que aquecia sua alma, que a história estava longe de acabar.
...***...
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Se o mundo de Elara era um universo em expansão de papel e tinta, o de seu pai, Silas, era um cosmos em miniatura de latão, aço e rubis. Sua oficina, um pequeno anexo nos fundos da casa, cheirava não a celulose, mas a óleo de máquina, a metal polido e ao ozônio sutil de ferramentas em funcionamento. Era um lugar de ordem precisa, um contraponto direto ao caos orgânico da biblioteca. Aqui, pequenas peças eram organizadas em bandejas de madeira, ferramentas penduradas em contornos desenhados na parede e o som dominante não era o virar de uma página, mas o tique-taque rítmico e constante de múltiplos corações mecânicos.
Silas era um relojoeiro, e suas mãos contavam a história de sua profissão. Eram mãos grandes e firmes, com calos de artesão, mas capazes de uma delicadeza quase inacreditável. Elara costumava passar horas sentada em um banquinho no canto, observando-o trabalhar. Com uma lupa presa ao olho, ele se curvava sobre o interior de um relógio de bolso como um deus debruçado sobre a criação de um novo sistema solar. Seus dedos, que poderiam parecer desajeitados, moviam-se com a precisão de um cirurgião, pegando molas finas como fios de cabelo e engrenagens do tamanho de uma semente de papoula com pinças finíssimas.
Naquela manhã, o ar estava parado e a luz que entrava pela janela da oficina era leitosa. Elara observava enquanto seu pai remontava um antigo relógio de pêndulo, cujas entranhas de bronze estavam espalhadas sobre a bancada de trabalho.
— Cada relógio é uma história, Elara — , disse ele, sem desviar o olhar da peça em suas mãos. Sua voz era grave e calma, como o tique-taque lento do relógio que ele consertava. — As pessoas pensam que eles apenas marcam o tempo, mas isso é o mínimo que fazem. Eles contam a história da paciência, da precisão.
Ele pegou uma pequena engrenagem dentada.
— Veja esta peça. Sozinha, ela não é nada. Mas quando se encaixa com as outras... — Ele a posicionou cuidadosamente em seu eixo, e com um leve toque, ela se interligou a outra. — Elas começam a conversar. Uma move a outra. Uma decisão afeta a próxima. Assim como os personagens em seus livros. Cada escolha que fazem, cada palavra que dizem, move a engrenagem da trama para a frente.
Ele apontou com a pinça para a mola principal, um caracol de metal firmemente enrolado.
— Esta é a motivação. O desejo central da história. O amor, a vingança, a busca por um tesouro. É a energia que impulsiona tudo. Sem ela, as engrenagens não giram, os ponteiros não se movem. A história nunca começa.
Para Elara, aquela era a mais bela das lições. Seu pai lhe ensinava que o mundo dos livros e o mundo das máquinas não eram tão diferentes. Ambos eram sistemas complexos, construídos a partir de pequenas partes que, juntas, criavam algo muito maior: uma narrativa. Um relógio contava a história de um dia; um livro podia contar a história de uma vida inteira. Ambos exigiam que alguém lhes desse corda – o leitor, com sua imaginação; o dono do relógio, com uma chave.
O momento de paz foi quebrado por um som que ecoou pela vila: o toque grave e ressonante do sino da torre central. Não era o chamado para a oração, nem o alarme de incêndio. Era um sino específico, que soava apenas algumas vezes por ano: o Sino do Descarte.
Silas endireitou as costas, e um suspiro escapou de seus lábios. Ele olhou para Elara, e em seus olhos havia uma urgência que ela conhecia bem.
— Está na hora — ele disse simplesmente.
O Descarte era um evento agridoce. Por ordem do Palácio, todas as bibliotecas, arquivos e gabinetes de estudo eram obrigados a se livrar de livros considerados excedentes , redundantes ou desatualizados. Eram volumes que o poder central julgava desnecessários. Antes de serem levados para a pira e queimados, um ato que enviava um arrepio pela espinha de Elara, eles eram empilhados na praça principal por um dia inteiro. Durante esse período, a população podia pegar o que quisesse. Era um ato de falsa generosidade, um espetáculo para mascarar a destruição do conhecimento.
