Capítulo 4 - O Peso Do Mundo

A casa de Elara era um mundo completo. Dentro de suas paredes forradas de livros, ela era exploradora, rainha, erudita e guardiã. Cada corredor era um território conhecido, cada livro um súdito leal. Mas a casa, por mais vasta que fosse em seu conteúdo, não produzia pão, nem queijo, nem os legumes frescos que seu pai tanto apreciava. E assim, uma ou duas vezes por semana, Elara era forçada a abdicar de seu trono de papel e aventurar-se no único reino onde se sentia uma estrangeira desajeitada: a vila.

Naquela manhã, a necessidade era inadiável. A despensa estava quase vazia, e seu pai estava imerso em um trabalho particularmente delicado: o restauro do minúsculo mecanismo de um relógio de pulso que pertencera ao burgomestre. Era um trabalho que exigia concentração total, e Elara sabia que interrompê-lo seria um sacrilégio. O dever, portanto, era seu.

Preparar-se para ir à vila era como vestir uma armadura. Não uma de aço brilhante, mas uma tecida com resignação e autodefesa. Ela trocou suas roupas confortáveis de ficar em casa por um vestido simples, de cor escura, que não chamava a atenção. Prendeu o cabelo em um coque apertado, tentando domar os fios rebeldes que insistiam em emoldurar seu rosto. Olhou-se brevemente no espelho manchado do corredor e suspirou. Não importava o que vestisse. A armadura nunca escondia o que ela era. Elara sabia, com a certeza amarga que vem da repetição, que uma garota de seu porte, gorda, não era bem vista. Nos livros, heroínas vinham em todas as formas, mas na vida real, na pequena vila aninhada no vale, parecia haver apenas um molde aceitável, e ela o quebrava em todas as direções.

Pegou a cesta de vime e saiu, fechando a porta atrás de si. O som do trinco parecia o de uma ponte levadiça se fechando, isolando seu castelo. O caminho para a vila era bonito, ladeado por carvalhos antigos e flores silvestres. Quando estava sozinha ali, ela conseguia fingir. Podia ser uma druidesa a caminho de um bosque sagrado, ou uma mensageira levando um recado secreto. Mas à medida que o som distante das conversas e do martelo do ferreiro se tornava mais nítido, a fantasia se desvanecia, substituída por uma ansiedade fria que se instalava em seu estômago.

A praça do mercado fervilhava de vida. Era o coração pulsante da vila, um lugar de cores, cheiros e sons. Barracas com toldos listrados ofereciam de tudo, desde peixes prateados ainda cheirando ao rio até pães dourados e frutas empilhadas em pirâmides vibrantes. Mas para Elara, a praça não era um lugar de comunidade; era um palco. E ela era a atriz que não sabia suas falas, usando o figurino errado.

Seu primeiro destino foi a barraca do padeiro. O cheiro de fermento e açúcar a envolveu, um aroma que deveria ser reconfortante, mas que para ela era carregado de julgamento. O padeiro, um homem corpulento com um bigode enfarinhado, atendeu-a com uma eficiência polida, mas impessoal.

— Dois pães de centeio, por favor. E um pão doce com passas.

Ela sentiu o peso do seu pedido. Sentiu o olhar do padeiro demorar-se nela por uma fração de segundo a mais. Imaginou seus pensamentos: Claro, a filha do relojoeiro. O pão doce deve ser para ela. Ela pagou, guardou os pães na cesta e agradeceu com a voz baixa, evitando contato visual. O peso da cesta já começava a se manifestar, não apenas em seu braço, mas em sua alma.

Seu próximo destino era a barraca de legumes, do outro lado da praça. Para chegar lá, ela precisava passar por um grupo de jovens de sua idade, reunidas perto do poço. Eram como um bando de pássaros coloridos: A filha do ferreiro, com seus braços fortes e risada alta; A costureira, sempre impecável em suas próprias criações; e a que cujo pai era dono da maior fazenda da região, com um ar de superioridade que a precedia.

