Capítulo 2 - Mãos de Relojoeiro, Coração de Pai

Se o mundo de Elara era um universo em expansão de papel e tinta, o de seu pai, Silas, era um cosmos em miniatura de latão, aço e rubis. Sua oficina, um pequeno anexo nos fundos da casa, cheirava não a celulose, mas a óleo de máquina, a metal polido e ao ozônio sutil de ferramentas em funcionamento. Era um lugar de ordem precisa, um contraponto direto ao caos orgânico da biblioteca. Aqui, pequenas peças eram organizadas em bandejas de madeira, ferramentas penduradas em contornos desenhados na parede e o som dominante não era o virar de uma página, mas o tique-taque rítmico e constante de múltiplos corações mecânicos.

Silas era um relojoeiro, e suas mãos contavam a história de sua profissão. Eram mãos grandes e firmes, com calos de artesão, mas capazes de uma delicadeza quase inacreditável. Elara costumava passar horas sentada em um banquinho no canto, observando-o trabalhar. Com uma lupa presa ao olho, ele se curvava sobre o interior de um relógio de bolso como um deus debruçado sobre a criação de um novo sistema solar. Seus dedos, que poderiam parecer desajeitados, moviam-se com a precisão de um cirurgião, pegando molas finas como fios de cabelo e engrenagens do tamanho de uma semente de papoula com pinças finíssimas.

Naquela manhã, o ar estava parado e a luz que entrava pela janela da oficina era leitosa. Elara observava enquanto seu pai remontava um antigo relógio de pêndulo, cujas entranhas de bronze estavam espalhadas sobre a bancada de trabalho.

— Cada relógio é uma história, Elara — , disse ele, sem desviar o olhar da peça em suas mãos. Sua voz era grave e calma, como o tique-taque lento do relógio que ele consertava. — As pessoas pensam que eles apenas marcam o tempo, mas isso é o mínimo que fazem. Eles contam a história da paciência, da precisão.

Ele pegou uma pequena engrenagem dentada.

— Veja esta peça. Sozinha, ela não é nada. Mas quando se encaixa com as outras... — Ele a posicionou cuidadosamente em seu eixo, e com um leve toque, ela se interligou a outra. — Elas começam a conversar. Uma move a outra. Uma decisão afeta a próxima. Assim como os personagens em seus livros. Cada escolha que fazem, cada palavra que dizem, move a engrenagem da trama para a frente.

Ele apontou com a pinça para a mola principal, um caracol de metal firmemente enrolado.

— Esta é a motivação. O desejo central da história. O amor, a vingança, a busca por um tesouro. É a energia que impulsiona tudo. Sem ela, as engrenagens não giram, os ponteiros não se movem. A história nunca começa.

Para Elara, aquela era a mais bela das lições. Seu pai lhe ensinava que o mundo dos livros e o mundo das máquinas não eram tão diferentes. Ambos eram sistemas complexos, construídos a partir de pequenas partes que, juntas, criavam algo muito maior: uma narrativa. Um relógio contava a história de um dia; um livro podia contar a história de uma vida inteira. Ambos exigiam que alguém lhes desse corda – o leitor, com sua imaginação; o dono do relógio, com uma chave.

O momento de paz foi quebrado por um som que ecoou pela vila: o toque grave e ressonante do sino da torre central. Não era o chamado para a oração, nem o alarme de incêndio. Era um sino específico, que soava apenas algumas vezes por ano: o Sino do Descarte.

Silas endireitou as costas, e um suspiro escapou de seus lábios. Ele olhou para Elara, e em seus olhos havia uma urgência que ela conhecia bem.

— Está na hora — ele disse simplesmente.

O Descarte era um evento agridoce. Por ordem do Palácio, todas as bibliotecas, arquivos e gabinetes de estudo eram obrigados a se livrar de livros considerados excedentes , redundantes ou desatualizados. Eram volumes que o poder central julgava desnecessários. Antes de serem levados para a pira e queimados, um ato que enviava um arrepio pela espinha de Elara, eles eram empilhados na praça principal por um dia inteiro. Durante esse período, a população podia pegar o que quisesse. Era um ato de falsa generosidade, um espetáculo para mascarar a destruição do conhecimento.

Para Silas, era uma missão de resgate. E este ano, pela primeira vez, Elara tinha idade suficiente para ir com ele.

— Pegue o casaco mais resistente que tiver — disse ele, já limpando as mãos em um pano. — E calce as botas. Vai haver muita gente.