Para Silas, era uma missão de resgate. E este ano, pela primeira vez, Elara tinha idade suficiente para ir com ele.
— Pegue o casaco mais resistente que tiver — disse ele, já limpando as mãos em um pano. — E calce as botas. Vai haver muita gente.
O coração de Elara batia forte com uma mistura de excitação e pavor. Ela sempre soubera de onde vinha o fluxo constante de novos (velhos) livros que alimentava sua casa, mas nunca havia testemunhado a origem. Era como finalmente ser convidada a participar do segredo mais importante da família.
Eles prepararam a carroça, um veículo simples de madeira com duas rodas grandes, que Silas usava para transportar relógios de pêndulo e outros consertos grandes. O som das rodas no caminho de paralelepípedos era a trilha sonora de sua jornada. Enquanto se aproximavam da praça, a multidão se adensava. Havia uma energia frenética no ar, uma mistura de ganância e desespero. As pessoas não viam apenas livros; viam lenha para o inverno, papel para embrulhar peixe, ou, para alguns poucos como eles, almas a serem salvas.
E então ela viu. As pilhas. Eram montanhas. Maiores e mais caóticas do que as de sua própria casa. Livros de todos os tamanhos e cores, jogados uns sobre os outros sem cerimônia. Lombadas quebradas, páginas arrancadas, capas manchadas. No ar, pairava o cheiro de papel velho misturado com o odor tênue e ameaçador de querosene, vindo dos barris que os guardas do Palácio haviam posicionado nos cantos da praça, prontos para a fogueira do dia seguinte.
— Não temos muito tempo — disse Silas, com os olhos varrendo a paisagem de papel condenado. — Lembre-se do plano. Você procura por poesia, contos e história natural. Eu fico com filosofia, manuais técnicos e os volumes maiores. Não leia as sinopses. Apenas olhe para a capa, sinta o peso. Se o coração disser sim, ele vem conosco. Mova-se rápido. Seja forte.
Eles mergulharam na multidão. Elara sentiu um nó na garganta. Era uma carnificina. Ver aqueles livros, cada um uma história, cada um uma vida de trabalho de seu autor, tratados como lixo, partia-lhe o coração. Mas a dor se transformou em determinação. Ela não era uma espectadora; era uma salvadora.
Suas mãos se moviam com rapidez, resgatando uma antologia de poemas de amor com a capa de veludo gasta, um guia de campo sobre aves migratórias com ilustrações deslumbrantes, uma coletânea de contos de fadas de uma terra distante. Ela empilhava os livros em seus braços até não poder mais carregar, corria para a carroça para descarregá-los e voltava para mais. Ela e o pai trabalhavam em um silêncio sincronizado, um balé de resgate. Ocasionalmente, seus olhos se encontravam por cima da multidão, e ele lhe dava um aceno de cabeça encorajador, um sorriso rápido que dizia: “Você está indo bem. Estou orgulhoso.”
Quando a carroça estava perigosamente cheia, com livros formando paredes frágeis ao redor deles, o sino soou novamente, sinalizando o fim do tempo. Eles se afastaram, deixando para trás milhares de volumes para a fogueira. O caminho de volta foi mais lento, o peso de suas novas aquisições fazendo as rodas rangerem em protesto. Mas era um peso bom. Um peso de vitória.
De volta à segurança de sua biblioteca, a verdadeira alegria começou. Eles descarregaram sua colheita, criando novas pilhas no chão já apinhado. Cada livro era uma promessa. Elara pegou um, um romance com a capa rasgada, e leu a primeira frase. Um mundo inteiro se abriu para ela.
— Preciso arrumar espaço nas prateleiras mais altas — disse ela, com o rosto afogueado de excitação. Ela se virou para a escada de madeira rolante, uma estrutura antiga que dava acesso às estantes que tocavam o teto.