Elas conversavam e riam, suas vozes soando como sinos na manhã clara. No momento em que perceberam a aproximação de Elara, uma mudança sutil, mas imediata, ocorreu. A risada de morreu em sua garganta. Uma alisou o vestido, virando-se ligeiramente de lado, criando uma barreira física. E outra ergueu o queixo, seus olhos passando por Elara como se ela fosse um pedaço de mobília. O círculo delas, antes aberto e convidativo, tornou-se uma fortaleza impenetrável.

Elara sentiu o calor subir em seu rosto. Tornou-se hiperconsciente de seus próprios movimentos. Sentiu-se grande, desajeitada, um navio cargueiro tentando navegar por um canal de gôndolas graciosas. Seus passos pareceram pesados e barulhentos no chão de pedra. Ela baixou a cabeça, focando no caminho à sua frente, desejando ter o poder da invisibilidade que tantos heróis de seus livros possuíam.

Foi então que ouviu, não dirigido a ela, mas lançado ao ar com a intenção clara de que ela o apanhasse. A voz, falsamente melosa, disfarçada de preocupação.

— Pobre Mestre Silas. Ele trabalha tanto, coitado. Passa dias debruçado sobre aquelas pecinhas minúsculas.

— É verdade — concordou uma das garotas, entrando no jogo — Ele mal sai daquela oficina.

Então veio o golpe, a estocada final.

— Com uma filha que parece comer um banquete inteiro a cada refeição, não me admira que ele nunca descanse. O pobre homem precisa sustentá-la.

As palavras a atingiram com força física. Elara tropeçou, quase derrubando a cesta. As outras garotas abafaram risadinhas atrás das mãos. Não havia malícia aberta, apenas a crueldade casual de quem se sente superior. Elas não sabiam nada sobre sua casa. Não sabiam sobre a dor silenciosa de seu pai, sobre os livros que eram monumentos, sobre os vaga-lumes que eram mensageiros. Eles viam apenas a superfície – uma garota gorda e um pai recluso – e teciam suas histórias maldosas a partir disso, especulando com a confiança dos ignorantes.

Elara não respondeu. Aprendeu há muito tempo que o silêncio era sua única defesa. Qualquer resposta, fosse raiva ou lágrimas, só lhes daria mais munição. Ela se endireitou, apertando a alça da cesta com tanta força que seus nós dos dedos ficaram brancos. Continuou seu caminho até a barraca de legumes, sentindo os olhares delas em suas costas como agulhas.

— Batatas, cenouras e um maço de espinafre, por favor — pediu ao vendedor, sua voz soando estranha e distante aos seus próprios ouvidos.

O vendedor, um velho de rosto enrugado, pesou os legumes, mas seus olhos também se desviaram para o grupo de garotas e depois de volta para ela. Havia pena em seu olhar? Ou ele também estava pensando a mesma coisa? De repente, cada batata, cada cenoura em sua cesta parecia uma acusação. O peso do mundo, ou pelo menos o de seu pequeno mundo, estava todo naquela cesta.

Ela terminou suas compras o mais rápido que pôde, uma transação final por um pedaço de queijo, e então começou a longa caminhada de volta para casa. O caminho que antes parecia bonito agora era apenas um borrão verde e marrom. A armadura que ela vestira estava rachada, e a vergonha e a dor vazavam por todas as frestas.

As palavras de Marie ecoavam em sua mente. Parece comer um banquete inteiro a cada refeição. Era injusto. Ela e seu pai comiam de forma simples. A maioria de suas refeições era frugal. Mas a verdade não importava. A imagem que eles tinham dela era a única coisa que contava. A imagem de uma glutona preguiçosa que era um fardo para seu pai trabalhador.

Lágrimas quentes e furiosas brotaram em seus olhos, mas ela as forçou a recuar. Não choraria aqui fora. Não daria a ninguém essa satisfação.