O coração de Elara batia forte com uma mistura de excitação e pavor. Ela sempre soubera de onde vinha o fluxo constante de novos (velhos) livros que alimentava sua casa, mas nunca havia testemunhado a origem. Era como finalmente ser convidada a participar do segredo mais importante da família.

Eles prepararam a carroça, um veículo simples de madeira com duas rodas grandes, que Silas usava para transportar relógios de pêndulo e outros consertos grandes. O som das rodas no caminho de paralelepípedos era a trilha sonora de sua jornada. Enquanto se aproximavam da praça, a multidão se adensava. Havia uma energia frenética no ar, uma mistura de ganância e desespero. As pessoas não viam apenas livros; viam lenha para o inverno, papel para embrulhar peixe, ou, para alguns poucos como eles, almas a serem salvas.

E então ela viu. As pilhas. Eram montanhas. Maiores e mais caóticas do que as de sua própria casa. Livros de todos os tamanhos e cores, jogados uns sobre os outros sem cerimônia. Lombadas quebradas, páginas arrancadas, capas manchadas. No ar, pairava o cheiro de papel velho misturado com o odor tênue e ameaçador de querosene, vindo dos barris que os guardas do Palácio haviam posicionado nos cantos da praça, prontos para a fogueira do dia seguinte.

— Não temos muito tempo — disse Silas, com os olhos varrendo a paisagem de papel condenado. — Lembre-se do plano. Você procura por poesia, contos e história natural. Eu fico com filosofia, manuais técnicos e os volumes maiores. Não leia as sinopses. Apenas olhe para a capa, sinta o peso. Se o coração disser sim, ele vem conosco. Mova-se rápido. Seja forte.

Eles mergulharam na multidão. Elara sentiu um nó na garganta. Era uma carnificina. Ver aqueles livros, cada um uma história, cada um uma vida de trabalho de seu autor, tratados como lixo, partia-lhe o coração. Mas a dor se transformou em determinação. Ela não era uma espectadora; era uma salvadora.

Suas mãos se moviam com rapidez, resgatando uma antologia de poemas de amor com a capa de veludo gasta, um guia de campo sobre aves migratórias com ilustrações deslumbrantes, uma coletânea de contos de fadas de uma terra distante. Ela empilhava os livros em seus braços até não poder mais carregar, corria para a carroça para descarregá-los e voltava para mais. Ela e o pai trabalhavam em um silêncio sincronizado, um balé de resgate. Ocasionalmente, seus olhos se encontravam por cima da multidão, e ele lhe dava um aceno de cabeça encorajador, um sorriso rápido que dizia: “Você está indo bem. Estou orgulhoso.”

Quando a carroça estava perigosamente cheia, com livros formando paredes frágeis ao redor deles, o sino soou novamente, sinalizando o fim do tempo. Eles se afastaram, deixando para trás milhares de volumes para a fogueira. O caminho de volta foi mais lento, o peso de suas novas aquisições fazendo as rodas rangerem em protesto. Mas era um peso bom. Um peso de vitória.

De volta à segurança de sua biblioteca, a verdadeira alegria começou. Eles descarregaram sua colheita, criando novas pilhas no chão já apinhado. Cada livro era uma promessa. Elara pegou um, um romance com a capa rasgada, e leu a primeira frase. Um mundo inteiro se abriu para ela.

— Preciso arrumar espaço nas prateleiras mais altas — disse ela, com o rosto afogueado de excitação. Ela se virou para a escada de madeira rolante, uma estrutura antiga que dava acesso às estantes que tocavam o teto.

— Elara, espere. — A voz de Silas era suave, mas firme. Ele parou ao seu lado, colocando uma mão na escada. — Talvez seja melhor eu fazer isso. Esta escada é velha. Com o seu... com o peso dos livros e o seu, ela pode não aguentar.

As palavras a atingiram como pedras. Ele não a tinha chamado de gorda, não diretamente, mas a mensagem estava ali, pairando no ar entre a preocupação genuína e a crítica velada. O calor da excitação em seu rosto se transformou em uma queimação de vergonha. Ela olhou para os próprios pés, subitamente consciente de seu corpo, de sua estatura sobrepeso, como os doutores diziam. Naquele santuário, entre as histórias onde ela podia ser qualquer um – uma guerreira esguia, uma princesa delicada, uma exploradora ágil, seu pai a havia lembrado de sua forma física, de suas limitações.

— Eu consigo — ela murmurou, a voz um pouco trêmula.

— Eu sei que consegue, querida — disse ele, e agora seu tom era apenas de amor protetor, percebendo o estrago que suas palavras desajeitadas haviam causado — Mas não quero que se machuque. Deixe-me cuidar disso. Por favor.