— Elara, espere. — A voz de Silas era suave, mas firme. Ele parou ao seu lado, colocando uma mão na escada. — Talvez seja melhor eu fazer isso. Esta escada é velha. Com o seu... com o peso dos livros e o seu, ela pode não aguentar.
As palavras a atingiram como pedras. Ele não a tinha chamado de gorda, não diretamente, mas a mensagem estava ali, pairando no ar entre a preocupação genuína e a crítica velada. O calor da excitação em seu rosto se transformou em uma queimação de vergonha. Ela olhou para os próprios pés, subitamente consciente de seu corpo, de sua estatura sobrepeso, como os doutores diziam. Naquele santuário, entre as histórias onde ela podia ser qualquer um – uma guerreira esguia, uma princesa delicada, uma exploradora ágil, seu pai a havia lembrado de sua forma física, de suas limitações.
— Eu consigo — ela murmurou, a voz um pouco trêmula.
— Eu sei que consegue, querida — disse ele, e agora seu tom era apenas de amor protetor, percebendo o estrago que suas palavras desajeitadas haviam causado — Mas não quero que se machuque. Deixe-me cuidar disso. Por favor.
Ela se afastou da escada, a alegria da missão de resgate manchada. Sentou-se em uma pilha de livros, sentindo-se pesada em mais de um sentido. Silas subiu a escada com uma agilidade surpreendente, começando a acomodar os novos volumes. O silêncio na sala era denso.
Depois de vários minutos, ele desceu. Sentou-se em outra pilha, de frente para ela, o rosto vincado de preocupação.
— Elara — começou ele, hesitando. — Eu sei por que você ama tanto esses livros. Eles são uma fuga. Um lugar seguro — Ele olhou ao redor, para as paredes de papel que ele mesmo havia construído — Mas você sabe por que eu trago tantos para casa?
Ela balançou a cabeça, sem ousar encontrar seus olhos.
— Era por causa da sua mãe — disse ele, e sua voz se tornou um sussurro carregado de memória — Quando ela adoeceu... não tínhamos tantos livros. Nossa casa era arrumada. — Um sorriso triste tocou seus lábios — A doença a deixava tão cansada. Ela dormia cada vez mais. E eu... eu tinha um medo terrível de que um dia ela fosse dormir e simplesmente não acordasse mais.
Ele olhou para as próprias mãos, como se a memória estivesse gravada em suas linhas.
— Então, eu comecei a trazer livros para casa. Todos os dias, eu trazia um novo. Uma aventura, um mistério, um romance. Eu lia para ela. Eu dizia: 'Lena, você não pode dormir agora, precisa saber como a história termina'. Eu tentava atiçar a curiosidade dela, usar as histórias como âncoras para mantê-la aqui, comigo. Eu a enchia de 'e se?' e 'o que acontece depois?' para que ela tivesse um motivo para abrir os olhos na manhã seguinte.
Lágrimas silenciosas começaram a rolar pelo rosto de Elara. Ela finalmente entendeu. A casa não era um santuário de conhecimento. Era um arsenal de esperança.
— Eu trouxe histórias de dragões e de estrelas distantes. Poemas que prometiam a eternidade e manuais que explicavam o funcionamento do coração humano. Mas... nenhuma história foi o suficiente — Sua voz falhou. — No fim, a doença a levou mesmo assim.
Ele finalmente olhou para Elara, seus olhos espelhando a dor dela.
— Eu nunca parei de trazê-los. Primeiro, foi por hábito. Depois... foi por você. Eu queria te dar todos os mundos que não pude dar a ela. Queria que você tivesse tantas histórias que nunca se sentisse sozinha — Ele estendeu a mão e tocou o rosto dela, enxugando uma lágrima com o polegar — Quando eu digo para ter cuidado na escada, não é porque eu me envergonho de você. É porque você é a única história que me restou, Elara. E eu não suportaria perder o final dela.