Finalmente, a curva no caminho revelou sua casa. Nunca um lugar lhe parecera tão belo, tão seguro. A porta de madeira escura era a entrada para seu refúgio. O telhado coberto de musgo era sua coroa. Ela acelerou o passo, o peso da cesta agora um incentivo para chegar mais rápido.

Abriu a porta e entrou, fechando-a com um clique decisivo. O mundo exterior estava trancado. Ela se encostou na porta por um momento, respirando fundo. O cheiro de papel, poeira e da cola de encadernação de seu pai a envolveu como um abraço. O tique-taque suave dos relógios na oficina era a única batida do coração da casa. Era o som da paz. Da segurança.

Levou os mantimentos para a cozinha, guardando tudo em silêncio. Através da porta aberta da oficina, ela podia ver seu pai, ainda curvado sobre a bancada, a lupa no olho, completamente absorto em seu universo em miniatura. Ele não fazia ideia da batalha que ela acabara de travar. E ela não lhe contaria. O peso que ele carregava já era grande demais. Este era o peso dela.

Com as tarefas terminadas, ela foi para o coração de seu reino: a poltrona de veludo gasto, cercada por suas muralhas de livros. Seus dedos traçaram as lombadas, buscando consolo. O mundo lá fora era barulhento, cruel e cheio de julgamentos superficiais. Mas aqui dentro... aqui dentro as histórias eram profundas. Os personagens eram julgados por seus atos, por sua coragem, por sua bondade, não pela forma de seus corpos. Aqui, a complexidade era celebrada, não ridicularizada.

Ela pegou o Atlas dos Mundos Perdidos, o seu refúgio supremo. O peso do tomo em seu colo era um contraponto reconfortante ao peso da cesta. Era um peso bom, um peso de promessa. Ela o abriu, e o cheiro de papel velho subiu até ela. A vila, as garotas, os sussurros maldosos... tudo começou a recuar, a diminuir, tornando-se tão pequeno e insignificante quanto as engrenagens no relógio de seu pai.

Naquele momento, Elara entendeu por que se apegava tanto àquele lugar. Não era apenas um escape. Era uma necessidade. Se o mundo exterior insistia em lhe dar um peso de vergonha para carregar, então aqui, entre suas páginas, ela encontraria asas.

...***...

Se está gostando não deixe de curtir pra mim saber e me segue no coraçãozinho, bjs.

❤⃛ヾ(๑❛ ▿ ◠๑ )

Capítulos
1 Capítulo 1 - O Cheiro de Papel e Crepúsculo
2 Capítulo 2 - Mãos de Relojoeiro, Coração de Pai
3 Capítulo 3 - Sussurros No Jardim
4 Capítulo 4 - O Peso Do Mundo
5 Capítulo 5 - O Barão e o Mecanismo Astral
6 Capítulo 6 - A Tempestade Chega
7 Capítulo 7 - O Silêncio Depois da Tempestade
8 Capítulo 8 - Portas Fechadas
9 Capítulo 9 - O Legado de Um Leitor
10 Capítulo 10 - A Escada e o Destino
11 Não pare agora: conheça minha próxima obra
12 Capítulo 11 - A Guilda Dos Sussurrantes
13 Capítulo 12 - O Mapa Iluminado
14 Capítulo 13 - O Covil Sob o Templo
15 Capítulo 14 - Diante das Sombras
16 Capítulo 15 - "Substancial Demais"
17 Capítulo 16 - O Irmão do Líder
18 Capítulo 17 - Uma Lenda Perigosa
19 Capítulo 18 - O Aviso Ignorado
20 Capítulo 19 - A Jornada ao Desconhecido
21 Capítulo 20 - A Cabana na Clareira
22 Capítulo 21 - A Sombra da Curandeira
23 Capítulo 22 - O Pacto e o Preço
24 Capítulo 23 - O Pântano Tocado pelo Luar
25 Capítulo 24 - O Ritual da Transformação
26 Capítulo 25 - O Reflexo no Espelho
27 Capítulo 26 - O Retorno ao Covil
28 Capítulo 27 - A Sombra em Você
29 Capítulo 28 - O Treinamento de uma Sombra
30 Capítulo 29 - A Primeira Missão
31 Capítulo 30 - Conversas na Biblioteca Secreta
32 Capítulo 31 - Fagulhas de Romance
33 Não pare agora: conheça minhas outras obra
34 Capítulo 32 - O Vazio Crescente
35 Capítulo 33 - A Chave para a Verdade
36 Capítulo 34 - O Livro de Registros Criptografados
37 Capítulo 35 - A Verdade Amarga
38 Capítulo 36 - O Coração Dividido
39 Capítulo 37 - O Plano de Elara
40 Capítulo 38 - O Castelo de Cartas Desmorona
41 Capítulo 39 - Olhos de Um Estranho
42 Capítulo 40 - A Sombra de uma Dívida
43 Capítulo 41 - O Contrato da Ampulheta
44 Capítulo 42 - O Preço da Leveza
45 Capítulo 43 - Um Gosto Amargo de Vitória
46 Capítulo 44 - Uma Luz Solitária
47 Capítulo 45 - Uma Batida na Porta
48 Capítulo 46 - Não Vim Por Vingança
49 Epílogo
Capítulos