Ela se afastou da escada, a alegria da missão de resgate manchada. Sentou-se em uma pilha de livros, sentindo-se pesada em mais de um sentido. Silas subiu a escada com uma agilidade surpreendente, começando a acomodar os novos volumes. O silêncio na sala era denso.

Depois de vários minutos, ele desceu. Sentou-se em outra pilha, de frente para ela, o rosto vincado de preocupação.

— Elara — começou ele, hesitando. — Eu sei por que você ama tanto esses livros. Eles são uma fuga. Um lugar seguro — Ele olhou ao redor, para as paredes de papel que ele mesmo havia construído — Mas você sabe por que eu trago tantos para casa?

Ela balançou a cabeça, sem ousar encontrar seus olhos.

— Era por causa da sua mãe — disse ele, e sua voz se tornou um sussurro carregado de memória — Quando ela adoeceu... não tínhamos tantos livros. Nossa casa era arrumada. — Um sorriso triste tocou seus lábios — A doença a deixava tão cansada. Ela dormia cada vez mais. E eu... eu tinha um medo terrível de que um dia ela fosse dormir e simplesmente não acordasse mais.

Ele olhou para as próprias mãos, como se a memória estivesse gravada em suas linhas.

— Então, eu comecei a trazer livros para casa. Todos os dias, eu trazia um novo. Uma aventura, um mistério, um romance. Eu lia para ela. Eu dizia: 'Lena, você não pode dormir agora, precisa saber como a história termina'. Eu tentava atiçar a curiosidade dela, usar as histórias como âncoras para mantê-la aqui, comigo. Eu a enchia de 'e se?' e 'o que acontece depois?' para que ela tivesse um motivo para abrir os olhos na manhã seguinte.

Lágrimas silenciosas começaram a rolar pelo rosto de Elara. Ela finalmente entendeu. A casa não era um santuário de conhecimento. Era um arsenal de esperança.

— Eu trouxe histórias de dragões e de estrelas distantes. Poemas que prometiam a eternidade e manuais que explicavam o funcionamento do coração humano. Mas... nenhuma história foi o suficiente — Sua voz falhou. — No fim, a doença a levou mesmo assim.

Ele finalmente olhou para Elara, seus olhos espelhando a dor dela.

— Eu nunca parei de trazê-los. Primeiro, foi por hábito. Depois... foi por você. Eu queria te dar todos os mundos que não pude dar a ela. Queria que você tivesse tantas histórias que nunca se sentisse sozinha — Ele estendeu a mão e tocou o rosto dela, enxugando uma lágrima com o polegar — Quando eu digo para ter cuidado na escada, não é porque eu me envergonho de você. É porque você é a única história que me restou, Elara. E eu não suportaria perder o final dela.

Naquele momento, a biblioteca se transformou. As pilhas de livros deixaram de ser apenas refúgios ou aventuras. Elas eram testemunhas. Eram boias salva-vidas que não funcionaram. Eram monumentos de um amor tão desesperado que tentou reescrever a realidade. Elara olhou para seu pai, para suas mãos de relojoeiro que tentaram consertar o que não podia ser consertado, e viu não apenas um pai, mas um homem com o coração remendado por histórias. E o peso que ela sentia não era mais o de seu corpo, mas o peso magnífico e esmagador do amor dele.

...***...

Se está gostando não deixe de curtir pra mim saber e me segue no coraçãozinho, bjs.

❤⃛ヾ(๑❛ ▿ ◠๑ )