Naquele momento, a biblioteca se transformou. As pilhas de livros deixaram de ser apenas refúgios ou aventuras. Elas eram testemunhas. Eram boias salva-vidas que não funcionaram. Eram monumentos de um amor tão desesperado que tentou reescrever a realidade. Elara olhou para seu pai, para suas mãos de relojoeiro que tentaram consertar o que não podia ser consertado, e viu não apenas um pai, mas um homem com o coração remendado por histórias. E o peso que ela sentia não era mais o de seu corpo, mas o peso magnífico e esmagador do amor dele.
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A revelação de seu pai havia mudado a arquitetura da casa. As estantes de livros, antes vistas como fortalezas de conhecimento e refúgios de imaginação, agora pareciam monumentos. Cada lombada era uma lápide para um dia de esperança, cada volume um tijolo no mausoléu de amor e desespero que seu pai havia construído para sua mãe. O ar, antes perfumado apenas com o cheiro de papel e poeira, parecia agora carregado com o peso de uma dor antiga e silenciosa. Elara sentia-se a guardiã não de uma biblioteca, mas de um coração.
Naquela noite, a quietude da casa era diferente. Não era a paz habitual, mas um silêncio denso, preenchido por palavras não ditas e por uma compreensão que a havia envelhecido em poucas horas. Ela tentou ler, pegando um dos novos contos resgatados da pira, mas as palavras flutuavam na página, incapazes de formar a ponte para outro mundo. Seu próprio mundo havia se tornado vasto e complicado demais. As engrenagens de sua mente giravam em falso, presas na história que seu pai lhe contara.
Inquieta, sentindo as paredes de livros se fecharem sobre ela, Elara soube onde precisava estar. Deixou o livro de lado e caminhou descalça até a porta dos fundos, que se abria para o jardim. O ar noturno a envolveu como um xale de seda fresca, um alívio instantâneo para a atmosfera carregada da casa. A lua cheia, pendurada no céu de veludo como um medalhão de prata, banhava o jardim em uma luz pálida e fantasmagórica, tornando as cores do dia em tons de cinza e prata. O perfume da dama-da-noite era intenso, uma fragrância doce e inebriante que parecia ser a própria respiração da escuridão.
E lá estavam eles. Seus verdadeiros confidentes. Os vaga-lumes.
Naquela noite, pareciam mais numerosos do que nunca, suas luzes esverdeadas pulsando em uma sinfonia silenciosa. Não era a dança frenética do início do verão; era um balé mais lento, mais deliberado, como se o peso do final da estação já estivesse em suas pequenas asas.
Elara caminhou até o centro do gramado, a grama úmida de orvalho fazendo cócegas em seus pés. Sentou-se, abraçando os joelhos, e esperou. Ela não os chamava com a voz. Chamava-os com o coração, com a quietude de sua alma, um truque que sua mãe lhe ensinara. Concentrou-se na saudade, na confusão, no amor avassalador que sentia por seus pais, e deixou que esses sentimentos irradiassem dela como calor.
Aos poucos, a dança deles mudou. Alguns vaga-lumes se destacaram do padrão geral e se aproximaram, circulando-a em órbitas lentas e curiosas. Eles eram sua audiência, seu conselho de anciãos luminosos. E, como fazia desde que se entendia por gente, ela começou a conversar.
— Ele me contou — sussurrou ela para a noite, sua voz pouco mais que um sopro — Ele me contou por que há tantos livros. Não era por ele. Nem por mim. Era por ela.
Um vaga-lume pousou em seu joelho, sua luz piscando suavemente. Acende. Apaga. Uma vírgula luminosa em sua confissão.
— Eu sempre pensei que os livros eram a nossa magia. Mas eles eram a arma dele. Uma arma contra o silêncio. Contra o fim. E não funcionou.
A verdade daquelas palavras a feriu. Ela havia passado a vida inteira acreditando no poder absoluto das histórias para salvar, para consertar, para transportar. Mas a história mais importante, a de sua própria família, tivera um final que nenhuma narrativa pôde impedir.