Atualizado até capítulo 49

1
Capítulo 1 - O Cheiro de Papel e Crepúsculo
2
Capítulo 2 - Mãos de Relojoeiro, Coração de Pai
3
Capítulo 3 - Sussurros No Jardim
4
Capítulo 4 - O Peso Do Mundo
5
Capítulo 5 - O Barão e o Mecanismo Astral
6
Capítulo 6 - A Tempestade Chega
7
Capítulo 7 - O Silêncio Depois da Tempestade
8
Capítulo 8 - Portas Fechadas
9
Capítulo 9 - O Legado de Um Leitor
10
Capítulo 10 - A Escada e o Destino
11
Não pare agora: conheça minha próxima obra
12
Capítulo 11 - A Guilda Dos Sussurrantes
13
Capítulo 12 - O Mapa Iluminado
14
Capítulo 13 - O Covil Sob o Templo
15
Capítulo 14 - Diante das Sombras
16
Capítulo 15 - "Substancial Demais"
17
Capítulo 16 - O Irmão do Líder
18
Capítulo 17 - Uma Lenda Perigosa
19
Capítulo 18 - O Aviso Ignorado
20
Capítulo 19 - A Jornada ao Desconhecido
21
Capítulo 20 - A Cabana na Clareira
22
Capítulo 21 - A Sombra da Curandeira
23
Capítulo 22 - O Pacto e o Preço
24
Capítulo 23 - O Pântano Tocado pelo Luar
25
Capítulo 24 - O Ritual da Transformação
26
Capítulo 25 - O Reflexo no Espelho
27
Capítulo 26 - O Retorno ao Covil
28
Capítulo 27 - A Sombra em Você
29
Capítulo 28 - O Treinamento de uma Sombra
30
Capítulo 29 - A Primeira Missão
31
Capítulo 30 - Conversas na Biblioteca Secreta
32
Capítulo 31 - Fagulhas de Romance
33
Não pare agora: conheça minhas outras obra
34
Capítulo 32 - O Vazio Crescente
35
Capítulo 33 - A Chave para a Verdade
36
Capítulo 34 - O Livro de Registros Criptografados
37
Capítulo 35 - A Verdade Amarga
38
Capítulo 36 - O Coração Dividido
39
Capítulo 37 - O Plano de Elara
40
Capítulo 38 - O Castelo de Cartas Desmorona
41
Capítulo 39 - Olhos de Um Estranho
42
Capítulo 40 - A Sombra de uma Dívida
43
Capítulo 41 - O Contrato da Ampulheta
44
Capítulo 42 - O Preço da Leveza
45
Capítulo 43 - Um Gosto Amargo de Vitória
46
Capítulo 44 - Uma Luz Solitária
47
Capítulo 45 - Uma Batida na Porta
48
Capítulo 46 - Não Vim Por Vingança
49
Epílogo

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