Capítulos
1 Capítulo 1 - O Cheiro de Papel e Crepúsculo
2 Capítulo 2 - Mãos de Relojoeiro, Coração de Pai
3 Capítulo 3 - Sussurros No Jardim
4 Capítulo 4 - O Peso Do Mundo
5 Capítulo 5 - O Barão e o Mecanismo Astral
6 Capítulo 6 - A Tempestade Chega
7 Capítulo 7 - O Silêncio Depois da Tempestade
8 Capítulo 8 - Portas Fechadas
9 Capítulo 9 - O Legado de Um Leitor
10 Capítulo 10 - A Escada e o Destino
11 Não pare agora: conheça minha próxima obra
12 Capítulo 11 - A Guilda Dos Sussurrantes
13 Capítulo 12 - O Mapa Iluminado
14 Capítulo 13 - O Covil Sob o Templo
15 Capítulo 14 - Diante das Sombras
16 Capítulo 15 - "Substancial Demais"
17 Capítulo 16 - O Irmão do Líder
18 Capítulo 17 - Uma Lenda Perigosa
19 Capítulo 18 - O Aviso Ignorado
20 Capítulo 19 - A Jornada ao Desconhecido
21 Capítulo 20 - A Cabana na Clareira
22 Capítulo 21 - A Sombra da Curandeira
23 Capítulo 22 - O Pacto e o Preço
24 Capítulo 23 - O Pântano Tocado pelo Luar
25 Capítulo 24 - O Ritual da Transformação
26 Capítulo 25 - O Reflexo no Espelho
27 Capítulo 26 - O Retorno ao Covil
28 Capítulo 27 - A Sombra em Você
29 Capítulo 28 - O Treinamento de uma Sombra
30 Capítulo 29 - A Primeira Missão
31 Capítulo 30 - Conversas na Biblioteca Secreta
32 Capítulo 31 - Fagulhas de Romance
33 Não pare agora: conheça minhas outras obra
34 Capítulo 32 - O Vazio Crescente
35 Capítulo 33 - A Chave para a Verdade
36 Capítulo 34 - O Livro de Registros Criptografados
37 Capítulo 35 - A Verdade Amarga
38 Capítulo 36 - O Coração Dividido
39 Capítulo 37 - O Plano de Elara
40 Capítulo 38 - O Castelo de Cartas Desmorona
41 Capítulo 39 - Olhos de Um Estranho
42 Capítulo 40 - A Sombra de uma Dívida
43 Capítulo 41 - O Contrato da Ampulheta
44 Capítulo 42 - O Preço da Leveza
45 Capítulo 43 - Um Gosto Amargo de Vitória
46 Capítulo 44 - Uma Luz Solitária
47 Capítulo 45 - Uma Batida na Porta
48 Capítulo 46 - Não Vim Por Vingança
49 Epílogo
Capítulos

Atualizado até capítulo 49

1
Capítulo 1 - O Cheiro de Papel e Crepúsculo
2
Capítulo 2 - Mãos de Relojoeiro, Coração de Pai
3
Capítulo 3 - Sussurros No Jardim
4
Capítulo 4 - O Peso Do Mundo
5
Capítulo 5 - O Barão e o Mecanismo Astral
6
Capítulo 6 - A Tempestade Chega
7
Capítulo 7 - O Silêncio Depois da Tempestade
8
Capítulo 8 - Portas Fechadas
9
Capítulo 9 - O Legado de Um Leitor
10
Capítulo 10 - A Escada e o Destino
11
Não pare agora: conheça minha próxima obra
12
Capítulo 11 - A Guilda Dos Sussurrantes
13
Capítulo 12 - O Mapa Iluminado
14
Capítulo 13 - O Covil Sob o Templo
15
Capítulo 14 - Diante das Sombras
16
Capítulo 15 - "Substancial Demais"
17
Capítulo 16 - O Irmão do Líder
18
Capítulo 17 - Uma Lenda Perigosa
19
Capítulo 18 - O Aviso Ignorado
20
Capítulo 19 - A Jornada ao Desconhecido
21
Capítulo 20 - A Cabana na Clareira
22
Capítulo 21 - A Sombra da Curandeira
23
Capítulo 22 - O Pacto e o Preço
24
Capítulo 23 - O Pântano Tocado pelo Luar
25
Capítulo 24 - O Ritual da Transformação
26
Capítulo 25 - O Reflexo no Espelho
27
Capítulo 26 - O Retorno ao Covil
28
Capítulo 27 - A Sombra em Você
29
Capítulo 28 - O Treinamento de uma Sombra
30
Capítulo 29 - A Primeira Missão
31
Capítulo 30 - Conversas na Biblioteca Secreta
32
Capítulo 31 - Fagulhas de Romance
33
Não pare agora: conheça minhas outras obra
34
Capítulo 32 - O Vazio Crescente
35
Capítulo 33 - A Chave para a Verdade
36
Capítulo 34 - O Livro de Registros Criptografados
37
Capítulo 35 - A Verdade Amarga
38
Capítulo 36 - O Coração Dividido
39
Capítulo 37 - O Plano de Elara
40
Capítulo 38 - O Castelo de Cartas Desmorona
41
Capítulo 39 - Olhos de Um Estranho
42
Capítulo 40 - A Sombra de uma Dívida
43
Capítulo 41 - O Contrato da Ampulheta
44
Capítulo 42 - O Preço da Leveza
45
Capítulo 43 - Um Gosto Amargo de Vitória
46
Capítulo 44 - Uma Luz Solitária
47
Capítulo 45 - Uma Batida na Porta
48
Capítulo 46 - Não Vim Por Vingança
49
Epílogo

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