— Tenho medo — admitiu ela, a voz embargada.
Era um medo que ela nunca havia confessado a ninguém, nem mesmo a si mesma.
— Tenho medo de esquecê-la de vez. O rosto dela... já é como fumaça na minha mente. Lembro-me do cabelo dela sob a luz do sol, mas não do formato de seus olhos. Lembro-me do som de sua risada, mas não do contorno de seus lábios quando ela sorria. — Ela apertou os olhos, tentando forçar a imagem a aparecer, mas apenas fragmentos vieram — Vocês são tudo o que me resta dela. Esta conversa. Se vocês forem embora, se a luz de vocês se apagar... o que vai sobrar?
As luzes dos vaga-lumes ao seu redor pareceram vacilar, piscando de forma errática, desordenada. Para Elara, aquilo era a manifestação de sua própria ansiedade, um reflexo de seu coração em pânico. Eles entendiam seu medo. Eles o sentiam.
— E eu tenho medo por ele — continuou ela, pensando em seu pai. — Ele é como um de seus relógios, funcionando perfeitamente por fora, mas por dentro... acho que a mola principal dele quebrou há muito tempo. Ele continua funcionando por mim. Mas quando a noite chega, e ele pensa que estou dormindo, eu o ouço andando pela biblioteca. Apenas andando, em silêncio. Tocando as lombadas dos livros. Eu acho... acho que ele ainda está lendo para ela.
A confissão pairou no ar, pesada e iridescente como as asas de uma libélula. Os vaga-lumes ao seu redor se acalmaram. Suas luzes começaram a pulsar juntas, em um ritmo lento, forte e constante. Um batimento cardíaco coletivo de luz. Para Elara, era conforto. Era uma mensagem: Nós sabemos. Nós entendemos. Estamos aqui.
Encorajada, ela passou a compartilhar seus sonhos.
— Eu sonho em ver os lugares do Atlas. As Montanhas Sussurrantes, o Mar de Tinta... quero saber se o ar lá é diferente. — Ela riu um pouco, um som frágil na noite — Sonho em encontrar um livro que ela escondeu, um diário talvez, com todas as suas histórias. Todas as respostas.
Ela olhou para o céu, para a lua.
— Mas, principalmente, eu só sonho em me lembrar dela com mais clareza. Só mais um dia. Uma hora. Para perguntar a ela... sobre vocês. Para saber se a magia era real, ou apenas uma história bonita para uma menina assustada.
Em resposta, os vaga-lumes se ergueram em uma espiral ascendente, um redemoinho de luz que subiu em direção ao céu, como se estivessem levando seus sonhos para as estrelas. Elara observou, com o coração apertado de assombro e amor. Aquela era a sua linguagem. Uma caligrafia de luz contra a lousa da noite. Um código morse da alma. Cada padrão, cada pulso, era uma resposta. Não com palavras, mas com sentimento, com luz, com presença. Era a felicidade de sua mãe, filtrada através do tempo e da natureza, respondendo a ela.
Enquanto observava o último brilho da espiral se dissipar, a revelação de seu pai e sua própria tradição noturna colidiram em sua mente, criando uma centelha de uma ideia. Uma ideia tão simples e tão poderosa que a deixou sem fôlego.
Seu pai usava histórias para tentar manter sua mãe ancorada a este mundo.
Ela usava os vaga-lumes para manter a memória de sua mãe ancorada a ela.
Os vaga-lumes eram os mensageiros de sua mãe.
O silogismo se completou em sua mente com a força de um relâmpago silencioso. E se... e se ela usasse a arma de seu pai para proteger os mensageiros de sua mãe?
A lógica era a de um conto de fadas, mas em seu mundo, era perfeitamente sã. Os vaga-lumes eram criaturas do verão e da primavera. Com a chegada do outono, eles desapareceriam. O frio e a escuridão levariam embora suas luzes, e com eles, a presença tangível de sua mãe. O jardim ficaria silencioso e vazio. A conversa terminaria até o ano seguinte. Essa perspectiva, este ano, parecia mais insuportável do que nunca.
— Se as histórias eram para mantê-la acordada... — sussurrou Elara para si mesma, levantando-se. — Talvez... talvez elas possam manter vocês aqui.
Uma nova determinação a preencheu, substituindo o medo e a confusão. Ela tinha um plano. Tinha uma missão. Não mais seria uma participante passiva, esperando que a magia viesse até ela. Ela a nutriria. Ela a sustentaria.
Com passos rápidos, ela voltou para dentro de casa. A biblioteca não parecia mais assustadora. Parecia um arsenal à sua disposição. Seus olhos varreram as prateleiras, passando por cima de aventuras e mistérios. Ela precisava do livro certo. Sua mão, como se guiada por uma força invisível, foi direto para a pequena cópia de capa azul de Botânica dos Sonhos. O livro de sua mãe. O livro com a alma dela em suas margens.
Com o tomo precioso em mãos, ela retornou ao jardim. Os vaga-lumes ainda estavam lá, pairando no ar como se esperassem por ela. Ela se sentou novamente no mesmo lugar, a luz da lua iluminando as páginas amareladas.
Sua voz, no início, era um sussurro hesitante, trêmulo pela magnitude do que estava tentando fazer.
— Eu... eu gostaria de ler para vocês — disse ela ao seu público cintilante — É um livro que ela amava.
Ela abriu em uma página aleatória e começou a ler.
— A Salgueira-das-Almas não possui folhas, mas sim finíssimos filamentos de prata que captam a luz da lua. Diz a lenda que cada filamento está conectado a uma memória feliz flutuando no mundo. Ao tocar em um, pode-se sentir o eco de um riso distante, o calor de um abraço há muito perdido...
À medida que lia, sua voz se tornava mais firme, mais clara, preenchida com a melodia da prosa e com a convicção de seu propósito. Ela não estava apenas lendo palavras; estava oferecendo-as. Uma oferenda de tinta e papel para criaturas de luz e ar.
E a magia aconteceu.
Os vaga-lumes, que antes mantinham uma distância respeitosa, começaram a se aproximar. Eles desceram de suas altitudes, formando um círculo apertado ao seu redor. Alguns pousaram no livro aberto, suas pequenas lanternas iluminando as palavras que ela lia, como se a ajudassem. Outros pousaram em seus ombros e em seu cabelo, transformando-a em uma constelação viva. Suas luzes, antes um ritmo constante, agora pareciam pulsar em sincronia com a cadência de sua leitura. Quando ela fazia uma pausa para respirar, as luzes diminuíam coletivamente. Quando sua voz se enchia de emoção, elas brilhavam com mais intensidade.
Ela continuou lendo, página após página, a história de plantas mágicas se entrelaçando com a sua própria. Leu sobre a Raiz-Sussurrante e pensou nas canções de sua mãe. Leu sobre a Flor-Lanterna e pensou na anotação dela sobre encontrar a luz na escuridão. Era um feitiço. Era uma oração. Era uma promessa.
Não sabia por quanto tempo ficou ali, com a voz tecendo histórias no tear da noite. Mas quando finalmente parou, exausta, a lua já havia se movido consideravelmente no céu. Os vaga-lumes ainda estavam com ela, um cobertor de estrelas silenciosas e vigilantes. Eles não haviam ido embora.
Uma nova esperança floresceu em seu peito, forte e resiliente. O outono podia vir, com seus ventos frios. O inverno podia chegar, com sua geada e seu silêncio de neve. Mas ela estaria lá, noite após noite, com um livro nas mãos e uma história em seus lábios. Ela os alimentaria com contos, os aqueceria com aventuras, os protegeria com poesia. Assim como seu pai tentou ancorar uma alma à vida com histórias, ela ancoraria o verão ao seu jardim. Ela não deixaria a luz se apagar.
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Se está gostando não deixe de curtir pra mim saber e me segue no coraçãozinho, bjs.
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